Em que pese o fato de séculos terem se passado desde a derrocada do mundo antigo e a crítica do teocentrismo medieval pelo pensamento moderno, a completa superação de algumas dascategorias centrais da ontologia tradicional, apesar de já efetivada no plano da teoria, ainda não foi absorvida e conscientemente integrada ao processo de reprodução da sociabilidade contemporânea. Pensamos, em especial, na relação entre historicidade e as categorias de essência e fenômeno.
Eventos desse tipo -- a incapacidade de a humanidade assimilar genericamente avanços já efetivados por indivíduos -- são freqüentes na história. Neste caso específico, as processualidades alienantes2 da vida cotidiana sob a regência do capital jogam papel decisivo. Ao fim e ao cabo,
tais alienações são as mediações que articulam, por um lado, a produção incessante do novo (em escala e intensidade crescentes) que caracteriza a reprodução da sociabilidade contemporânea com, por outro lado, a necessidade desta mesma sociabilidade restringir aos parâmetros do capital as novas potencialidades, que ela mesmo faz surgir, para o desenvolvimento do para-si do gênero humano.
Esta necessidade -- forçar a coincidência entre os horizontes do possível e os limites do capital -- conduz á identificação da essência do homem burguês com a essência humana em geral; resultando, por um lado e num plano mais genérico, na concepção de que "não há alternativas ao capital" e, num aspecto mais específico que agora nos interessa diretamente, na fixação ahistórica da essência do homem aos horizontes burgueses. Paradoxalmente, o mundo burguês que se transforma de forma incessante e cada vez mais intensa requer, como conditio sine qua non de sua reprodução, o reflexo ideológico de sua própria processualidade enquanto mera reposição do que ele já é: o futuro nada mais pode ser senão a reposição do presente.3 Limitado o desenvolvimento histórico ao horizonte do capital, identificada a essência do homem com a
essência do homem burguês, a revolução comunista se converte em uma absoluta impossibilidade ontológica.
é justamente esta operação ideológica que caracteriza a concepção da relação entre historicidade, essência e fenômeno de parte expressiva das vertentes teóricas que são hoje dominantes, notadamente aquelas de filiação liberal ou neo-liberal. De modo explícito e consciente ou de forma mais velada e sutil, ao se aproximarem da concepção da individualidade enquanto mônada e
locus da essência a-histórica do ser social terminam, mutatis mutandis, por afirmarem a presença de uma «natureza» humano-individual que torna insuperável os limites da sociabilidade burguesa.4 Por essa razão, a crítica dessa complexa operação ideológica que procura demonstrar a inviabilidade da emancipação humana se constitui em uma necessidade nos nossos dias. Longe de pretendermos resolver a questão, desejamos ao menos chamar a atenção para as contribuições originais e fecundas que o último Lukács tem a oferecer neste campo.
I
Colocando de forma sucinta a questão, se a essência for a-histórica, o locus da historicidade só pode ser a esfera fenomênica. Instala-se, deste modo, uma verdadeira antinomia: sendo o fenômeno a essência que se mostra, e sendo a essência a-histórica, a historicidade do fenômeno só pode se constituir a partir de uma «queda» da essência ao se transformar em fenômeno.
Essa queda levaria a essência, do seu patamar a-histórico e necessário, para um nível inferior, imediato, fugaz e mutável: o nível da historicidade. A historicidade se converteria, desse modo, em categoria que distingue o fenômeno da essência; ser histórico é ser fugaz e mutável, portanto é ser
menos essencial, é ser menos ser. Enquanto categoria que faz a mediação da queda da essência ao fenômeno, a historicidade passaria a jogar um papel ontológico negativo. Neste contexto, o verdadeiro "Ser" seria a-histórico, a essência (dos homens e em geral) não poderia ser transformadapela história, pelas ações humanas. Se a essência, que seria o verdadeiro ser dos processos históricos, não pode ser por estes tocada, então a história teria um necessário caráter teleológico: a história nada mais seria senão o processo de explicitação categorial de uma essência já dada no seu início. E, se a essência for identificada ao mundo burguês, estaríamos em um terreno tipicamente hegeliano, no qual a finalidade última da processualidade histórica nada mais seria que a explicitação categorial do mundo regido pelo capital.
Se Lukács estiver correto, foi para romper com esta ideologia justificadora do mundo burguês que Marx teria delineado uma nova ontologia.
Contra a concepção burguesa, propôs a identificação entre objetividade e historicidade, convertendo esta em uma categoria ontológica universal; ao mesmo tempo em que restringiu a teleologia á categoria operante apenas no trabalho, superando assim a concepção teleológica da história. Se, nas concepções anteriores, a historicidade se limitava á esfera fenomênica e a teleologia era a categoria ontológica universal por excelência, em Marx a historicidade é a categoria universal e a teleologia uma categoria particular aos processos de trabalho. Vejamos como Lukács, partindo de Marx, "redescobre" este argumento ontológico e, assim o fazendo, contra a concepção burguesa de
mundo, argumenta a possibilidade ontológica da revolução.
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