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Um ponto de partida possível, entre outros tantos5, são as considerações de Lukács acerca da relação entre fenômeno e essência na esfera econômica. Inicia ele relembrando que «todo objeto é por sua essência um complexo processual»; contudo, freqüentemente «no mundo fenomênico» ele se apresenta como «um objeto estático, solidamente definitivo». Quando isso ocorre, «o fenômeno /.../ se torna fenômeno exatamente fazendo desaparecer, na imediaticidade, o processo ao qual deve a sua existência de fenômeno. E é de enorme importância social esse modo de se apresentar da essência /.../»6 pois, entre outras coisas, está na raiz das alienações contemporâneas.
Exemplo típico deste fenômeno é o velamento do trabalho enquanto fonte social de riqueza. Ele constitui «/.../ aquele mundo fenomênico capitalista no qual a mais-valia desaparece completamente por trás do lucro e no qual a conseqüente reificação, que deforma a essência do processo, torna-se a sólida base real de toda praxis capitalista.».(vol. II, 359) Também aqui nos
deparamos «/.../ com um mundo fenomênico criado pela dialética própria da produção econômica, /.../ que/,/ no seu ser-precisamente-assim/,/ é realidade, não aparência».(vol. II, 359-60) O processo de estranhamento, ainda que falsificador e velador das relações essências, é um fenômeno social tão real quanto qualquer outro. Ele corresponde a dadas relações sociais historicamente determinadas, e se ele opera uma falsificação das determinações essenciais que inverte a relação fundante-fundado, isto ocorre porque a praxis sóciogenérica opera uma inversão análoga: o ser humano, de criador do capital, se transfigura em sua criatura. Apenas por ser realidade é que esta esfera fenomênica -- mesmo que alienada-- pode se consubstanciar, na palavras de Lukács, em «base real imediata das posições teleológicas /.../[, ou seja,] a constituição assim dada deste mundo fenomênico é o fundamento real imediato de todas aquelas posições pelas quais a reprodução real de todo o sistema econômico é capaz de se conservar e crescer posteriormente».(vol. II, 359-60)
Dito de outro modo, a forma de ser da sociedade burguesa efetua, «de modo necessário[,] a reificação da objetividade social». Por isso, a sua imediaticidade cotidiana consubstancia um complexo alienado que submete ao capital as necessidades humano-genéricas. Por efetuar esta inversão, contudo, a cotidianidade não perde qualquer quantum de ser, de «realidade». Pelo
contrário, invertida ou não, essa dimensão fenomênica é tão real quanto as relações essenciais que estão na sua gênese. E, por isso, é capaz de influenciar as posições teleológicas objetivadas no seu interior. Essa esfera fenomênica reificada constitui tanto um «mundo fenomênico existente», como também é o solo genético do seu «reflexo correspondente /.../ na consciência dos homens que realizam as suas posições práticas neste mundo fenomênico imediato, que vivem neste mundo, e cujas ações são respostas ás demandas que dele se elevam».(vol. II, 360)
Detenhamo-nos, ainda que brevemente, na exploração de alguns dos aspectos destas considerações de Lukács.
Em primeiro lugar, temos aqui expressa com todas as letras a sua concepção de que «o fenômeno é sempre algo que é, e não algo contraposto ao ser»7. Estas palavras assinalam cristalinamente um primeiro momento da superação, por Lukács, da antinomia a que nos referimos acima. Como é sabido, de Platão a Hegel, a essência foi concebida como portadora de um quantum maior
de ser que o mundo fenomênico. A esfera fenomênica seria apenas expressão da essência, não cabendo á primeira qualquer papel na conformação da última.
Sendo a essência o ser em sua pureza, em seu estado absoluto; o fenômeno é necessariamente o momento de queda do ser, uma sua aparição fugidia, efêmera - - e portanto, parcial, incompleta, restrita, etc. Entre essas duas esferas teríamos, sempre segundo as concepções tradicionais, uma distinção de estatuto ontológico: o quantum de ser que caberia ao fenômeno seria menor que aquele
pertencente ás determinações essenciais. Por isso, a essência seria eterna e o
fenômeno fugaz, histórico.
Exatamente o oposto é postulado por Lukács: segundo ele, essência e fenômeno têm o mesmo estatuto ontológico. Ambas as esferas, na concepção lukácsiana são portadoras de ser, e a distinção entre elas decorre, como veremos a seguir, da peculiar relação que cada uma das esferas mantém com a categoria da continuidade.
O que agora nos interessa, para delimitar com clareza a ruptura de Lukács com o pensamento tradicional nesse aspecto, é que, segundo o filósofo húngaro, não apenas há uma esfera de determinações da essência sobre os fenômenos, como também há uma outra, dos fenômenos sobre o desenvolvimento das determinações essenciais. Após Marx, Lukács concebe a objetividade enquanto «síntese de múltiplas determinações» na qual todo e qualquer elemento, com as mediações devidas em cada caso, se articula numa relação de determinação reflexiva com a totalidade do ser-precisamente-assim existente. Insiste Lukács em que «no ser social o mundo dos fenômenos não pode de modo algum ser considerado um simples produto passivo do desenvolvimento da essência, mas que, pelo contrário, exatamente tal inter-relação entre essência e fenômeno constitui um dos mais importantes fundamentos reais da desigualdade e da contraditoriedade no desenvolvimento social.»(vol. II,472) Para ele, é superficialidade extrema não reconhecer que a relação essência-fenômeno exerce um «influxo decisivo sobre o progresso objetivamente necessário da essência»8.
é muito importante assinalar que a postulação da historicidade da essência resulta, imediatamente, no reconhecimento pelo filósofo húngaro de momentos de determinação da essência pelo fenômeno como uma das insuperáveis instâncias de contraditoriedade do real. Fenômeno e essência, radicalmente históricos, compõem uma complexa relação de determinações reflexivas «que de
modo diverso nas diversas épocas e nos diversos campos continuamente volta a se manifestar»(vol. II,319). Sendo breve, e para passarmos logo ao núcleo da questão, aos homens não há outra possibilidade de agir senão no «campo de manobra a cada vez criado pelo respectivo desenvolvimento das forças produtivas», «no respectivo hic et nunc do mundo fenomênico».(vol. II,377).
Este é «o único mundo objetivo realmente possível para a praxis dos homens». Ao agirem diretamente sobre o fenomênico, terminam por alterar o desdobramento da reprodução das determinações essenciais e, deste modo, os mesmos atos -- que na imediaticidade das finalidades que os conformam se voltam no mais das vezes ás particularidades fenomênicas -- terminam por colocar em movimento as categorias essenciais da formação social a qual pertencem. Também sob esse aspecto, a unitariedade última do ser se revela da maior importância para a ontologia de Lukács9.
Em suma, para o nosso filósofo, essência e fenômeno, «no plano do ser e da mesma maneira, são produtos das mesmas posições teleológicas. /.../ A dialética ontológica entre essência e fenômeno seria impossível se eles não surgissem de uma tal gênese fundamentalmente unitária e se esta unitariedade não fosse dinamicamente conservada»(vol. II, 369).
Com isto temos um primeiro momento decisivo da ruptura de Lukács com as ontologias tradicionais. Ao contrário destas, para o nosso autor essência e fenômeno possuem o mesmo estatuto ontológico, são dimensões distintas do real. Por isso pode Lukács reconhecer o mundo fenomênico como o hic et nunc no interior do qual se desdobram as posições teleológicas que, pela mediação da reprodução social10 com todas as mediações cabíveis, são as «forças motrizes» mais imediatas do desenvolvimento histórico-social.
II
Isto posto, passemos á distinção entre essência e fenômeno. Pois, segundo Lukács, afirmar serem essência e fenômeno esferas «igualmente existentes» é indispensável, porém insuficiente, para esclarecer as complexas relações que se desdobram entre elas. Para tanto, é imprescindível ao menos esclarecer qual seria, na interação essência-fenômeno, o momento predominante.11
Continuemos explorando a passagem da Ontologia acima referida em que Lukács trata da relação essência/fenômeno na esfera econômica. Nela, após afirmar a realidade do fenômeno mesmo quando este consubstancia uma alienação, prossegue nosso autor assinalando que «a esfera da essência se desenvolve independentemente da vontade e das intenções dos seus produtores»(vol. II,474). Salientemos, para evitar equívocos, que a «independência» a que Lukács se refere tem por escopo o conteúdo «das finalidades conscientes contida nos atos teleológicos», e não os atos teleológicos enquanto tais. A essência e o fenômeno são fundados pelos atos humanos -- ainda que, não raro, ao agir cotidianamente os indivíduos tenham por horizonte da consciência apenas o fenomênico.
Exatamente por terem as determinações essenciais a mesma gênese que a esfera fenomênica -- qual seja, a síntese dos atos singulares em tendências sócio-genéricas, numa processualidade cujo complexo Lukács denominou reprodução social -- o reconhecimento do fato de que o desenvolvimento da essência pode independer das intenções e das vontades que operam nos atos
singulares não significa que seja ela uma «necessidade fatal, que a tudo determinaantecipadamente»(vol. II,475). Se considerarmos o processo histórico em sua globalidade,afirma nosso autor, «fica claro como o movimento da essência /.../ é a base de todo o ser social, mas base aqui quer dizer:
possibilidade objetiva». A cada momento histórico, a cada desenvolvimento das
forças produtivas, a cada evolução da essência das formações sociais, a reprodução da sua vida material «faz continuamente surgir novas constelações reais das quais deriva o único campo de manobra real a cada vez existente para a praxis»(vol. II,475). Trocando em miúdos, «O âmbito dos conteúdos que os homens nessa praxis podem se pôr como fim é determinado -- enquanto horizonte -- por tal necessidade do desenvolvimento da essência, mas exatamente enquanto
horizonte, enquanto campo de manobra para as posições teleológicas reais nele possíveis, não como determinismo geral, inelutável de todo conteúdo prático»(vol. II,475).
Ao conceber a essência enquanto horizonte histórico de possibilidades para o agir humano, é evidente a ruptura de Lukács com as ontologias tradicionais -- e não é necessário insistir sobre esse ponto. Se «a necessidade da essência assume obrigatoriamente[,] para a praxis dos homens singulares[,] a forma da possibilidade»(vol. II,475), não é preciso mais para se perceber a radical historicidade dessa concepção. As necessidades essenciais «contribuem a determinar o como daquele mundo fenomênico sem cuja encarnação a essência não poderia jamais chegar á sua realidade plena, existente-por-si. E já que, como vimos, esta forma fenomênica é não apenas realidade geral, mas realidade histórica extremamente concreta, as posições teleológicas assim efetuadas agem também sobre o concreto caminho evolutivo da própria essência. /.../ elas intervêm sobre sua [da essência] forma fenomênica concreta, conferindo a esse caminho evolutivo um caráter de desigualdade. [...] O desenvolvimento da essência determina, portanto, os traços fundamentais, ontologicamente decisivos, da história da humanidade. A forma ontologicamente concreta, ao contrário, ela deriva destas modificações do mundo fenomênico (economia e superestrutura), que contudo se realizam somente como efeito das posições teleológicas dos homens /.../».(vol. II,475-6)
Obviamente, entre possibilidade e necesssidade não há, em Lukács, umainsuperável antinomia: toda possibilidade só pode vir a ser no interior de um dado campo de necessidades, de uma dada malha de determinações historicamente necessárias. Se essas determinações se alteram em sua essência -- por exemplo, com a passagem de um modo de produção á outro -- o horizonte de possibilidades se altera do mesmo modo; ou seja, determinações essenciais são superadas e
substituídas por outras.
Nesta exata medida e sentido, em Lukács, «/.../ a essência se apresenta ontologicamente como o momento predominante da interação»(vol. II,364) entre essência e fenômeno: ela consubstancia o horizonte de possibilidades a cada momento histórico. Contudo, há que se evitar qualquer rigidez e transformar essas considerações numa, digamos assim, estrutura fixa, na qual a necessidade estaria puramente representada na essência, e a casualidade no fenomênico. Insiste Lukács que o mundo dos homens desconhece qualquer necessidade cega, «o ser social, mesmo quando alcança á sua máxima e mais pura objetividade não pode jamais possuir a completa independência do sujeito que é característico dos eventos naturais»(vol. II,368). Além disso, a gênese e a reprodução das determinações essenciais têm o mesmo fundamento imediato da esfera fenomênica:
os atos individuais dos indivíduos historicamente determinados; ou, nas palavras do nosso autor, «A unidade dinâmica entre eles /.../ depende do fato de que no ser social ela é fundada sobre a derivação de ambos de posições teleológicas, o que quer dizer que em toda posição singular deste tipo na esfera econômica, essência e fenômeno são objetivamente postos de modo
simultâneo, e apenas quando as séries causais postas em movimento se desenvolvem em complexos distintos do ser, com fisionomias específicas e, pela persistência da contínua interação, se distinguem -- no imediato, relativamente -- uma da outra, apenas então se tem uma clara diferenciação» entre essência e fenômeno.(vol. II,364-5)
A relação que se desdobra entre essência e fenômeno, por outro lado, tem sua razão de ser no fato de que as determinações essenciais, por serem históricas, apenas podem se objetivar ao longo do tempo através de processos de particularização. E a particularidade de uma deteminação genérica é o solo ontológico da gênese dos momentos fenomênicos. Por isso, sem os fenômenos a essencialidade jamais poderia alcançar a uma plena explicitação categorial -- a rigor, não poderia sequer existir. é a isso que nosso filósofo se refere ao afirmar que a «relação igualmente ontológica entre os dois se concretiza pelo fato que do ser deve necessariamente emergir o fenômeno». (vol. II,364-5) Isto permite ao filósofo húngaro concluir que, «Em sentido ontológico rigoroso, o fenômeno não é a forma da essência, assim como esta última não é simplesmente seu conteúdo. Quaisquer desses complexos é, no plano ontológico, por sua natureza a forma do próprio conteúdo e, conseqüentemente, a sua ligação é aquela de duas relações forma-conteúdo homogêneas.»(vol. II, pg.365)
Exatamente por isso pode Lukács afirmar que «é impossível que as leis da essência determinem de modo direto, com causalidade retilínea, os momentos singulares do mundo fenomênico e as suas concatenações causais imanentes. Nas suas interações com o mundo fenomênico, a essência produz neste último campos "livres", cuja liberdade é possível apenas no interior da legalidade do campo».(vol. II,376)
Se a essência e o fenômeno são igualmente reais, e se a distinção entre eles tem seu fundamento no fato de a primeira ser portadora das possibilidades históricas á particularização dos fenômenos, e estes de seres as indispensáveis mediações particularizadoras sem as quais as determinações essenciais não poderiam existir -- a continuidade surge como o campo por excelência da distinção entre essência e fenômeno. Vamos, pois, a ela.
III
As passagens do texto até aqui examinadas evidenciam que, ao considerar terem essência e fenômeno o mesmo estatuto ontológico, Lukács não vela, ou sequer atenua, as diferenças que se interpõem entre eles. Para nosso autor, o que distingue essência e fenômeno, «Aquilo que ontologicamente os separa nesta insuperável unidade objetiva do processo, aquilo qque faz de um a essência e deoutro o fenômeno, é o modo de se relacionar com o processo, por uma parte na sua continuidade complexiva e por outra no seu concreto hic et nunc históricosocial» (vol. II,370). Para sermos breves e diretos, o que distingue a essência do fenômeno é o fato de as determinações essenciais serem os traço de continuidade que consubstanciam a unitariedade última do processo enquanto tal, enquanto seus traços fenomênicos são os responsáveis pela esfera de diferenciação que faz de cada momento no interior do processo um instante único, singular.
Sem dúvida, reconhece Lukács, há na essência «um predomínio da generalidade, enquanto no fenômeno se verifica um movimento para a singularidade e a particularidade». Contudo, continua Lukács, seria superficial tirar a conclusão que em tal "relação estaria claramente expressa a verdadeira relação da essência com o seu fenômeno». «Acima de tudo» porque também a generalidade e singularidade são determinações reflexivas, o que quer dizer que elas comparecem em toda constelação concreta de modo simultâneo e bipolar: todo objeto é sempre concomitantemente um objeto geral e singular. «Por isso o mundo fenomênico /.../ não pode deixar de produzir no plano do ser sua própria generalidade, do mesmo modo como a generalidade da essência se apresenta continuamente também em quanto singularidade.»(vol. II,370-1).12
Esta autonomia do fenômeno frente á essência decorre do fato de que o desenvolvimento ontológico exibe necessariamente desigualdades. Ele se consubstancia enquanto um complexo processo de particularização dos traços essenciais e de generalização em essências dos eventos singulares. Já vimos como a essência, segundo Lukács, apenas pode alcançar sua plena explicitação
enquanto tal tendo por mediação as cadeias fenomênicas, por isso não nos voltaremos a esse aspecto. O que agora é decisivo salientar é que, para nosso autor, essa relativa autonomia dos fenômenos frente ás suas determinações essenciais «existe apenas no quadro com a interação com a essência, como campo de manobra bastante vasto, rico de níveis e de facetas, mas todavia apenas como campo de autodesenvolvimento no interior de uma relação na qual a essência tem o papel de momento predominante.»(vol. II,375) Nesta exata medida, a essência é concebida por Lukács, como a «duração na mudança» (vol. II,373), como «continuidade tendencial última»(vol. II,375). Ao se referir á essência da individualidade, utiliza a expressão «a substância
que se conserva na continuidade do processo»(vol. II,412).
IV
Recapitulemos: a essência e o fenômeno, na acepção lukácsiana, possuem o mesmo estatuto ontológico, são igualmente necessários e, ainda que haja uma tendência á generalidade na essência e á particularidade no fenômeno, generalidade e particularidade são dimensões presentes nas duas esferas. A distinção entre as determinações fenomênicas e as essenciais é dada pela
peculiar relação de cada uma delas com a totalidade do processo em questão. Por ser um processo, este exibe um inequívoco caráter de unitariedade última, fundado pela suas determinações essenciais. Contudo, exatamente por ser um processo, é composto por distintos momentos que se sucedem no tempo; e a particularização dos momentos, tornando-os singularidades, é dada pelas
determinações fenomênicas. Nesta interação, as mediações que promovem esta particularizaçãoconsubstanciam a esfera fenomênica; e estas mediações, por sua vez, são atualização das potenciallidades inscritas no campo depossibilidades que consubstancia a essência. Nesta exata medida e sentido, na determinação reflexiva que articula essência e fenômeno, cabe á primeira o momento predominante.
Sendo a essência o momento predominante na relação com o fenômeno -- e sendo ambosportadores do mesmo quantum de ser -- o que os distingue é o fato
de a essência se consubstanciar nos traços de continuidade desdobrados pelo e no processo, enquanto o fenomênico se consubstancia nas mediações particularizadoras que distinguem os momentos do processo entre si.
Não pode haver, portanto, qualquer anterioridade do essencial em relação ao processo: a essência vem a ser como determinação do processo. A gênese do processo é a gênese de sua essência (e, mutatis mutandis, de sua esfera fenomênica); seu desenvolvimento é o desenvolvimento de suas determinações essenciais e fenomênicas; seu término corresponde ao fim do que lhe foi essencial e fenomênico. Nada, absolutamente nada -- nem mesmo do mais essencial -- existe para além do processo enquanto tal; ou seja, para além da história.
A historicidade, nesta acepção, se constitui em uma categoria efetivamente universal, englobando -- em uma clara ruptura com todas as ontologias anteriores -- inclusive e fundamentalmente a essência. Esta, para Lukács, é tão histórica quanto o fenômeno. E, por isso, argumentar a existência de uma essência humana que determina a história sem poder ser por ela alterada -- tal como ocorre com o conceito liberal de "natureza humana" -- não passa, hoje em dia, de uma falácia. E com um inequívoco objetivo ideológico: argumentar a impossibilidade de se ir para além do capital.
Nessa medida e sentido, a demonstração por Lukács da historicidade da essência lhe permite desenvolver a crítica radical não apenas dos traços de fatalismo e conformismo que permeiam, para sermos breves, o senso comum hoje dominante, mas também desdobrar a crítica não menos radical das elaborações teóricas que visam justificar o mundo sob a regência do capital, a partir de uma pretensa a-historicidade da essência humana. Contra a afirmação por essas teorizações da impossibilidade de uma sociabilidade emancipada devido ao individualismo e o particularismo inerentes á uma pretensa e a-históricaessência humana, Lukács postula a tese da historicidade da essência -- ou seja, que a essencialidade humana é construto humano e que, por isso, pode ser alterada pela praxis humano-social. Para nosso autor, esse individualismo e mesquinhez são característicos da essência do homem burguês -- e não passaria de uma forma historicamente determinada da relação dos indivíduos com o gênero humano. Sendo essência do homem burguês, apenas ideologicamente poderia ser convertida em essência burguesa do homem. Não há, portanto, qualquer impedimento essencial á revolução -- esta continua como uma possibilidade aberta e indispensável para a superação das misérias da vida alienada pelo capitalismo.
Ao contrário do que poderia parecer á primeira vista, a investigação ontológica de Lukács jamais foi meramente acadêmico-teórica. Ela exibe uma faceta "prática" inequívoca ao intervir na defesa da possibilidade ontológica da superação revolucionária da ordem burguesa. E isto claramente contrapõe nosso autor a parcela ponderável da produção teórica dos nossos dias, constituindo subsídio dos mais ricos para a crítica ás tendências hoje dominantes.
Contudo, a defesa da possibilidade ontológica da emancipação humana não resolve inteiramente a questão. Nem Lukács assim o pretendia. A determinação das mediações ontológicas que consubstanciam, nos mais diferentes momentos da reprodução social, a radical historicidade do mundo dos homens, ainda que componha demonstração inequívoca da possibilidade da emancipação humana, está longe de explicitar as mediações políticas indispensáveis á objetivação desta superação. A investigação ontológica por sua própria natureza não pode ser, para sermos breves, o «programa da revolução».13 Mas, sem ela, não apenas os revolucionários estão em desvantagem no confronto de idéias, como ainda qualquer plataforma política carece da consciência para-si indispensável á efetivação das potencialidades revolucionárias inscritas no sociabilidade dos nossos dias. Nisto reside a importância de Lukács para o debate contemporâneo.
NOTAS
1 Publicado em Novos Rumos, V. 30, p.22-30, São Paulo, 1999.
2- A tradução de Entäusserung e Entfremdung ainda não foi padronizada entre os autores brasileiros. Para facilitar a compreensão, preferimos traduzir o primeiro por exteriorização (há quem prefira alienação) e o segundo por alienação (alguns preferem estranhamento).
Sobre a importância da distinão dessas duas categorias para a tradição marxiana, além do já clássico texto de I. Mészáros, A Teoria da Alienação em Marx (que, lamentavelmente, conta com uma tradução muito problemática para o português) consultar Ranieri, J. «Alienação e estranhamento nos Manuscritos de 1844 de K. Marx». Dissertação de mestrado, IFCH-Unicamp, março 1995 e tb. Norma Alcântara, O conceito de Estranhamento na Ontologia de Lukács, dissertação de mestrado, Serviço Social, UFPB, 1998.
3 Essa paradoxalidade da concepção de mundo (Weltanschauung) dominante é em última análise um dos fatores responsáveis pelos traços de fatalismo que, de forma muito mediada, possibilitam a coexistência (ainda que sempre conflituosa) de concepções ontológicas tradicionais, de fundo religioso, com o desenvolvimento acelerado da ciência. Cf. Lukács, G. Prolegomini all"Ontologia dell"Essere Sociale. Guerini e Associati, Nápoles, 1990,29-35, 272-3, 336-7.
4 Como exemploscontemporâneos deste fato, conferir a aproximação do último Habermas á esta concepção individulistista-monádica (Lessa, S. «Habermas e a Centralidade do Mundo da Vida», Serviço Social e Sociedade, nº 46, dez. 1994); a crítica do marxismo analítico desta angulação foi por nós feita em «Lukács e o marxismo contemporâneo», Rev. Temáticas, nº1-2, Unicamp, 1993. Algo similar, pode ser encontrado em Claus Off, como argumenta convincentemente Giovanni Alves em «A Vigência do capital...», Rev. Temáticas, nº1-2, Unicamp, 1993; e em J. G. Castañeda, como demonstrou Ivo Tonet em «Utopia Mal Armada», Rev. Praxis, nº3, 1995. Na esfera mais diretamente política e de esquerda, conferir o estudo do Movimento Contra a Fome, liderado por Betinho, in Paniago, C. "Ação da Cidadania: uma análise de seus fundamentos teóricos", dissertação de mestrado, Serviço Social, UFPE, 1997; e o livro de Tonet, I. Democracia ou Liberdade? EDUFAL, 1996.
5- No Simpósio Lukács - a propósito de 70 anos de História e Consciência de Classe, Unicamp, 1993, apresentamos um trabalho (publicado em Antunes, R. & Rego, W. (org.) Lukács, um Galileu no século XX, ed. Boitempo, S. Paulo, 1996) que examina esta mesma questão a partir de outras passagens da Ontologia de Lukács -- em especial o capítulo «O Trabalho». Uma outra possibilidade seria enfrentá-la a partir das considerações do filósofo húngaro acerca da reprodução social das individualidades e da totalidade social no capítulo «A Reprodução» (ambos os capítulos já traduzidos para o português e disponíveis no Centro de Documentação Lukács, Biblioteca Central da Universidade Federal de Alagoas, Campus A. C. Simões, Maceió, Alagoas, Brasil). Uma quarta possibilidade seria explorar as considerações de Lukács acerca da inerente contraditoriedade do desenvolvimento humano-genérico no capítulo de sua Ontologia dedicado a Marx (e também já traduzido para o português por C. N. Coutinho, e publicado sob o título Os princípios ontológicos..., op. cit.). Além disso, nos Prolegômenos... diversas passagens também poderiam servir de referência a esta investigação. Assinalamos este fato para salientar que nossas considerações, ainda que lancem raízes em uma passagem restrita do texto lukácsiano, se referem á estrutura mais íntima de
toda a obra.
6 - Lukács, G. Per una Ontologia dell"Essere Sociale, Ed. Riuniti, Roma, 1976-81, vol. II**357. De agora em diante citado no corpo do texto entre parênteses.
7- Lukács, G. Os Princípios Ontológicos Fundamentais de Marx, trad. Carlos N. Coutinho, Ed. Ciências Humanas, São Paulo, 1979. Exatamente no mesmo sentido, repete no segundo volume de Per una Ontologia... que «... o mundo fenomênico é parte existente da realidade social.»(vol. II,92) Cf. tb. vol. II pgs. 405, 330 e 106-7.
8 Os Princípios Ontológicos Fundamentais de Marx, op. cit.,124-5.
9 Sobre a unitariedade última do ser e sua importância na Ontologia de Lukács, cf. Lessa, S. Sociabilidade e Individuação. Edufal, 1995.
10 Sobre a categoria social da reprodução em Lukács, Cf. Lessa, S. Sociabilidade e Individuação, Ed. da UFAL, 1995 e, também, «Reprodução e Ontologia em Lukács»- Trans/forma/ação, v.17, UNESP, 1994.
11 Como afirma Lukács no capítulo de sua Ontologia dedicado á reprodução,
«a simples interação conduz a um conjunto estacionário, definitivamente estático; se desejamos conferir expressão conceitual á dinâmica viva do ser, ao seu desenvolvimento, devemos esclarecer qual seria, na interação da qual se trata, o momento predominante»(vol. II,229). Vale lembrar que, segundo Lukács, após Marx, por uma categoria ser o momento predominante de uma dada processualidade, não implica que, em dadas circunstância atípicas (porém igualmente reais), não possa essa mesma categoria vir a ser determinada por um outra, que assume, atipicamente, a função ontológica de momento predominante daquele momento particular. Sobre o conceito de momento predominante cf. Per una Ontologia..., op. cit., vol. II57-9, 79-80, 229 e ss.. Nos Prolegômenos, op. cit., cf. pgs. 79-81 e 137-8.
12 Lembremos que, para nosso autor, universalidade, particularidade e singularidade são momentos da máxima universalidade do ser -- e, portanto, são igualmente existentes. Lukács tanto se distingue, nesse aspecto, do empirismo ou do naturalismo marxista vulgar, que concebem «os traços de continuidade, gerais, do processo simplesmente como generalizações ideais de uma realidade sempre irrepetível na sua concretude»; como também do idealismo, que confere á
generalidade «um ser "superior" independente da realização, que por força das coisas é sempre irrepetível.»(vol. II; pg.370) As diferenças que se interpõem entre o genérico, o singular e o particular são decorrentes das imanentes desigualdades de toda processualidade -- e não de uma distinção de estatuto ontológico entre eles.
13 Este limite da ontologia, e sua relação com a política, foi afirmada explicitamente por Lukács em vários momentos de seus últimos escritos. Não parece haver dúvida a este respeito e estudiosos da qualidade de Nicolas Tertulian e Guido Oldrini convergem neste particular. Contudo, uma nova esfera de problemas foi argutamente apontada por István Mészáros, em seu último livro, Beyond Capital (Merlin Press, Londres, 1995), em relação a esta relação entre ontologia e política no último Lukács. Para colocarmos de modo muito sucinto, argumenta Mészáros que a falência do projeto político de Lukács, corporificada pela falência do modelo soviético de transição ao socialismo, ao não ser assimilada conscientemente pelo filósofo húngaro, terminou por tornar impossível a Lukács pensar os problemas ontológicos da política, razão pela qual a ética que desejava escrever nunca foi além de anotações dispersas.
Ainda que possamos encontrar no texto de Mészáros interpretações bastantes questionáveis acerca dos últimos escritos de Lukács (por exemplo, que haveria na Ontologia a identidade sujeito-objeto), tem ele o indiscutível mérito de oferecer uma explicação do tratamento "insuficiente" (Carlos Nelson Coutinho) que o complexo da política recebe tanto na Ontologia quanto nos Prolegômenos.
Seja como for que avaliemos o texto de Mészáros neste particular, tem ele o mérito de colocar novas questões para a exploração do texto lukácsiano, abrindo um novo terreno para o desenvolvimento das investigações nesta esfera.
Autor:
Sergio Lessa
sergio_lessa[arroba]yahoo.com.br
Prof. do Depto. de Filosofia da UFAL e membro das
editorias das revistas Crítica Marxista e Práxis.
Website: www.sergiolessa.com
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