Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
Note-se, então, que se a finalidade do desejo é esta, o desejo necessariamente
pressupõe uma relação15 e o que se deseja sobretudo nesta relação é o reconhecimento do outro. O amante não deseja se
apropriar de uma coisa; ele deseja, em verdade, capturar a consciência do
outro. Dito de maneira mais clara, o Direito é Amor, na medida que tão quanto o
Amor é constituído necessariamente por uma relação, uma relação jurídica, e
nessa relação jurídica, o que o sujeito de direito (o amante) tem como
pretensão (desejo) não é o objeto da relação, mas o reconhecimento da parte
contrária (do outro), na medida que só por meio do (re)conhecer é que se poderá
efetivamente se aproximar da conciliação, da mediação, da pacificação do
interesses em conflito na relação. Qualquer outra solução que não tenha por
fundamento o Amor, será inevitavelmente uma solução artificial e deslegitimada.
Nesse sentido é que Luis Alberto Warat que outrora entendia o Direito como
Linguagem16 , como um discurso, como um ato de comunicação, hoje
compreende como expressão de Amor17 .
Convém assinalar a respeito do assunto as palavras de Lédio Rosa de Andrade: "O
amor waratiano funda-se na diferença e na autonomia. O outro como possibilidade
de potencializar mudanças em meu eu. Neste mundo novo, um terceiro autoridade
(o juiz), com poder de impor uma decisão sobre os conflitos de afeto, normalmente
agravando-os e descontentando as partes, criando-lhes conseqüências psíquicas e
físicas, é substituído por um mediador. Este não buscará decidir os conflitos,
pois inerentes ao ser humano. Ele media os envolvidos, tornando-os juízes deles
mesmos, a fim de aprenderem a viver com o conflito, e isso poderá melhorar a
qualidade de vida de todos"18 .
Nos lembra ainda o citado autor que "ressalvados os casos meramente
patrimoniais (ações entre bancos e seus clientes, por ilustração), as
desavenças jurídicas são afetivas (guarda de filhos, por exemplo). E se são
afetivas, falam de amor e ódio. é claro que Warat não fala do amor romântico,
característico da modernidade ocidental, que contratualiza o afeto e transforma
as relações humanas em atitudes possessivas autoritárias, na busca vã de uma
pseudo-segurança: o outro torna-se nossa propriedade; a diferença é motivo de
briga. Neste mundo, estamos obrigados, por contrato, a "amar" somente uma
pessoa, e livres para odiar o resto da humanidade. O resultado é a doença,
conforme nos adverte Thomas Mann, pela boca do Dr. Krokowski, na "Montanha
Mágica" "19 .
Oportuno ainda se faz a trazer á colação as palavras do próprio Warat: "A
mediação é uma forma ecológica de resolução dos conflitos sociais e jurídicos;
uma forma na qual o intuito de satisfação do desejo substitui a aplicação
coercitiva e terceirizada de uma sanção legal. A mediação como uma forma
ecológica de negociação ou acordo transformador das diferenças. A mediação é
uma forma alternativa (com o outro) de resolução de conflitos jurídicos, sem
que exista a preocupação de dividir a justiça ou de ajustar o acordo ás
disposições do direito positivo. é digno de se destacar que a estratégia
mediadora não pode ser unicamente pensada em termos jurídicos. é uma técnica ou
um saber que pode ser implementado nas mais variadas instâncias. Estou pensando
nas possibilidades de mediação na psicanálise, na pedagogia, nos conflitos
policiais, familiares, de vizinhança, institucionais e comunitários em seus
variados tipos"20 .
3.1. Vínculo x liberdade - o amor como poder.
O amor, considerado como o desejo de interação com o outro, impõe, todavia, um
tipo de vínculo paradoxal: o ser que ama deve se render ao outro para ser amado
livremente. Desta forma, é possível afirmar que o fascínio é fonte de poder: o
poder de atração de um sobre o outro. Entretanto, tal "cárcere" não pode ser
compreendido como negação da liberdade, posto que a união deve ser
circunstância sine qua da expressão
cada vez mais enriquecida da nossa sensibilidade e da nossa personalidade.
Nesse sentido, a presença do outro é solicitada na sua espontaneidade, pois são
os sujeitos que escolhem livremente estar juntos.
Saliente-se, então, o quão mais apropriado é o conceito de amor do que o conceito de verdade21 22 até aqui
utilizado pela teoria geral do processo. A verdade, meta última de um processo
que tem a pretensão de reproduzir e provar os fatos da maneira que os mesmos
aconteceram no passado, é conceito inatingível e relativo na sua própria
natureza. A verdade, na medida em que é fato, é complexa e, portanto, qualquer
fotografia que o processo elabore desse fato, ela sempre terá a sua imagem
distorcida. A verdade, na proporção em que é noção23 e não é conceito24 , é fenômeno que na sua própria existência é relativo. Logo, um Direito que
busque a sua fundamentação exclusiva na norma "dita" pelo Estado, e que tem por
escopo alcançar a verdade por meio do processo, é um Direito pretensioso e que
não se presta ao fim a que se destina, na medida em que é a-lheio aos esforços
da Filosofia e da Psicanálise, dentre outras ciências afins, e na proporção em
que não resolve satisfatoriamente os conflitos de interesses trazidos através
do processo.
Por isso, diante desse quadro, o Amor, arrimado no desejo e no fascínio, atende
melhor a pretensão a que se destina o processo, posto que não visa solucionar a
lide (conflito de interesses das partes) utilizando-se necessariamente da
reprodução de um fato, outrora ocorrido, mas persegue tal solução tendo em
conta os desejos das partes e o poder que o fascínio exerce. Aliás, é somente
tendo em conta o Amor que poderá o Direito solucionar a contento, por exemplo,
"lides" na seara do Direito de Família, vez que deve ser o amor o fundamento
último não da lide (vocábulo já tão desgastado e inapropriado para uma ciência
moderna), mas da mediação e da conciliação.
Por outro lado, o amor25 imaturo, opostamente, é individualista, é
"eu" em vez de "nós", é dominador. Porém não é fácil precisar quando o poder
gerado pelo amor ultrapassa os limites. Se é certo que a força do amor está na
atração que um exerce sobre o outro, é de se perguntar: em que momento isso se
transforma em desejo de controlar, de manipular?
O mundo capitalista onde se desenvolvem as relações, sustentado no valor do
"ter", desenvolve formas possessivas e anacrônicas de relação. O ciúme
exacerbado surge nesse contexto como o desejo de domínio integral sobre o
outro. Deixa-se de reconhecer o outro e passa-se a dominar o outro.
Com isso, não estamos consignando que o ciúme, em si próprio, seja patológico e
que, portanto, não deva existir. Etimologicamente, ciúme significa "zelo": o
amor implica cuidado e temor de perder o amado. Sendo assim, se não queremos a
quebra da trama constituída na relação recíproca e se o outro confere
consistência á nossa emoção e enriquece nossa existência, penamos com a própria
idéia da perda.
3.2. Vínculo x identidade:
. o amor como respeito á individualidade;
. a perda como parte da vida;
. o risco como exigência da juventude.
Existe uma vez mais outra antinomia no amor: ele deve ser uma junção, com a
condição de cada um preservar a sua própria identidade. Isso estabelece que, ao
mesmo tempo, dois seres estejam unidos e permaneçam separados. Nota-se, assim,
que sob a perspectiva do Amor o homem é tomado enquanto Sujeito de Direito e
não enquanto Objeto do Direito, uma que é livre, consciente, senhor do seu
agir.
O Amor26 é a proposta para transcender a si mesmo. Se a pessoa
coloca-se no centro de si mesma, não será capaz de ser sensível ao apelo do
outro. Verifica-se, então, que o Amor é também o respeito ao direito do outro.
Vê-se, dessa maneira, que o amor é requisito indispensável para o homem em suas
relações sociais. é isso que ocorre com a criança27 , que
espontaneamente aproxima-se de quem melhor atenda as suas necessidades (a
educação e o processo de civilização da criança28 29 , a criança
como um ser perverso e egocêntrico). Quando essa maneira de se comportar
persiste na vida adulta, obstaculariza o encontro verdadeiro, dito de outra
forma, o viver em sociedade. A esse respeito é bem didática a lenda de Narciso,
que ao admirar sua face espelhada na água, enamora-se por si próprio. Isso
causa sua morte, pois esquece de se alimentar, tão encantado se encontra com a
própria imagem inatingível. O narcisista "morre" na proporção em que torna
inviável a relação fecunda com o outro.
Esse comportamento egoísta tende a permanecer durante a adolescência, vez que
esta é momento de transição da vida infantil para a vida adulta. Logo, por
muitas vezes, o adolescente não ama essencialmente ao outro, como um ser com a
sua própria individualidade, mas ama a idéia de Amor. Trata-se do amor
idealizado, romântico, que não vê o outro, mas vê apenas a projeção de si mesmo
e de seus anseios no outro, o que talvez ocorra, em parte, pelo medo de
lançar-se nas contradições do exercício efetivo do amor.
O Amar30 na sua forma mais sublime requer, necessariamente, a
descoberta do outro. Portanto, o amor envolve o respeito, não na sua expressão
moralista que corriqueiramente se atribui a esse conceito, não como receio
produzido pelo autoritarismo. Respeito, em latim, respicere, significa "olhar para", isto é, o respeito é
capacidade de aceitar um indivíduo como ele é, reconhecendo a identidade
singular. Isso supõe a preocupação de que a outra pessoa esteja e permaneça
como ela é, e não como queiramos que ela seja. O amor exige a liberdade, e não
a escravização: o outro não deve ser servo, mas indivíduo. O amor pleno e
maduro é livre e generoso, fundando-se na reciprocidade.
Nesse passo, merece ser reproduzido o pensamento das professoras Maria Lúcia de
Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins acerca da matéria: "O paradoxo da
relação amorosa, colocada ao mesmo tempo como desejo de união e de preservação
da alteridade, dimensiona a ambigüidade em que o homem é lançado. Os sentimento
gerados também são ambíguos: são sentimentos de amor e ódio para com aquele que
escolhemos conscientemente, mas de cuja escolha resultou o abandono de outras
possibilidades...O não saber viver nessa ambigüidade leva certas pessoas ou a
procurar a "fusão" com o outro, do que decorre a perda da individualidade, ou a
recusar o envolvimento por temer essa perda"31 .
Contudo, o risco do amor é a separação.
Embrenhar-se numa relação amorosa coloca para o amante a possibilidade da
perda. Se assim é, podemos então asseverar que a separação é a experiência da
morte32 (perda): é a vivência da "morte do outro" em minha
consciência e a vivência de minha morte na consciência do outro.
No momento em que se dá o rompimento da relação, a pessoa necessita de um tempo
para se reestruturar, visto que, mesmo quando mantém a sua individualidade
durante a relação amorosa, inegável é também que o tecido do seu ser passa
inelutavelmente pelo outro. Existe, portanto, um período de "luto" a ser
transposto depois da separação, quando, então, se busca novo equilíbrio.
Releva notar, por fim, que uma marca indelével dos indivíduos maduros é saber
conviver com a possibilidade da morte no desenvolvimento natural da sua vida.
Quando falamos em morte, estamos nos referindo ás diversas perdas que permeiam
o curso de nossas vivências. Todavia, nas sociedades massificadas, em que o eu
não é satisfatoriamente desenvolvido e trabalhado, as pessoas preferem não
viver, para não ter de viver com a morte. Logo, nota-se que as relações entre
essas pessoas são tão-somente perfunctórias, e é tendo vista esta situação que
Edgard Morin assevera que nas sociedades burocratizadas e aburguesadas, é
adulto quem se conforma em viver menos para não ter que morrer tanto. Porém, o
segredo da juventude é este: vida quer dizer arriscar-se á morte; e fúria de
viver quer dizer viver a dificuldade.
Diante de tudo quanto foi exposto, oferecemos á reflexão do leitor a presente:
a proposta e de ver no Amor o fundamento último do Direito.
Estamos cientes do quão pouco ainda foi e é estudado o Amor. Sabemos que a
própria a Filosofia e a Psicanálise já escreveram algumas páginas sobre esse
sublime sentimento humano, mas estamos conscientes de que ainda são muito
poucas folhas.
De outro lado, sabemos do repúdio33 com que é tratado pelo Direito,
ou pelo menos pelos juspositivitas34 , qualquer proposta em torno
dessa ciência tendente a uma abordagem que privilegie ou que perpasse por
outras ciências (Filosofia, Psicologia, Psicanálise, Sociologia, Antropologia e
outras), mas mesmo ciente de todas essas dificuldades, fazemos questão de
registramos aqui um nova abordagem acerca do Direito. Não com o intuito de
causar perplexidade, nem muito menos de convencer, mas com o escopo de levar ao
leitor a reflexão35 . Se tiver despertado, pelo menos em um leitor,
um furor de uma crítica consistente e fundamentada, já teremos alcançado o objetivo
a que nos propusemos.
Notas de rodapé convertidas
1. MARCUSE, H. Eros e civilização. 4ª edição. Rio de
Janeiro: Zahar, 1969.
2. PLATÃO. O banquete. Um dos diversos diálogos de
autoria do filósofo.
3. A presente citação é extraída do último discurso do diálogo - O banquete, no qual Platão atribui a
Sócrates (por muitos estudiosos considerados um dos pseudônimos usados por
Platão) a referida definição do que seja o Amor.
4. ARRUDA ARANHA, Maria Lúcia de.
& PIRES MARTINS, Maria Helena. Filosofando - Introdução á Filosofia.
São Paulo: Editora Moderna, 1990.
5. MILAN, Betty. O que é amor. São Paulo, Brasiliense, 1983
(Coleção Primeiros Passos).
6. Ob cit., ARRUDA ARANHA, Maria Lúcia de. & PIRES MARTINS, Maria Helena. p. 354.
7. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
8. FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías. Editorial Trotta.
Madri, 2000.
9. FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
10. WARAT, Luís Alberto O Ofício do Mediador. São Paulo: Habitus,
2001.
11. MONDARDO, Dilsa. 20 Anos Rebeldes: o Direito á Luz da Proposta Filosófico-Pedagógica de L. A.
Warat, Florianópolis: Editora Diploma Legal.
12. MAY, Rollo. Eros e a repressão: amor e vontade. 2ª edição.
Petrópolis: Vozes, 1978.
13. DESCARTES, René. O discurso do método. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
14. HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
15. WARAT, Luís Alberto. Introdução Geral ao Direito. Vol. 1. Porto
Alegre: Safe, 1994.
16. WARAT, Luís Alberto. Direito e sua Linguagem Porto Alegre:
Safe, 1995.
17. ANDRADE, Lédio Rosa de. Direito e amor. Disponível na internet: http://an.uol.com.br/1999/dez/29/0opi.htm,
29.12.1999.
18. ANDRADE, Lédio Rosa de. Direito e amor. Disponível na internet: http://an.uol.com.br/1999/dez/29/0opi.htm,
29.12.1999
19. ANDRADE, Lédio Rosa de. Direito e amor. Disponível na internet:
http://an.uol.com.br/1999/dez/29/0opi.htm, 29.12.1999
20. "Em nome do Acordo: a Mediação no
Direito", Almed.
21. BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. São
Paulo: RT, 2002.
22. BAPTISTA, Francisco das Neves. O Mito da Verdade Real na Dogmática do
Processo Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
23. SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada. Petrópolis: Vozes, 2000.
24. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte II. 10ª edição.
Petrópolis: Vozes, 2002.
25. GIKOVATE, Flávio. Falando de amor. São Paulo: M. G. Editores
Associados, 1976.
26. CONCHE, Marcel. A análise do amor.São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
27. FREUD, Sigmund. Obras completas.
28. PIAGET, Jean. Seis estudos de psicologia. 3ª edição. Rio
de Janeiro: Ed. Forense, 1969.
29. PIAGET, Jean. A linguagem e o pensamento da criança. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
30. FROMM, Erich. A arte de amar. Belo Horizonte: Itatiaia.
31. Ob cit., ARRUDA ARANHA, Maria Lúcia de. & PIRES MARTINS, Maria Helena. p. 356.
32. CARUSO, Igor. A separação dos amantes: uma fenomenologia da morte.
2ª edição. São Paulo: Cortez, 1982.
33. Nesse sentido, escreve Lédio Rosa: "Esse assunto é tido como estranho, até
mesmo ridículo, nos meios jurídicos. Amor é uma palavra apartada do direito. E
não poderia ser diferente, pois os cursos jurídicos preparam os estudantes para
o conflito. O triunfo, já se aprende na prática forense, é ganhar, se possível
esmagar a parte contrária. A demanda jurídica é por natureza beligerante", vide ANDRADE, Lédio Rosa de. Direito e amor. Disponível na internet: http://an.uol.com.br/1999/dez/29/0opi.htm,
29.12.1999.
34. HART, Herbert. A Ciência do Direito. Trad. José Lamego.
3ª edição. Portugal-Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
35. Merece ainda registro a recomendação feita por Lédio Rosa acerca do tema:
não devemos incorrer novamente no "equívoco de Karl Marx, de confiar demais na
bondade humana", vide ANDRADE,
Lédio Rosa de. Direito e amor.
Disponível na internet: http://an.uol.com.br/1999/dez/29/0opi.htm,
29.12.1999.
Autor:
Bernardo Montalvão Varjão de Azevedo
bernardomontalvao[arroba]hotmail.com
Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
|
|