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Neste particular, em seus esforços por superar as injustiças causadas pelo
nacional socialismo, Gustav Radbruch propôs uma fórmula que se tornou muito
conhecida. Esta, desde logo, não é a pedra filosofal, mas parece resultar muito
difícil, não obstante, encontrar outra melhor. Para Radbruch, o conflito entre
a justiça e a segurança jurídica deve resolver-se com a primazia do direito
positivo sancionado pelo poder, ainda quando o conteúdo seja injusto e
inconveniente, a não ser que a contradição da lei positiva com a justiça
alcance uma medida tão insuportável, que deva considerar-se como "falso
direito" e ceder passo á justiça.
é impossível, conclui o citado autor, traçar uma linha mais nítida entre os
casos de arbitrariedade legal e das leis válidas apesar de seu conteúdo
incorreto; mas outro limite poderá distinguir-se com toda claridade: quando
nunca se procurou a justiça, onde a liberdade e a igualdade4 que
integram o núcleo duro da justiça5 se negou conscientemente á
regulação do direito positivo, ali a lei não é somente "direito incorreto",
senão que carece por completo da natureza do direito, pois não se pode definir
o direito, inclusive o direito positivo, de outra maneira que não seja como uma
ordem e estatuto que, de acordo com seu sentido, estão determinados a servir á
justiça. Como já se disse em outro lugar, a inumanidade do direito é
infinitamente mais indesejável que a ausência de todo direito (Atahualpa Fernandez,
2006).
Seja como for , a crítica da segurança jurídica leva em conta a falta de um
adequado conhecimento acerca dos desdobramentos dos vínculos sociais
relacionais sobre os quais incide o direito, que só aparentemente pode ser
estático. Funciona a segurança e a certeza jurídica como ponto de partida para
o controle da racionalidade e razoabilidade das decisões jurídicas que passa a
depender, assim, ao menos em uma muito ampla medida, da busca frenética de
garantia destes dois valores destinados a garantir, a qualquer custo, a ordem e
a estabilidade social A segurança e certeza jurídica, como segurança e certeza
da própria ordem social e do direito, constituem um alvo a ser atingido.
Ao contrário, a busca da justiça, por meio da equidade, como mecanismo de
aprimoramento da artesanal e prudente tarefa de julgar, da manufatura da
interpretação e da aplicação do direito com base no aparato normativo válido e
legitimamente imposto, constitui um esforço que acaba por relativizar e
contextualizar a própria noção de segurança jurídica. E porque, por definição,
um enunciado normativo não pode, por si mesmo, oferecer uma resposta unívoca ás
demandas objeto de qualquer tipo de controvérsia (já que a vida produz, em
realidade, muito mais problemas jurídicos que os que ao legislador foi possível
prever), neste "conflito" entra em cena, com toda evidência, o caráter razoável
- no sentido dado por Aristóteles no Livro III da ética a Nicômaco - do direito: razoável há de ser a conexão
entre a norma e as exigências contingentes do caso; razoável, a valoração e a
eleição entre as diferentes alternativas que tem que realizar o intérprete no
jogo combinado de passos lógicos e de avaliações em que consiste seu
procedimento. Razoável, por último - inclusive no sentido de uma argumentação
que contenha "boas razões" para que a decisão seja admitida -, tem que ser a
justificação judicial das eleições em que se fundamenta a decisão, a qual,
nesta condição, não somente deve viabilizar um efetivo equilíbrio entre
exigências contrapostas como, e muito particularmente, lograr uma maior
aceitabilidade e consenso por parte da comunidade na qual se insere.
Em resumo, determinados critérios de razoabilidade do sistema jurídico, do
ordenamento normativo e de suas partes, e do conjunto de ações a que se refere
o direito não podem senão intervir como princípios ordenadores da argumentação
jurídica, tanto no momento da decisão como no de sua justificação. é algo
profundamente arraigado na idéia mesma de administração da justiça que a jurisdição
transforme razoavelmente as normas em decisões equilibradas (seguras) e
adequadas (justas) ao caso decidendo. O mesmo princípio fundamental do "livre
convencimento" do juiz, se não pretende terminar em arbítrio subjetivo do
intérprete, tem que submeter-se ás regras de razoabilidade e ao peso de uma
adequada motivação.
Por ele, a razoabilidade se converte, ao mesmo tempo, em requisito subjetivo do
juiz-intérprete e requisito objetivo do direito. Portanto, entre as distintas
formas da razão há uma especificamente pertinente ás operações dos operadores
do direito, e essa forma específica está representada precisamente pela
prudente razoabilidade: pelo fato de mover-se no campo prático, esta não pode
fundar-se em uma necessidade lógica ou empírica estreita, senão em prudentes
valorações argumentativas que trate de ajustar adequadamente os valores da
justiça e da segurança jurídica.
Em realidade, não parece demasiado afirmar que os critérios definidores daquilo
que se considera segurança jurídica variam - como os de certeza da própria
norma jurídica - no que tange aos seus contornos de interpretação e aplicação,
e muito particularmente se se considera a ressonância da própria variabilidade
e flexibilidade argumentativa ou mesmo o laivo - ainda que mínimo - de
imprevisibilidade do modo de atuar e julgar de cada operador do direito.
Com efeito, admitidos os fatores determinantes da diversidade de alternativas
de que dispõem os juízes, tem-se a inviabilidade fática do unívoco na maneira
como estes selecionarão as informações recebidas, nos seus peculiares modos de
condução de uma determinada demanda , assim como nas suas respectivas aptidões
para conhecer, problematicamente, os diversos dados que se lançam em um
conflito de interesses em particular.
Decerto que causa repulsa a uma visão puramente positivista do direito a adoção
de formas puramente indutivas, intuitivas de conhecimento e de manufatura da
decisão como meio para se chegar á solução de um caso decidendo; mas o
contrário, exarcebando-se a tentativa de afastar qualquer componente pessoal,
intuitivo ou emocional do julgador, é igualmente inaceitável senão mesmo
"irreal". é que se várias soluções ou respostas corretas são possíveis para um
mesmo problema jurídico, a eleição final, necessariamente única, se apresenta
então como não derivada exclusivamente do sistema, circunstância que, de
pronto, levanta ao menos três questões fundamentais: de ordem epistemológica,
de ordem axiológico-política e de ordem subjetivo-individual do
jurista-intérprete.
Ademais, considerando-se que é na realidade da função jurisdicional que se
assenta, em sua versão mais aproximada da vida, a concreta e
problemática-decisória realização do direito, como expressão dinâmica da
normatividade e do próprio sistema jurídico, a idiossincrasia e a peculiaridade
de que se reveste cada manifestação judicial não pode ser desconsiderada. Daí
que não parece possível descartar, em nenhum momento, a eventual possibilidade
de equívocos por parte do julgador no desenrolar de sua tarefa interpretativa.
Como o próprio nome indica, o resultado primeiro do provimento judicial
denomina-se "sentença", palavra que tem sua raiz etimológica no ato sentir,
igual que a palavra sentimento - para usarmos as palavras Capelletti. E não se
pode pretender olvidar que o exercício da ponderação centra-se, em última
análise, considerando suas características e efeitos principais, sob o espectro
da competência exclusiva e da concepção particular de cada juiz.
O que, por certo, e apesar da inafastabilidade do "toque pessoal" do julgador,
não pode levar a se partir da suposição de que todos os juízes estejam dotados
de um critério positivo de apreciação, mas antes que esta circunstância
justifica e impõe a busca de balisas e critérios metodológicos que venham a
dotar de racionalidade e razoabilidade o exercício da função interpretativa na
tarefa constitutiva, adaptadora e conformadora das pautas normativas e
valorativas em questão, assim como na apreensão e avaliação do material factual
respectivo. Ou seja, trata-se de sedimentar a tarefa interpretativa como um
mecanismo através do qual a problemática realização do direito proporcione, por
meio da segurança e da certeza da normatividade jurídica, e na maior medida
possível, a histórica e concreta totalização do projeto axiológico comunitário
(tanto na sua intenção fundamental como crítica) e em razão do qual a sociedade
em causa se venha a constituir em uma comunidade verdadeiramente ética.
Dito de outro modo, porque um puro sistema de segurança e certeza jurídicas ,
indiferente ou contrário á justiça, constitui por si mesmo a negação do próprio
direito, torna-se imperiosa a necessidade de, no plano metodológico, superar os
unitelarismos - quer do legalismo estrito, que privilegia a segurança em
prejuízo da justiça, quer do judicialismo casuístico, que favorece a justiça
com menoscabo das exigências essenciais de segurança -, mediante soluções que
atendam equilibradamente á norma e ao caso, assim como ás reclamações desses
dois valores fundamentais do direito, isto é, mediante soluções que tratem de
alcançar um estado de coisas onde a justiça e a segurança jurídica em presença
alcancem seu mais alto grau de vigência e eficácia possível.
Depois, não somente a natureza humana tem uma natural apetência para a ordem
que garante a paz, como parece não haver uma irredutível antinomia entre estes
dois valores, mas uma relação de particular polaridade que os conexiona em uma
dialética (que constitui o próprio ritmo histórico da vida do direito) entre
dois momentos: o da estabilização ou de ordem traduzida pela objetivação ou
realização do direito; e o da superação ou revisão que define um novo sentido
jurídico que tende a estabilizar-se e a superar-se.
A segurança é a justiça como que a suspender-se da imanente historicidade e a
pretender uma objetividade tendencialmente estática e mais formalizante
(Castanheira Neves, 1995). Em síntese, a segurança jurídica terá sempre de ser
justa ( de realizar historicamente a idéia de direito mediante a busca das
razões morais para a ação que o
direito possa vir a oferecer) ou a expressão ética de uma ordem de direito,
pois não é em função da segurança que se afere o direito senão em função do
direito que se afere valor da segurança jurídica: esta deve estar ao serviço da
justiça e legitimar-se perante ela.
Pois bem, todas estas considerações acerca das dimensões normativa
(estritamente vinculada com o problema da segurança jurídica) e valorativa
(mais bem direcionada ao problema da justiça) da tarefa interpretativa
impõem-nos a necessidade de reflexionar , a partir de agora, sobre uma peculiar
característica do pensamento jurídico dominante ao largo de toda a Idade
Contemporânea: a da "oscilação pendular" entre a doutrina do direito natural e
o positivismo jurídico.
Nesse sentido, parece possível e razoável falar-se de um permanente "ir e vir"
de uma para outra destas duas orientações doutrinárias, que tendem a
considerar-se contraditórias segundo o simplificante esquema mental da
"exclusão recíproca". é certo que não se pode (e não se deve) escamotear as
diferenças entre estas duas correntes de pensamento e muito particularmente a
de que a postulada aceitação de um conjunto de "normas jurídicas válidas para
todo o sempre" identifica uma vilipendiação frontal do "credo positivista"6 . A verdade, contudo, é que facilmente se pode constatar que também elas se
encontram em muitos aspectos não menos importantes. Esta suposição encontra
também sustento em que, por um lado, MacCormick (1978) se inclui entre os
positivistas, mas, por outro lado, questiona a existência de uma "nítida linha
de separação" entre as "teorias positivistas" e as "teorias jusnaturalistas".
Assim, a orientação comumente axiomática destas doutrinas, o respectivo
cumprimento na codificação e o racionalismo teorético que as caracteriza a
ambas são notas desveladoras de um "parentesco" que não se pode disfarçar ou
pretender dissimular. Tanto o jusnaturalismo como a orientação legalista que se
lhe contrapõe sustentam a redução do direito positivo á expressão da juridicidade
oferecida por um corpo de normas pré-objetivado, o que, evidentemente,
corresponde á expulsão do cenário jurídico do problema suscitante da decisão
concreta e da normatividade suscetível de a fundamentar do núcleo das dimensões
constitutivas da juridicidade global do sistema e, indiretamente, ao apagamento
da historicidade que, fruto da experiência
prática ligada áquele primeiro vetor e cunhada pelas valências práticas informantes deste
segundo, anima e, portanto, humaniza o direito.
Pode até mesmo dizer-se que quer o positivismo jurídico, quer o jusnaturalismo,
se definem por referência a uma realidade pré-existente: aquele, por referência á realidade das leis (im-) postas (antes)
pelo poder constituído; este, por referência a uma natureza humana como "produto final" do direito ou a uma "realidade de caráter absoluto" que não é
instituída pelo homem, mas antes o vincula.
E encontram-se ainda, repare-se, no unilateralismo, de sinal diverso, de que
dão mostras e em que se comprazem: o empirismo típico da perspectiva
positivista limita-se a considerar aditivamente normas e mais normas; esta
movimentação exterior distrai-o completamente dos fundamentos do movimento e
não o deixa ver que são exatamente esses fundamentos a instância fundamentante
do seu movimentar-se. A mera descrição do sistema jurídico, a sua pretensa
observação neutral dirigida de fora para dentro, que recusa o empenho de uma
co-participação responsabilizante por parte do operador do direito (e
nomeadamente do juiz), não é mais do que uma "falácia positivista". Por sua
vez, o jusnaturalismo não compreende que o movimento que recusa ao definir-se
por um quietismo que o nega é re-fundamentante do fundamento que, também
falaciosamente, pré-fixa8 .
Dito isto, estamos agora em condições de compreender que, não obstante os
conluios em que se co-envolvem, o positivismo jurídico legalista e o
jusnaturalismo essencialista se distinguem muito claramente quando se os coloca
perante a questão da interpretação jurídica e do problema que aqui particularmente
nos ocupa: diretamente, o da (justa) legitimação da ordem jurídica e,
indiretamente, o de sua relação com a questão da segurança jurídica.
Para começar, para a doutrina do direito natural o direito objetivamente
reconhecível é predeterminado no logos, na lei divina ou na razão. Já de acordo
com o positivismo, nada está predeterminado ou pelo menos não são reconhecíveis
conteúdos precedentes do direito; o conteúdo do direito é, pois, discricional.
Depois, tanto á tradição do direito natural como a do positivismo jurídico se
levanta o problema da tarefa interpretativa no momento da aplicação da lei. Mas
são problemas diferentes . E bem se sabe que, no que se refere propriamente ao
espaço do direito, parece muito intuitivo que toda proposta metodológica, de
per si, remete a uma certa concepção ontológica do próprio direito : por
exemplo, a interpretação exegética remete á idéia do direito como expressão de
uma vontade legislativa perfeita e completamente declarada; a interpretação
segundo a intenção do legislador, á idéia positivista do direito como (mera)
vontade daquele; a interpretação sistemática, á idéia do direito como sistema;
a interpretação histórica, á idéia do direito como fato de formação histórica;
a interpretação sociológica, ao direito como produto social; a interpretação
segundo cânones de justiça racional, ao direito natural, e assim
sucessivamente.
Assim que se o positivismo legal intenta desconectar lei e justiça (pretendendo
a neutralidade axiológica do ordenamento jurídico e do operador do direito) e
identifica a lei, em termos de Hart, seguindo uma "regra de reconhecimento" (no
sentido de que são leis as que derivam das fontes adequadas, sejam ou não
justas estas leis), então o positivismo jurídico tem também um problema
hermenêutico de aplicação, a saber: como identificar a lei ou leis que dão
cobertura ao caso particular que se julga e, muito particularmente, como
reduzir ou minimizar a incerteza ("penumbra de incerteza", dizia Hart) que
rodeia a aplicação estritamente semântico-formal do direito?
O jusnaturalismo, por sua parte, não tem somente um problema formal de
interpretação da regra; tem também um problema moral, porque para esta tradição
( que se concentra no direito como uma classe de prática que subministra razões
morais para a ação) a lei tem que ser expressão e veículo da justiça, e aplicar
o direito é pois fazer justiça e realizar um ato moral. E aqui já não entrariam
somente considerações de pragmática da norma, pois o contexto de aplicação da
lei pode haver mudado, mas também da influência de outros fatores que
necessariamente intervêm no processo de aplicação do direito, como por exemplo:
a subjetividade do juiz, que é mediador, com todas suas peculiaridades pessoais
e compromissos, inserto em determinada comunidade, que é parte de um sistema
institucionalizado do direito, etc.
Nesse preciso sentido, ambas as tradições nos põe diante de dois grandes
problemas hermenêuticos distintos (semântico formal e pragmático moral) os
quais, por sua vez, pressupõem distintos modelos de juiz: o do magistrado que
deve limitar-se a aplicar a lei de forma moralmente neutra, mas com o maior e
mais rigoroso cuidado para não descuidar do sistema jurídico; e o do juiz que
deve aspirar á correção moral e a administrar a justiça na aplicação da lei.
E quaisquer dos dois têm problemas morais convergentes, pois se é verdade que o
positivismo jurídico põe em mãos da política toda a carga moral do sistema
legal, isto é, em mãos do legislador (com o que a justiça pode ser sequestrada
pela lógica do poder e o sistema legal ser pervertido pela natureza
eventualmente oligárquica ou tirânica do regime político), não é menos certo
que sobre-responsabilizar ao juiz na administração da justiça, dando-lhe
liberdade e competências excessivas de interpretação, pode vir a desembocar em
um processo de interpretação ilimitada das normas, na arbitrariedade decorrente
de um desregrado subjetivismo ou, em última instância, na tirania do poder
judicial.
Pois bem, já no que se refere ao tema da legitimidade da ordem jurídica e de
sua relação com a questão da segurança jurídica, como acentua Hruschka, a
rejeição da perspectiva jusnaturalista na impostação do mencionado problema
conduz verdadeiramente a uma renúncia a considerá-lo. Com efeito, o positivismo
jurídico afirmou-se sempre pela negativa - contra o pensamento do direito
natural - e através de um dogma que apresenta duplo aspecto: um aspecto
intrínseco, que se consubstancia na tese da "auto-suficiência" do direito
positivo; e um aspecto extrínseco, em que aquele primeiro se projeta, que se
deixa sintetizar no sem sentido da pergunta pela legitimação do ordenamento
jurídico. Se o único paradigma que permite pensá-la era, postuladamente, o
jusnaturalismo e se este era o inimigo a abater, nada mais restava do que
riscá-la do horizonte das preocupações justificadas.
Outra será, porém, a conclusão a que chegamos se não reduzirmos a positividade
do direito á sua descaracterizadora hipertrofia por parte do positivismo
jurídico. Esta última orientação, centrada no bipolarismo direito
natural/direito positivo, considerava que qualquer tentativa de legitimar o
direito positivo remeteria necessariamente para o pré-positivo ou para o
trans-positivo, e assumiria sempre "caráter jusnaturalístico".
O modo mais radical de evitar o dilema era complexo: negava-se a existência do
direito natural. Mas, por cautela, não deixava de se acrescentar que, mesmo na
hipótese de ele existir, nunca o homem o poderia conhecer; e se acaso o
lograsse, não seria de qualquer maneira capaz de comunicá-lo. Para que então
dispender esforços com o objetivo de vir a conhecer o incognoscível, porque
inexistente, direito natural? E se se concedesse na superação da barreira
determinada por esta impossibilidade: qual o sentido de um empenho na intelecção
do ininteligível direito natural? E pressuposto ainda o absurdo de uma resposta
conclusiva á interrogação precedente: como comunicar o "incomunicável" direito
natural?
Sem embargo, de que modo é que a positividade do direito pode escapar á obsessão
empirista do legalismo? Para o positivismo jurídico - que, recorda-se,
corresponde nuclearmente a uma "acrítica aceitação do status quo ante" -, o significado do
direito não é o de uma tarefa a cumprir pelo homem, que somente por sua
mediação se realizará como pessoa, mas algo fossilizado que, em vez de suscitar
uma provocante compreensão instituinte, não gera mais do que uma inventariação
arqueológica, na vã e obsessiva tentativa de garantir, a todo e qualquer custo,
a segurança jurídica. Mas esta não é, afortunadamente , a única via trilhável.
Para o que aqui nos interessa, contudo, é mais importante a conclusão que
deflui da consideração de que o direito é positivo quando "ex -posto",
radicando, portanto, a sua "positividade" na respectiva "ex -ponibilidade". E
uma vez superado o prejuízo positivista da imanente inerência do significado de
um texto que o corporifica, diremos antes que o direito positivo é a tradução
lingüística e a objetivação de uma normatividade que, por conseguinte ( e
contra a pretensão do positivismo jurídico que, dado o equipamento analítico de
que dispõe é satisfatório para observar e descrever fatos, mas inadequado para
compreender sentidos ), não está já nas palavras, mas apenas lhes advém quando
se pergunta pelo seu significado.
Este ( o enunciado normativo positivamente ex-posto) remete sempre para um
plano extra-lingüístico, pois não identifica uma "qualidade" das palavras, mas
a sua "relação" com a vida. Quer tudo isso dizer que as palavras - e, portanto,
também os textos normativos - são "manifestações" de coisas que significam, o
que desvela a inconcludência da tese nuclear da hermenêutica positivista
segundo a qual o sentido é imanentemente inerente ás palavras. Assim sendo,
tanto as proposições coloquiais como as especificamente jurídicas somente
poderão ser compreendidas (somente se logrará discernir o respectivo sentido)
quando se reconhecer que elas remetem para um plano extra-normativo (ou
extra-positivo), para uma relação de vida, onde a questão da segurança jurídica
será sempre um valor (por certo essencial) a se considerar de forma histórica e
circunstancialmente condicionado á idéia de justiça material. O enunciado
normativo não é mais do que um elemento de um ou mais atos sociais realizados
dentro de certo contexto histórico intersubjetivo.
Dito de modo mais simples, os significados dos enunciados normativos devem
poder ser analisados nos contextos das situações interativas e intersubjetivas:
portanto estão presentes na linguagem não somente os estados de coisas, a que
se referem ás palavras, senão também as intenções dos indivíduos-falantes
(Searle, 2000) e inclusive as relações interpessoais por meio das quais as
palavras recebem seu valor (Habermas, 1998).
é
verdade, sem dúvida alguma, que a complexa tarefa hermenêutica do operador do
direito ( e nomeadamente do julgador) implica uma atividade interpretativa do
ditado normativo (e do fato que se tem que valorar) que nunca é meramente
literal ou gramatical, nem sequer somente sintático, senão também e por excelência
semântico-cultural. Na linguagem jurídica (ainda que esteja caracterizada por
sua tecnicidade) interpretar a lei significa reintroduzir as expressões desta
última no sistema jurídico global e no âmbito histórico-cultural ao qual
pertence. Um fenômeno não pode ser observado e compreendido se não estiver
inserido dentro do sistema de relações em que se encontra; e o fenômeno
jurídico pertence, precisamente, ao duplo sistema do direito e da vida8 .
Isto implica, depois de tudo, oferecer uma definição de segurança e certeza
jurídica que não repousam sobre a simples previsibilidade das decisões senão,
igualmente, sobre a legitimidade substancial de seu conteúdo e de seus efeitos;
em segundo lugar, que tal legitimidade não é medida - nem apurável - somente por
referência ao sistema jurídico e a uma possível interpretação globalmente
coerente do mesmo, senão que requer, de forma simultânea e concorrente, uma
tarefa interpretativa e argumentativa que ligue a decisão, o caso concreto, o
sistema jurídico, a forma de vida (dominante) e as funções próprias de nossas
intuições e emoções morais. A sua tendência volta-se ao conhecimento abrangente
da cena que se lhe oferece a historiar, perpassada pelos ideais de justiça, de
certeza do direito e de segurança jurídica (valores que, em última instância,
resultam de nossas intuições e emoções morais e de nossa inata capacidade para
inferir os estados mentais e predizer o comportamento dos demais),
contextualizados e só visíveis em cada caso.
Nesse sentido, sempre que saibam renunciar as suas próprias, idiossincrásicas e
respectivas unidimensionalidades, o jusnaturalismo e o positivismo jurídico se
apresentam como aspectos não renunciáveis da edificação de uma teoria do
direito como prática social (e institucional) de tipo interpretativo e
argumentativo que, graças aos diferentes agentes da praxis jurídica, venha a
penetrar na vida cotidiana de uma comunidade ética, cultural e histórico-social9 .
Um equívoco comum das interpretações naturalistas do direito consiste em entender
que a natureza humana contém o que poderíamos chamar o "produto final" do
direito, enquanto que para uma interpretação positivista do fenômeno jurídico o
melhor caminho é sempre o de negar, pura e simplesmente, a natureza humana.
Ocorre que domínio das preferências humanas é, como bem sabemos, o resultado de
uma maduração dentro de um grupo social e com adaptações a acontecimentos
históricos determinados , maduração que conduz desde as constrições gerais para
a percepção e o armazenamento discriminatório das representações culturais e
cognitivas ao repertório final "e muito plástico" dos padrões de atividade de
nosso cérebro dos que emerge nossa conduta.
Assim que a iniludível natureza humana impõe o que poderíamos chamar as "regras
do jogo" mas não o resultado final10 . O mais significativo, não
obstante , é a possibilidade de fixar, dentro dessas regras do jogo, certos
valores de alto rango que se deduzem do sentido do direito como um instrumento,
uma estratégia sócio-adaptativa, para a convivência social (i.e., um sistema
normativo de solução de controvérsias e guia de condutas mediante regras que
proporcionam razões para a ação). Por muito que a diversidade cultural e a
facilidade da aculturação permitam impor de partida quase qualquer regra jurídica
"e a História nos mostra todo um catálogo de propostas que levam a situações
monstruosas" as regras "aberrantes" acabam por resultar, no fundo, como
ilegítimas , porque contrárias ás nossas intuições e emoções morais fixadas
pela seleção natural.
Neste particular, pese a seu enfoque não evolucionista, a Teoria da Justiça de
Rawls se baseia precisamente nesse suposto. O ser humano dispõe de um sistema
de qualificação moral que lhe permite qualificar como "boas" não quaisquer das
ações que se proponham a levar a cabo senão algumas muito concretas: aquelas
nas quais "bom" significa "bom para todos" (Tugendhat, 1979). Isso não quer
dizer, evidentemente, que o ideal de "bom para todos" se haja cumprido sempre,
e nem sequer parece possível depreender que se vá a cumprir alguma vez. Mas
estabelece uma linha de progresso moral: a que está ligada á extensão cada vez
maior do grupo ao que lhe cabe a qualificação de "todos". E uma linha de
progresso intuída em torno do conceito universalizável de "bom" importa, fundamentalmente,
na circunstância de que embora não pareça possível conhecer todo o conteúdo
concreto do direito (mas somente determinadas estruturas, valores e princípios,
ainda que só negativamente), em nenhum caso será válido ou legítimo um "direito
manifestamente injusto"11 .
Isto significa, em termos mais modestos e mais realistas, um compromisso
específico e virtuoso - no sentido da virtú de Maquiavel (que Cícero denominou virtus e os republicanos ingleses traduziram como civic
virtue ou public-spiritedness)-
do operador do direito no sentido de construir desenhos institucionais,
normativos, discursivos e sócio-culturais os mais amigáveis possíveis para com
as funções próprias de nossas intuições e emoções morais, e, em segundo lugar,
quando isso não seja inteiramente possível, que se defendam desenhos
institucionais, normativos, discursivos e sócio-culturais opostos a sempre
possível manipulação perversa dessas intuições e emoções.
é necessário, portanto, ter sempre presente que o fundamento do direito e da
própria atividade hermenêutica se formula precisamente a partir de uma posição
antropológica e põe em jogo uma fenomenologia do atuar humano. Que somente
situando-se desde o ponto de vista do homem e de sua natureza será possível ao
julgador representar o sentido e a função do direito como unidade de um
contexto vital, ético e cultural: o homem , ponto de partida e chegada do
fenômeno jurídico, que vive das representações e significados desenhados para a
cooperação, o diálogo e a argumentação . Que, em seu "existir com" e
situado em um determinado horizonte histórico-existencial, pede continuamente
aos outros, cuja alteridade interioriza, que justifiquem a legitimidade de suas
eleições aportando as razões as subjazem e as motivam.
Compreender a natureza humana, sua limitada racionalidade, suas emoções e seus
sentimentos parece ser o melhor caminho para que se possa construir, com a
participação integral, ética e responsável do operador do direito, um modelo
institucional e normativo que, compatibilizando justiça e segurança jurídica,
permita a cada um viver com o outro na busca de uma humanidade comum.
Não devemos crer em uma fratura entre uma realidade "autônoma", que influi no
direito e se desenvolve a seu lado, e o direito mesmo: somos nós os que
produzimos a realidade do direito e a edificamos enunciando o que este mesmo é
em sua essência. Há direito onde sujeitos diferentes discutem e desenvolvem,
submergindo-se na praxis, proposições e enunciados normativos a partir de uma
concepção republicana democrática de justiça e segurança jurídica, quer dizer,
de uma concepção republicana democrática cujo peculiar talante de modelo
ético-político aberto aporta valores de cidadania e de metodologia
jurídico-política essencialmente úteis para tomar o direito como um instrumento
de construção social e, muito particularmente, para assimilar os câmbios
formais e materiais no processo de toma de decisões ante a dinâmica fluída (e
por vezes enlouquecida) do "mundo da vida" cotidiana.
Afinal, o direito encontra-se entre os fenômenos culturais mais poderosos já
criados pela humanidade, e precisamos entendê-lo melhor se quisermos tomar
decisões jurídicas bem informadas e justas. Embora haja riscos e desconfortos
envolvidos, nesse tema, devemos tomar fôlego e deixar de lado nossa relutância
tradicional de investigar cientificamente os fenômenos jurídicos, de modo a
compreender como e por que o direito inspira tal devoção, e
descobrir como deveríamos aperfeiçoá-lo a partir do estabelecimento de elos com
a natureza humana.
Notas de rodapé convertidas
1. Uma observação paralela acerca da noção de liberdade: para começar, diremos
que para ser plenamente indivíduo, para gozar de plena existência individual,
separada e autônoma, é necessária a liberdade plena. E a liberdade (plena), a
exemplo do que ocorre com a individualidade, também não pressupõe a (plena)
existência ab initium et ante saecula de indivíduos (plenamente) separados e autônomos, senão que a (plena)
existência separada e autônoma desses indivíduos pressupõe a (plena)
institucionalização histórico-secular da liberdade. De fato, na vida social
tudo é possível : o melhor - se houver - e, desde logo, o pior. Tão é tudo
possível na vida social, que até é possível nela a declaração de inexistência
individual, o certificado de defunção social de alguns humanos: a escravidão é
a morte do "indivíduo" para todos os efeitos do trâmite social, sua
desumanização total por via de redução do sujeito a mero instrumentum vocale , segundo a célebre
formulação do direito romano ( ou "instrumento animado" , para usar a expressão
de Aristóteles).Para existir como indivíduo separado e autônomo é , pois, e ao
menos , necessária a prévia institucionalização da liberdade; é necessário não
ser escravo, não ser tratado como um instrumento , senão como um fim em si
mesmo - aliás , dito seja de passo, perde-se habitualmente de vista que quando
Kant formula a exigência de tratar aos demais como fins em si mesmos, não está
dizendo nada radicalmente novo e "moderno", mas que está repetindo o mesmo que
sustentaram todos os filósofos morais e todos os juristas republicanos ao menos
desde Aristóteles, ou seja: que aos livres não se lhes pode tratar como
escravos , quer dizer, como instrumentos ( "vocais" ou "animados"). Pois bem, o
liberalismo entende por liberdade somente a liberdade negativa, e esta é
definida de tal maneira que uma pessoa é livre quando está livre de coerção,
quer dizer, que não há ninguém nem tampouco uma lei que lhe ponha impedimentos.
De liberdade positiva se fala, em câmbio, quando uma pessoa tem a capacidade e
a oportunidade de atuar, ou seja, de que o Estado não só deve proteger senão
também ajudar o indivíduo, de criar oportunidades para que o indivíduo se possa
ajudar a si mesmo. Para citar um exemplo que se encontra em Hayek: no primeiro
caso, um montanhês que cai em um abismo do qual é incapaz de sair, é livre
neste sentido porque não há ninguém que o impeça de sair; já no caso de
liberdade positiva, nosso montanhês precisamente não seria livre neste sentido,
se não pode sair, ainda que ninguém o impeça - falta-lhe a capacidade e a
oportunidade de atuar. O direito proíbe, por exemplo, matar a outro indivíduo
se não é em circunstâncias muito extremas, e isso supõe uma restrição óbvia de
meus cursos de ação, supõe uma interferência. Mas dita interferência não é
arbitrária, senão que precisamente está justificada pela proteção geral da
liberdade dos cidadãos, assim que não pode implicar uma violação de minha
liberdade mais que em um sentido muito primário. No mesmo sentido, seguramente
não seríamos verdadeiros cidadãos se o direito consentisse a alienação de nossa
liberdade, se, ponhamos o caso, reconhecesse validez pública a um contrato
civil privado, livremente subscrito - coacti
volunt -, por meio do qual uma das partes se vendesse a outra na
qualidade de escrava, participando do preço. Há direitos de todo ponto
inalienáveis, como o direito a não ser "objeto" ou propriedade de outro. E são
inalienáveis, porque não são direitos puramente instrumentais, senão direitos constitutivos
do homem mesmo como âmbito de vontade soberana: direitos que habilitam publicamente a existência de in-divíduos
dignos, separados, livres e autônomos. Certamente que o fato de que
a lei limite nossa capacidade de eleição, proibindo a alienação voluntária da
própria liberdade é uma interferência. Mas bem sabemos que não nos molestam as
interferências como tais, senão somente as interferências arbitrárias. As
interferências legais não arbitrárias não somente não diminuem ou restringem em
nada a liberdade, senão que a protegem e ainda a aumentam, como claramente se
pode constatar nos exemplos aqui mencionados. Sem inalienabilidade legal da
própria pessoa - para seguirmos no exemplo dado- , não há liberdade, nem há
dignidade, e nem, se bem observado, existências políticas individuais,
autônomas e separadas. Trata-se, em síntese, de uma concepção robusta de
liberdade, aqui entendida em seu sentido republicano-democrático, como "não
interferência arbitrária", ou seja, como um aparato histórico-institucional que
imponha ao Estado a obrigação de
assegurar e de promover a liberdade necessária para que o indivíduo possa
autoconstituir-se como entidade separada e autônoma, e que, em igual medida,
garanta ao mesmo plena capacidade para resistir á interferência arbitrária não
somente do próprio Estado, mas também de si mesmo e de todos os demais agentes
sociais. Esta restrição legal ( como não interferência arbitrária e própria da
liberdade republicana) característica de nossas democracias é um dos
testemunhos mais patentes do fato de que a base do mundo político moderno foi
sentada pela tradição republicana. Representam o núcleo duro republicano de
nossas democracias, resistentes até agora (embora por vezes mitigadas e
vilipendiadas de forma dissimulada) á "desconstrução" que o liberalismo operou
na modernidade. Sobre liberdade republicana e sua diferença com relação a
liberdade liberal: Pettit, 1999; Overero et
alii, 2004; Skinner, 1996 , 1998; Sandel, 1982; e Atahualpa
Fernandez, 2002 e 2006.
2. Note-se - oportunamente - que, em matéria de hermenêutica jurídica, não há
no sistema jurídico norma que oriente sobre que princípio (ou valor) jurídico
deve ser privilegiado e qual deve ser depreciado em um determinado caso
concreto, ou seja, critérios normativos, absolutamente definidos em todo tempo
e lugar, para fixar a dimensão de peso ou de importância entre princípios ou
valores concorrentes ou conflitantes. Neste particular, temos nos manifestado
no sentido de que, em caso de concorrência entre princípios, o "princípio da proporcionalidade" ou da "razoabilidade"
(chama-se como quiser) é suficiente para operacionalizar um processo de cedência recíproca ou de concordância prática, no sentido de
congraçar os princípios ou valores aparentemente contraditórios, desde que
abdiquem da pretensão de serem interpretados de forma absoluta. Sem embargo, no
caso de "conflito" ou "contradição" de princípios ou valores (não incomum e
insolúvel mediante o processo de cedência recíproca ou de concordância
prática), o critério do maximin que proponho parece ser o mais apto e eficaz para superar, sempre diante do
caso concreto, a referida colisão, mediante a preferência ou prioridade, na efetivação, de
certos princípios ou valores frente aos restantes. Dizendo de outro modo, o
peso ou a importância do princípio ou valor a ser aplicado se decide pelo
intérprete á luz do caso concreto mediante a aplicação do critério maximin, atendida a seguinte condição: a
pessoa que, em relação com a repartição dos direitos e valores individuais
próprios da validez da pretensão, está na posição mais desvantajosa,
deve-se-lhe conceder o argumento prioritário decisivo, quando, de outorgando-se
a prioridade á meta-ordem individual da pessoa que se encontra em melhor
situação, ela venha a ser colocada em uma postura ainda mais desvantajosa. Isto
significa, em linguagem mais simples e geral, um compromisso mais específico em
relação aos interesses e liberdades dos menos favorecidos na sociedade - aliás,
o aspecto mais importante da eqüidade - isto é, o de uma aversão espontânea e
reflexiva á desigualdade e a efetiva proteção ás minorias, aos mais
desfavorecidos, aos direitos humanos e fundamentais, ás liberdades
fundamentais, etc. ( cfr. Atahualpa Fernandez. Argumentação
jurídica e Hermenêutica, 2006).
3. é que as decisões jurídicas, dependendo do grau que assumam no ordenamento
jurídico, constituem inegável instrumento de estabilidade e alteração da
realidade social, de modo que o intérprete tem indisfarçável "responsabilidade
social" com a decisão jurídica que profere. Esta "responsabilidade social" nada
mais é do que um componente da prudência que deve iluminar todo o processo
decisório, a fim de serem afastadas as decisões estapafúrdias, desconectadas do
sistema jurídico e do contexto histórico-social em que são proferidas. E o
juiz, mais do que qualquer outro intérprete do direito, tem elevada á máxima
potência essa exigência de prudência com o teor das suas decisões. O direito,
como instância da realidade, tem inegável função de promover a estabilidade social.
Sob este prisma, a prognose não
somente influi diretamente sobre os efeitos que a decisão jurídica provocará no
futuro senão que também manifesta a prudência no ato de julgar, pois revela a
preocupação do intérprete com as conseqüências futuras de uma decisão jurídica
sobre a estabilidade do sistema jurídico e do corpo social. A pré-compreensão
(dado passado) e a prognose (dado
futuro) ocorrem rotineiramente no processo de interpretação jurídica. A "boa
interpretação", a interpretação "satisfatória", entendida como a interpretação
cujo componente de justiça não afeta a estabilidade social e a segurança
jurídica, é aquela que considera de forma equilibrada estes dois aspectos no
processo interpretativo .
4. Observe-se que desde suas primeiras formulações, a justiça sempre foi
associada com a igualdade e , nessa mesma medida , foi evolucionando ao
compasso desse princípio ilustrado. No Livro V da ética a Nicómaco , por exemplo, Aristóteles desenvolveu a
sua doutrina da justiça ( que, ainda hoje, representa o ponto de partida de
todas as reflexões sérias sobre a questão da justiça ) situando a igualdade
(proporcional ou geométrica) como o cerne deste valor, isto é, como núcleo
básico da justiça. Como é quase ocioso recordar, a igualdade não é um fato. Dentro
do marco da espécie humana, que estabelece uma grande base de semelhança, os
indivíduos não são definitivamente iguais. O princípio ético-político da
igualdade não pode apoiar-se portanto em nenhuma característica "material"; é
mais bem uma estratégia sócio-adaptativa, uma aspiração desenvolvida ao longo
de nossa história evolutiva, que passou de aplicar-se a entidades grupais mais
reduzidas até englobar a todos os seres humanos (como proclamam, aliás, as mais
conhecidas normas acerca dos direitos humanos da atualidade). A justificação de
tal princípio descansa, desde suas origens, no reconhecimento mútuo, dentro de
uma determinada comunidade ética, de qualidades comuns valiosas e valores
socialmente aceitos e compartidos, os quais representaram uma vantagem seletiva
ou adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro
modo, não haveria podido prosperar biologicamente. A regra, portando, é do
trato igual, salvo nos casos em que, por azar social (origem de classe,
adestramento cultural, etc.) ou azar natural (loteria genética - que inclui a
distribuição aleatória de talentos e de habilidades - enfermidades e
incapacidades crônicas sobrevindas, etc.), dos quais não somos absolutamente
responsáveis, o tratamento desigual esteja objetiva e razoavelmente
justificado. Que embora a igualdade constitua o núcleo básico da justiça ( e
parece muito intuitivo que se trata de uma emoção moral arraigada em nossa
arquitetura cognitiva mental : o mais canalha dos homens sempre reagirá ante um
tratamento desigual no que se refere a sua pessoa), as reais e materiais
desigualdades entre os membros de nossa espécie exigem o desenho de estratégias
compensatórias para reparar, na medida em que se possa fazer, as desigualdades
nas capacidades pessoais e na má sorte bruta. Dito de outro modo, justiça e
igualdade não significam, necessariamente, ausência de desníveis e assimetrias,
já que os indivíduos são sempre ontologicamente diferentes, mas, sim, e muito
particularmente, ausência de exploração de uns sobre outros. Daí que tratar
como iguais aos indivíduos não necessariamente entranha um trato idêntico: não
implica necessariamente, por exemplo, que todos recebam uma porção igual do
bem, qualquer que seja, que a comunidade política trate de subministrar , senão
mais bem a direitos ajustados ás diversas condições (Dworkin,1989).
5. Tal como assinala o evolucionista Richard Alexander (1994), a principal
força hostil da natureza encontrada pelo ser humano é o outro ser humano. Os
conflitos de interesses estão onipresentes e os esforços competitivos dos
outros membros de nossa espécie se converteram no traço mais
caracteristicamente marcante de nosso panorama evolutivo. Em virtude de que
todos temos as mesmas necessidades, os outros membros de nossa própria espécie
são nossos mais temíveis competidores no que se refere a vivenda, emprego,
companheiro sexual, comida, roupa, etc. Sem embargo, ao mesmo tempo, são também
nossa única fonte de assistência, amizade, ajuda, aprendizado, cuidado e
proteção. Isto significa não somente que a qualidade de nossas relações sociais
foi sempre vital para o bem estar material de nossa espécie, como a solução
pacífica dos conflitos e a igualdade passaram a ser uma estratégia eficaz para
evitar os altos custos sociais da competição e da desigualdade material. Essas
considerações vão ao âmago mesmo dos dois tipos distintos de organização social
encontrados entre os humanos e os primatas não hominídeos: o que se baseia no
poder e domínio ("agônico") e o que se baseia em uma cooperação mais
igualitária ("hedônico"). Devido a que as sociedades de classes tem sido
predominante ao largo da história da humanidade, temos a tendência a considerar
como norma humana as formas agônicas de organização social. Mas isso passa por
alto da evidência de que durante nossa pré-história como caçadores-recoletores
- a maior parte da existência humana - vivemos em grupos hedônicos. De fato, os
antropólogos qualificaram de "firmemente" igualitárias as sociedades modernas
de caçadores-recoletores. Em uma análise de mais de um centenar de informes
antropológicos sobre vinte e quatro sociedades recentes de
caçadores-recoletores estendidas ao largo do planeta, Erdal e Whiten (1996)
chegaram á conclusão de que estas sociedades se caracterizavam por um "igualitarismo,
cooperação e reparto a uma escala sem precedentes na evolução dos primatas...,
de que não há hierarquia dominante entre os caçadores-recoletores..., e de que
o igualitarismo é um universal intercultural que provém sem lugar a dúvidas da
literatura etnográfica". Em resumo, o igualitarismo das sociedades de
caçadores-recoletores - recentes em termos evolutivos -, que marcou as pautas
de nossa existência passada enquanto seres humanos "anatomicamente modernos",
deveria considerar-se como uma eficaz estratégia sócio-adaptativa que evitava
os altos custos sociais da desigualdade material. Paralelamente a este processo
evolucionou a justiça - e a igualdade proporcional aristotélica é uma
manifestação explícita deste paralelismo - , cujo núcleo duro e indisponível
reside na circunstância de que todos os seres humanos devem ser considerados
como fins e nunca como meios, e que são merecedores de um trato e consideração
igual em todos os vínculos sociais relacionais que se consideram constitutivos
da autonomia e liberdade do indivíduo , quer dizer, que permitem a cada um
viver o livre desenvolvimento de sua identidade e de seus projetos vitais em
uma comunidade de homens livres e iguais unidos por um comum e fraterno
sentimento de legitimidade e de submetimento ao direito, e em pleno e
permanente exercício de sua cidadania. Neste particular, o descobrimento de que
os Cebus apella (macaco prego)
estão dispostos a intercambiar fichas por comida mas somente quando o trato é
similar ao que se dá a outros indivíduos do grupo abre igualmente um amplo
campo de possibilidades de estudo que pode relacionar-se á perfeição com as
idéias acerca da origem e da evolução da igualdade entre os primatas. Tem,
portanto, sentido ligar de forma prioritária a concepção de justiça ás virtudes
ilustradas de liberdade, igualdade e fraternidade. A história recente das
teorias da justiça é fundamentalmente a da articulação e do desenvolvimento
cada vez mais refinado e sofisticado dessas virtudes e, muito particularmente,
do princípio de igualdade. Dito de outro modo, estas três virtudes que
configuram a noção de justiça somente são aspectos diferentes da mesma atitude
humanista fundamental destinadas a garantir o respeito incondicional á
dignidade humana. (Atahualpa Fernandez, 2005 e 2006).
6. Segundo Brian Bix (1999), uma razão pela qual os teóricos do direito natural
e os juristas positivistas parece falar de coisas diferentes é que eles têm
distintos pontos de partida acerca do que é o direito, e do que a teoria deve
tratar de fazer. Os positivistas (com a possível, ainda que importante exceção
de Kelsen) tendem a concentrar-se no direito como uma classe de sistema social.
Pelo contrário, os teóricos do direito natural se concentram no direito como
uma classe de prática que subministra razões (Finnis, 1998). O direito dá
razões para a ação, ao menos (muitos diriam) quando é consistente com os
standard morais mais altos: os teóricos do direito natural aqui insistem nas
razões morais para a ação que o
direito pode (algumas vezes) oferecer, e não nas razões prudenciais que as
sanções jurídicas (como todas as ameaças de força ou vergonha pública) pode
implicar. Este aspecto do direito chama a atenção dos teóricos acerca da
congruência de normas particulares, e sistemas jurídicos particulares, com
critérios morais, para determinar quando o direito se incorpora á lista de
nossas razões morais para a ação. Por conseguinte, conclui Bix, parece
inevitável que uma análise do direito como uma atividade que subministra
razões, uma análise de quando ou como os sistemas jurídicos criam novas razões
morais para a ação , nos levará a uma direção diferente ao de um estudo do
direito como uma classe particular de instituição social, e vice-versa.
7. Particularmente com relação ao positivismo jurídico, ao significar para o
pensamento não apenas o repúdio dos jusnaturalismos teológico e racionalista -
formas de dogmatismo acrítico-sistemático e ahistórico que havia sem dúvida de
se superar -, mas igualmente por envolver ainda um agnoscitismo axiológico, uma
deliberada recusa da intenção axiológica - que teria como resultado uma
cegueira metodológica para o normativo, o próprio sacrifício intencional da
dimensão normativa, a essencial dimensão axiológico-normativa do jurídico e,
assim, uma total incompreensão dos problemas do fundamento e da validade da
juridicidade enquanto tal -, esta ainda dominante linha de pensamento,
confundindo direito com o "direito posto" (pelo Estado), a legalidade vigente
com a legitimidade jurídica e sobrevalorizando não só o método algoritmo como
também a segurança em detrimento do comunitário projeto axiológico-jurídico,
foi ( e ainda é) responsável por graves aberrações que acabaram por atentar
contra a natureza humana. Pode-se argumentar, é verdade, que esta situação é
excepcional e não deve, por isto, ser tomada em consideração. Mas engana-se
quem assim pondera. A vida social despenca do normal para o excepcional com
mais facilidade do que se pensa e com maior rapidez do que seria imaginável. E
a história (e as ciências da vida) está aí para demonstrar a necessidade de uma
adequada concepção acerca da natureza humana para tratar com valores, normas e
princípios jurídicos, e, muito especialmente, para fazer face ao emocional e ao
imprevisto, advindos tanto do hemorrágico processo de elaboração de leis quanto
do subjetivismo que afeta a tarefa de realização do direito e do ensandecido
entorno sócio-cultural. Não resta dúvidas de que a sua atual e inegável
desvinculação com relação ás outras áreas de conhecimento , á realidade social
e suas práticas tem gerado como consequência o reforço da crise de legitimação
do próprio direito. Pode-se dizer, inclusive, que o direito vai anunciando um
ponto crítico de que ele poderá sair subvertido ou resgatado. Ou conserva o
isolamento teórico e o racionalismo formalizante que sempre o tem vindo a
constituir , e dele não restará mais do que uma carcaça ressequida e fria de um
dispositivo serventuário da autoridade estatal; ou ouve e faz seu o apelo de
afirmação da natureza humana, de liberdade , igualdade e emancipação que o
homem dirige ao mundo humano , e será também dele o futuro, pois neste caso o
direito mais não será que o direito que ao homem compete cumprir e reconhecer a
sua humanidade na "multidão dos homens", isto é, que permitrá a cada um viver
com o outro na busca de uma humanidade comum. é esta, pois, a crise interna do
direito, aquela que não apenas no futuro , mas já hoje o atinge. Crise das mais
graves que o jurídico alguma vez já sofreu: o direito a correr o risco de ser
negado como direito; o pensamento jurídico a recusar o direito enquanto tal,
como a sua intenção problemática e essencialmente humana, e a diluir-se por
isso em intencionalidades ilegítimas e dogmáticas em que apaga a sua autonomia
e, portanto, a si mesmo se anula. E neste momento em que o velho está morto ou
morrendo e o novo ainda não pôde nascer ou impôr-se em sua integralidade, vem
surgindo uma variedade de sintomas mórbitos , decorrentes, fundamentalmente, da
quase completa desconexão do direito com o resto das ciências e o seu
inconsequente e mais displicente descaso com as características (cognitivas ,
morais e emocionais) que procedem da admirável natureza humana (Atahualpa
Fernandez, 2006) .
8. Como se dá com tantas idéias na ciência social, a centralidade da linguagem
é levada a extremos no desconstrucionismo, no pós-modernismo e em outras
doutrinas relativistas e analíticas. Os textos de oráculos como Derrida são
crivados de aforismos como "Não é possível escapar da linguagem", "O texto é
auto-referente", "Linguagem é poder" e "Não existe nada fora do texto". O
prêmio para a afirmação mais extrema tem de ser para Roland Barthes, por sua
declaração: "O homem não existe anteriormente á linguagem, seja como espécie,
seja como indivíduo". Sofismas intelectuais. De fato, se bem pensado, a língua
não poderia funcionar se não se assentasse sobre uma vasta infra-estrutura de
conhecimento tácito sobre o mundo e sobre as intenções de outras pessoas, isto
é, as palavras sempre são interpretadas no contexto de uma compreensão mais
profunda das pessoas e suas relações. No nosso caso, por exemplo, a própria
existência de normas ambíguas , nas quais uma série de palavras expressa pelo
menos dois pensamentos, prova que pensamentos não são a mesma coisa que séries
de palavras e que somos equipados com faculdades cognitivas complexas que nos
mantêm em contato com a realidade. A linguagem, assim entendida, é a magnífica
faculdade que usamos para transmitir pensamentos e informação de um cérebro
para outro, e podemos cooptá-la de muitos modos para ajudar nossos pensamentos
a fluir. Mas linguagem não é o mesmo que pensamento, nem a única coisa que
separa os humanos dos outros animais, a base de toda cultura, a morada do ser
onde reside o homem, uma prisão inescapável, um acordo obrigatório, os limites
de nosso mundo ou o determinante do que é imaginável (Pinker, 2002). A idéia de
que o pensamento é o mesmo que a linguagem constitui um bom exemplo da que
poderia denominar-se uma estupidez convencional, ou seja, uma afirmação que se
opõe ao mais elementar sentido comum e que, não obstante, todo mundo se crê
porque recorda vagamente havê-la ouvido mencionar (Pinker, 1994). Mais
recentemente se há visto as limitações insalváveis de afirmações do tipo que o
"ser que pode ser compreendido é linguagem" e até mesmo a relação estabelecida
nos textos aristotélicos entre a linguagem e o sentido do justo e do injusto:
certas observações e experimentos indicam que já outros primatas reacionam como
se tivessem algo parecido a um sentido de justiça, ainda que careçam de
linguagem; sem linguagem pode haver compaixão, cooperação e quiçá algo assim
como um sentido de justiça. Da mesma forma, nem toda cultura é linguística. Uma
grande parte da cultura é independente da linguagem e se transmite por imitação
não mediada por palavras: por exemplo, a cultura de diversos primatas que
carecem de linguagem - como os chimpanzés ou os macacos (de Waal, 1993, 1996 e
2001) -, assim como a transmissão de determinados ofícios e a propagação das
modas entre os humanos (Mosterín, 2006). Dito de outro modo, a linguagem é
simplesmente o conduto através do qual as pessoas compartilham seus pensamentos
e intenções, suas experiências de prazer e de sofrimento - enfim, a que permite
o reparto (sócio-afetivo) da subjetividade -, e, com isso, adquirem o
conhecimento, os costumes e os valores daqueles que as cercam e no contexto da
realidade em que plasmam suas respectivas existências. Nas palavras do
linguísta Derek Bickerton (1995): não é (a linguagem) somente um meio de
comunicação senão uma maneira de organizar o mundo, e cuja finalidade é pôr
pensamentos nas mentes das outras pessoas e extrair pensamentos das mentes das
outras pessoas. E não somente isso. No que diz respeito propriamente a sua
origem, por exemplo, Tomasello (1999) rechaça a idéia de que uma mutação tenha
criado a linguagem. Para ele, a chave radica em que nos humanos evolucionou
biologicamente uma nova maneira intencional de identificar-se e de entender-se
com membros da mesma espécie. A continuação do processo, a partir desta única
adaptação cognitiva que permite reconhecer aos outros como seres intencionais,
teria tido um caráter inteiramente cultural e produziu o desenvolvimento de
formas simbólicas de comunicação. Este desenvolvimento, sustenta Tomasello,
transcorre a uma velocidade que nenhum processo de evolução biológica pode
igualar.
9. Nas palavras de Brian Bix (1999): pode ocorrer que a dupla natureza do
direito - como instituição social e como prática que subministra razões - faça
impossível capturar a natureza do direito mediante um único enfoque, e que se
necessite um enfoque mais "neutral" (como o do positivismo jurídico) para
compreender, justificar e acentuar seu lado institucional, e um enfoque mais
valorativo (como o das teorias do direito natural) para dar conta, viabilizar e
operacionalizar seu lado de prática que confere (subministra) razões (morais
para a ação).
10. E não podemos inferir nada acerca da natureza humana a partir de nossos
meros ideais políticos ou de vagas elocubrações acadêmico- filosóficas. A
investigação da natureza humana é uma questão tão fática como a medida do
perihélio de Mercúrio. Resulta epistemologicamente insustentável a posição dos
que postulam uma natureza humana de um certo tipo com independência de qualquer
informação empírica sobre esta e meramente como condição transcendental da
possibilidade da moralidade, da responsabilidade, da sociedade igualitária ou
da igual "dignidade" humana. Neste particular, parece oportuno observar que a
própria idéia de dignidade é um conceito relativo, a qualidade de ser digno de
algo. Ser digno de algo é merecer algo. Uma ação digna de aplauso é uma ação
que merece o aplauso. Um amigo digno de confiança é um amigo que merece nossa
confiança. Se alguém é mais alto ou gordo ou rico (ou o que seja) que outro,
então merece que se registre seu record, quer dizer, é digno de figurar no
Guinness World Records. O que não significa nada é a tão popular dignidade
genérica, sem especificação alguma. Dizer que alguém é digno, sem mais, é
deixar a frase incompleta e, em definitiva, equivale a não dizer nada. De todos
modos, palavras como "dignidade", ainda que privada de conteúdo semântico,
provocam secreção de adrenalina em determinados juristas acadêmicos e proclives
á retórica. De fato, resulta inclusive muito difícil aceitar a própria noção
kantiana da dignidade humana. E a razão, como se verá, consiste em que tal
noção obriga a aceitar uma forma de dualismo de duvidosa cientificidade: que há
um reino da liberdade humana paralelo ao reino da natureza e não determinado
por ele. Depois, Kant mesmo não oferece prova alguma de que o livre arbítrio
existe; se limita a dizer simplesmente que é um postulado necessário da razão
prática pura sobre a natureza da moralidade. Ora, o fundamento da moral e do direito
não está na dignidade abstrata, senão na plasticidade concreta de nosso
cérebro, em nossa margem de manobra, em nossa capacidade de pensar e decidir,
de gozar e sofrer. Daí que nenhuma teoria social normativa (ética ou jurídica)
coerente deveria admitir termos tão vazios como o de dignidade sem uma base
empírica acerca da natureza humana , sob pena de converter-se em uma cerimônia
da confusão revestida de um esquema teórico abstrato, vazio e meramente formal.
Para uma apreciação acerca do possível conteúdo da "dignidade humana", ver
Atahualpa Fernandez, 2002, 2005 e2006.
11. Note-se que reconhecer a natureza humana não somente é compatível com o
progresso social e moral mas também pode ajudar a explicar o óbvio avanço
ocorrido no decorrer de milênios. Costumes que foram comuns ao longo de toda a
história e pré-história - escravidão, punição com mutilação, execução pela
tortura, genocídio por conveniência, rixas intermináveis entre famílias, morte
sumária de estranhos, estupro como despojos de guerra, infanticídio como forma
de controle de natalidade e posse legal de mulheres - desapareceram em vastas
porções do mundo. O filósofo Peter Singer (1981) mostrou que o progresso moral
contínuo pode emergir de um senso moral fixo. Suponhamos que somos dotados de
uma consciência que trata outras pessoas como alvos de solidariedade e nos
inibe de explorá-las ou prejudicá-las. Suponhamos, também, que temos um
mecanismo para avaliar se um ser vivo se classifica como pessoa. Pinker (2002),
citando a Singer, sugere a seguinte explicação para o progresso moral: as
pessoas expandiram constantemente a linha pontilhada mental que abrange as
entidades consideradas dignas de consideração moral. O círculo foi sendo
ampliado, da família e da aldeia para o clã, a tribo, o país, a raça e, mais
recentemente (como na Declaração Universal dos Direitos Humanos), para toda a
humanidade. Foi se afrouxando, da realeza, aristocracia e senhores de terra até
abranger todos os homens. Cresceu, passando da inclusão apenas de homens á
inclusão de mulheres, crianças e recém-nascidos. Avançou lentamente até
abranger criminosos, prisioneiros de guerra, civis inimigos, os moribundos e os
mentalmente deficientes. E as possibilidades do progresso moral não terminaram.
Atualmente, há quem deseje ampliar o círculo para incluir os macacos
antropóides , as criaturas de sangue quente e os animais com sistema nervoso
central. Alguns querem incluir zigotos, blastócitos, fetos e as pessoas com
morte cerebral. Outros ainda pretendem abranger espécies, ecossistemas ou todo
o planeta. Essa mudança arrebatadora nas sensibilidades, a força propulsora na
história moral de nossa espécie [...] poderia ter surgido de um mecanismo moral
contendo um único botão ou cursor que ajustasse o tamanho do círculo abrangendo
as entidades cujos interesses tratamos como comparáveis aos nossos. A expansão
do círculo moral não tem que ser movida por algum impulso misterioso de
bondade. As sociedades humanas, como os seres vivos, tornaram-se mais complexas
e cooperativas com o passar do tempo, não por possuir uma mentalidade cívica
inerente, mas porque se beneficiaram da cooperação mútua , da divisão do
trabalho e desenvolveram modos de abafar conflitos entre os agentes que compõem
o sistema. Dito de outro modo, isso ocorre porque os humanos beneficiam-se
quando se agrupam e se especializam na busca de seus interesses comuns,
contanto que resolvam os problemas da troca de informações, da falta de
reciprocidade nos vínculos sociais relacionais e da punição dos trapaceiros.
Jogos de soma não-zero (contrário de um jogo de soma zero, no qual o ganho de
um jogador implica perda para o outro) surgem não somente da capacidade das
pessoas de ajudar umas ás outras mas de sua capacidade de abster-se de
prejudicar uma ás outras. Em muitas disputas, ambos os lados saem ganhando ao
dividir o que foi poupado graças a não ter lutado. Isso fornece um incentivo
para desenvolver mecanismos de resolução de conflitos, como o direito, medidas
para salvar as aparências , restituição e retribuição reguladas e códigos
legais. Franz de Waal afirmou que rudimentos de resolução de conflitos podem
ser encontrados em muitas espécies primatas. As formas humanas são encontradas
em todas as culturas, tão universais quanto os conflitos de interesses que elas
se destinam a dissipar (pessoas de todas as culturas distinguem o certo do
errado, têm um senso do que é justo, ajudam umas ás outras, impõem direitos e
obrigações, acreditam que os agravos têm de ser compensados e condenam o
estupro, o assassinato e certos tipos de violência). Assim que há razões para
crer que um senso moral evoluiu em nossa espécie em vez de precisar ser
deduzida da estaca zero por cada um de nós depois de sairmos da lama. A
evolução nos dotou de um senso moral, cuja esfera de aplicação nós expandimos
no decorrer da história por meio da razão (entendendo a permutabilidade lógica
entre nossos interesses e os das outras pessoas), do conhecimento (aprendendo
as vantagens da cooperação no longo prazo ) e da compreensão ( passando por
experiências que nos permitem sentir a dor de outras pessoas). Por conseguinte,
parece razoável supor que o progresso moral e social pode ter avançado
gradualmente, não a despeito de uma natureza humana fixa, mas graças a
ela.(Pinker, 2002).
Autor:
Atahualpa Fernandez
Marly Fernandez
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