I
O debate contemporâneo envolvendo a categoria trabalho e sua centralidade para o mundo dos homens se transformou, em pouco mais de uma década, em um tema obrigatório das ciências sociais e da filosofia. E não por acaso: este talvez seja o item da agenda contemporânea que melhor polarize os impasses teóricos e políticos dos nossos dias. Por um lado, aqueles que questionam a vigência hoje da centralidade política da classe operária conceberam esta oportunidade como propícia para refutarem os fundamentos teóricos marxistas; por outro lado, entre os que afirmam a
centralidade política dos operários, concebeu-se o enfrentamento com as novas teorizações que questionavam o marxismo como uma tarefa política de defesa da categoria trabalho enquanto central para a sociabilidade.
Seria um absurdo querer negar as implicações políticas desta disputa teórica: a própria discussão demonstrou ter ela uma faceta inegável e diretamente política. Giovani Alves2 argumentou com reconhecida competência sobre este aspecto, e não é necessário que nos alonguemos sobre isto nesta introdução. Contudo, sem desprezar o significado dos aspectos políticos aqui presentes, nos parece inquestionável que esta questão não se esgota na esfera política; ou, dito de outro modo, o
debate acerca da centralidade da categoria trabalho para o mundo dos homens possui um aspecto filosófico-ontológico que se relaciona, mas não se esgota, na política.
O início deste debate pode ser datado: se a publicação por Gorz de
Adeus ao Proletariado - para além do socialismo3 inicia a associação mais direta da vertente sociológica deste debate ao seu aspecto político, desde 1945, na França, Georges Friedmann questionava Oú va le travail human?4e, desde o final da década de 1960, se desdobrou, no interior da então conhecida como Escola de Budapeste, um acirrado debate entre Lukácse seus discípulos envolvendo os manuscritos de sua Ontologia5; e uma das questões decisivas neste debate era justamente a avaliação da função social do trabalho no mundo dos homens.
O desenvolvimento da vertente filosófica deste debate, com uma relativa autonomia frente ao debate diretamente político, terminou por conduzir J. Habermas a produzir o que provavelmente se constituiu na mais sofisticada e melhor acabada defesa dos fundamentos do mundo democráticoburguês neste final de século: a sua Teoria do Agir Comunicativo6. Sob uma postura aparentemente crítica da sociedade contemporânea, Habermas defendeu como as mais adequadas mediações para a vida civilizada tanto a negociação de um consenso social, no plano político ideológico, como o mercado, no plano econômico. Seriam eles (consenso e mercado) limites e possibilidades insuperáveis á história humana. Como sobre isto já nos detivemos em outro lugar7, nos limitaremos aqui a indicar esta nossa avaliação.
Enquanto Habermas evoluía nessa direção, passando dos seus escrito na década de 1960, com a mediação de Para a Reconstrução do Materialismo Histórico8, para a Teoria do Agir Comunicativo -- e informado do que ocorria em Budapeste, no círculo mais íntimo de Lukács, por Agnes Heller,
que já então se aproximava do teórico alemão -- uma rica disputa se articulava entre Lukács e seus alunos e, após a morte do filósofo húngaro em 1971, entre estes e alguns lukácsianos radicados na Itália ou na França. Esta disputa envolveu, entre outras questões, a função social do trabalho na sociabilidade contemporânea, tomada na sua vertente mais abstratamente filosófica -- e, uma vez mais, as ressonâncias políticas aqui se fizeram presentes, mas de modo algum compreendem a todas as facetas do debate.
Em 1996 faremos 25 anos da morte de Lukács, e talvez valha a pena para informar o debate, mas também como homenagem ao filósofo húngaro, relembrar alguns momentos iniciais desta que se tornaria, uma década depois, a questão teórica mais candente nas Ciências Sociais dos nossos dias.
II
O ponto de partida central da ontologia marxiana, é que os homens, para existirem, devem ser capazes de se reproduzirem enquanto seres humanos; e que a forma específica desta reprodução é dada por uma peculiar relação dos homens com a natureza através do trabalho. A categoria do trabalho emerge, desta forma, como categoria central do ser social.
Não por acaso, portanto, a refutação da centralidade ontológica do trabalho enquanto categoria fundante do ser social tem sido uma constante nas tentativas de refutação do pensamento marxiano. O mundo dos homens seria muito mais do que as determinações imanentes da esfera do trabalho, e a postulação marxiana da categoria do trabalho enquanto fundante do ser social seria por demais parcial para dar conta da totalidade do mundo dos homens.
György Lukács e Agnes Heller possivelmente tenham travado um dos momentos mais interessantes do debate acerca desta problemática. Um debate, todavia, bastante curioso, pois travado em sua maior parte após a morte de Lukács, nos inúmeros escritos em que alguns dos antigos alunos de Lukács, da chamada Escola de Budapeste, romperam com o seu antigo mestre.
é sabido, pelas próprias informações transmitidas pelos alunos de Lukács, em um famoso exemplar da revista italiana Aut-Aut9 que, após a redação de Per una Ontologia dell´Essere Sociale, travou-se um intenso debate entre eles e Lukács. A resposta do filósofo húngaro veio através da redação dos Prolegomini all´Ontologia dell´Essere Sociale, onde Lukács reafirma, sob uma nova redação, todos os aspectos fundamentais de sua ontologia.10 Com isto, Lukács rejeitou como improcedentes as críticas realizadas pelos seus alunos.
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