Para a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico, Curitiba, Ed. Juruá, 2006.
Faz parte de quase todas as concepções do pensamento jurídico a idéia de que se deve seguir uma lei mesmo que os objetivos de justiça almejados sejam realizados somente de forma incompleta e, por isso, possa ser criticada com razão. A ordem social e a segurança jurídica dispõem que o cidadão observe e cumpra mesmo as leis que considere injustas.
Por segurança jurídica pode-se entender duas coisas: 1. a segurança por meio do direito (defesa contra roubo,
assassinato, furto, violência contratual, etc.); 2. a segurança do próprio direito, isto é, a garantia de
sua possibilidade de conhecimento, de sua operatividade e de sua
aplicabilidade. Há segurança por meio do direito, unicamente, quando o direito
mesmo oferece certeza. Já na segunda forma - segurança jurídica em sentido
próprio ou estrito - , trata-se mais propriamente da eficácia do direito que,
para que possa ser seguro, requer positividade.
E positividade significa, simplesmente, a circunstância de que o direito está
fixado; o decisivo é que as características da lei se determinem da maneira
mais exata possível e, em consequência, possa ser estabelecida sem arbitrariedade
( somente com relação a este segundo tipo nos ocuparemos aqui).
Por seu turno a justiça, perseguindo a realização do bem comum mediante a
garantia da liberdade plena, da igualdade material e da autonomia dos
indivíduos, se dirige, predominantemente, a proibir, em um entorno social
prenhado de assimetrias e desigualdades, qualquer tipo de dominação e
interferência arbitrária recíprocas e, na mesma medida, a permitir, estimular e
garantir a titularidade e o exercício de direitos de todo ponto inalienáveis e
que habilitam publicamente a existência dos cidadãos como indivíduos plenamente
livres1 .
Mas a segurança jurídica, embora pretenda a paz jurídica, não significa,
necessariamente, a aplicação certa do direito justo, senão a execução segura do
frequentemente defeituoso direito positivo. Desta circunstância podem resultar
conflitos de interesses, especialmente entre a justiça material e a segurança
jurídica. Que sucede em caso de conflito quando estes dois valores fundamentais
do direito não possam ser realizados ao mesmo tempo?2
Na contraposição entre um critério de justiça material e a segurança jurídica,
o suporte para afastar uma aparente incongruência e impossibilidade de
convivência parece residir, em princípio, nos mecanismos hermenêuticos e
processuais de controle no processo de realização do direito. Estes vão desde a
existência de uma escala de recursos das decisões proferidas para tribunais
superiores (geralmente órgãos colegiados), passando pela fixação de diretrizes
ou critérios metodológicos como instrumentos analíticos hábeis para afastar uma
eventual "discricionariedade ilimitada" do julgador e garantir a "objetividade"
dos resultados da interpretação - isto é, de dotar a tarefa interpretativa do
condão de tornar o mais racional e controlável possível os critérios
normativos, valorativos e fáticos relativos ao caso decidendo -, até, e
finalmente, convergir na responsabilidade do juiz pelos efeitos éticos e
sociais de suas decisões a partir da prognose como componente iniludível da tarefa interpretativa. Vale dizer, da
consideração, pelo intérprete, dos efeitos futuros da decisão (jurídica) que
tomará diante do caso concreto, do texto interpretado e dos princípios e
valores correspondentes3 .
Sem embargo, e ainda sublinhando o radical compromisso ético do direito e de
convocar o tópico da responsabilidade do juiz-intérprete, parece razoável
admitir que a discussão do conflito entre justiça e segurança jurídica ou,
retomando ao percurso inicial, entre ius
aequum e ius strictum, está dotada de uma absoluta variabilidade.
Regra geral, esta incompatibilidade é analisada sob o argumento de que, se nos
casos concretos individuais o conceito de segurança jurídica entra em conflito
com a idéia de justiça material e da adequação ao fim, que são os outros
fundamentos constitutivos de todo ordenamento jurídico, estes somente serão
postergados, no fundamental, até o ponto em que o intérprete, através do
"direito posto", seja capaz de levar a cabo a inegociável função de adaptar aos
mesmos (em conjunto com os fatos controvertidos na demanda) o conteúdo das
normas jurídicas interpretadas. A validade jurídica deixa, nestes termos, de
estar determinada exclusivamente pela legitimação do órgão produtor da norma e
a correção no procedimento, para aparecer integrada necessariamente também por
sua adequação material, substancial ou de conteúdo.
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