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Dizendo de outro modo , a concepção republicana não diz , á maneira moderna e
liberal , que embora o direito coaja á gente, reduzindo assim sua liberdade,
compensa este dano prevenindo um grau maior de interferência. Uma proposta
republicana coerente sustenta que o direito propriamente constituído é
constitutivo da liberdade, o que descarta este tipo de retórica sobre
compensações, esta retórica de um passo atrás para dar dois adiante. De acordo
com a mais recente doutrina republicana ( da concepção da liberdade como
cidadania) , as leis de um estado factível, e em particular, as leis de uma
república , criam a liberdade de que desfrutam os cidadãos; não mitigam essa
liberdade, nem sequer de um modo ulteriormente compensável (Pettit).
Por certo que a potencial capacidade das leis para produzirem esses efeitos só
será levada a cabo á medida que , concebidas como instrumentos de construção
social (de uma sociedade ainda em processo de construção), sejam aplicadas com
respeito aos interesses e as idéias comuns do povo e se atenham á imagem de um
direito cuja função seja a de, a) negativamente, impedir o indivíduo do
esquecimento de si próprio, enquanto entidade livre , separada e autônoma , e
b) positivamente, de o afirmar na sua liberdade e, assim, na sua cidadania .
Quando as leis se convertem em instrumentos da vontade arbitrária de um
indivíduo ou de um grupo, então, de acordo com esta concepção, passam a ser
aplicadas como expressão de um regime em que os cidadãos se convertem em
"dependentes" e se vêem inteiramente privados de sua liberdade: todos e cada um
deles vivem, por dizê-lo com Harrington, "a mercê de seu senhor"; todos estão
completamente dominados pelo poder sem restrições do indivíduo ou do grupo ao
mando.
Vale a pena deter-se aqui para empreender uma pequena exploração lateral que
nos aclare um assunto cuja precisa definição parece de toda estranha - ou
simplesmente dada por pressuposta - ás teorias normativas modernas. Refiro-me ,
particularmente, ao fato de que, segundo a concepção republicana clássica , o
cidadão , como indivíduo plenamente livre , é sui
iuris , dono e senhor de si mesmo ( de acordo com a célebre fórmula
do direito romano, recuperada pelo republicanismo moderno, desde Marsiglio de
Pádua até Kant) , isto é , que "não depende de ninguém" no sentido republicano
de "dependência" , quer dizer , que não pode ser arbitrariamente interferido
por ninguém (por nenhum particular, nem tampouco pelo Estado)10 .
Agora bem; a tradição republicana ocidental sempre reconheceu que na sociedade
civil abundam os sujeitos que andam longe de ser "donos de si mesmos", ou dito
de outra maneira, que a sociedade civil é um espaço cheio de assimetrias, de
dependências e de relações sociais "alienadas" ( na versão que o jovem
republicano Hegel deu á "dependência do outro"). De Aristóteles a Marx,
passando por Marsiglio, Maquiavel, Harrington , Montesquieu , Rousseau , o
grosso das Ilustrações escocesas (Ferguson, Adam Smith) e alemã ( Kant, o jovem
Hegel), a tradição republicana sempre viu e analisou a sociedade civil como um
espaço de todo ponto político, isto é, atravessado por relações de poder11 .
A conclusão que o republicanismo não democrático sacou de sua mirada "política"
sobre a sociedade civil é esta: os "dependentes", os "alienados"12 ,
os não plenamente livres na sociedade civil, os que, em suma, não podem ser
considerados sui iuris ( os
escravos, por certo, mas também os criados, os assalariados, as mulheres, os
forasteiros e as crianças), não podem ser tampouco cidadãos ; seu próprio lugar
na sociedade civil lhes condena á "inexistência política". Em apoio dessa
conclusão vinha , naturalmente, a se empregar todo o arsenal da artilharia
axiológica republicana: um "dependente" não pode governar-se a si próprio , não
pode , pois, ser virtuoso , aspirar á excelência ; um "dependente", sem
propriedades que assegurem sua autonomia de juízo , não pode ingressar na
deliberação pública sem injetar nesta traços temíveis; um "dependente" despossuído
não tem nenhum interesse pessoal na preservação da república, não pode ,
portanto, ser um bom "cidadão" etc. etc.
O republicanismo tradicional ( não democrático), desde Aristóteles até Kant,
viu na democracia um intento de subversão anti-republicana por excelência, um
despotismo dos pobres livres13 : a posição de exclusão dos
"dependentes" aceita como dado inamovível, e traduz em termos
político-jurídicos o fato de que o alieni
iuris não é livre e igual na vida civil e, em certa medida, nem
sequer um "in-divíduo" (individuum não é senão a tradução latina do grego átomos,
que significa "indiviso") ; privado de igualdade, está privado de liberdade e
de existência separada e autônoma - pois na tradição republicana, neste preciso
sentido, in-dividualidade , igualdade e liberdade cidadãs são indivisíveis. E
os dois projetos políticos mais característicos do republicanismo democrático
moderno, o de Jefferson na América e o de Robespierre na Europa, fracassaram,
como é de sobra conhecido (Matthiez; Beard).
E aqui reside, de fato, o grande problema do qual nasce historicamente o
"liberalismo" no primeiro terço do século XIX. Entre Kant e Adam Smith , de um
lado, e Benjamin Constant , do outro, medeia a Revolução Industrial. Os
"criados" , os "dependentes" que tão expedidamente Kant pôde deixar fora da
cidadania, haviam-se convertido entretanto em um percentual imenso da
população. O trabalho assalariado ( a "escravidão moderna", na formulação de
Adam Smith) crescia sem parar : como excluí-lo, como privá-lo de toda
existência política, sem arriscar a "ordem social" mesma, aquilo que para Locke
era o único fim legítimo do governo?14
A solução liberal do século XIX consistiu em despolitizar completamente a
esfera privada da sociedade civil; e o novo conceito liberal de cidadania surge
dessa nova mirada, despolitizada, da sociedade civil. Logo, o liberalismo,
historicamente considerado, é a resposta ao problema representado pela
conjugação simultânea de duas exigências políticas : a exigência
democrático-republicana de universalizar a cidadania ( uma longa tradição que,
arrancando de Ephialtes e Péricles desemboca em Robespierre e Jefferson) ; e,
por outro lado, a exigência republicano-tradicional ( o republicanismo,
digamos, de impromptu latino) de excluir de existência política não somente aos
escravos, senão a todos os pobres, ou como disse Cicerón, á abiecta plebecula , isto é, a quem vive
por suas mãos. A satisfação da primeira exigência levava á subversão da "ordem
social", ameaçava a estrutura vigente da propriedade; ceder á segunda, era
tanto como provocar a secessio plebis.
A resposta liberal a essas duas exigências encontradas é: universalização da
cidadania, mas não de uma cidadania republicana. No novo conceito liberal de
cidadania cabiam potencialmente todos , também os que na sociedade civil são
"dependentes" ou estão "alienados": os criados, os aprendizes, os jornaleiros,
os assalariados e, enfim, as mulheres e o povo todo.
E podiam caber: porque o liberalismo foi construindo, entre outras coisas mercê
á reintrodução em grande escala do direito civil romano , a ficção jurídica de
apresentar como essencialmente despolitizada a astronomicamente grande e
gigantesca esfera privada da sociedade civl. Esta podia ser mostrada , agora -
a partir da segunda metade do século XIX- , e em expressa ruptura com o tronco
republicano - também com Adam Smith! - , como um espaço de intercâmbio e
tráfico social entre livres equipotentes, como um lugar sem assimetrias nem
vínculos de poder, como o imenso âmbito dos problemas apoliticamente
solucionáveis mediante contratos privados entre livre e iguais16 .
As chamadas democracias liberais são , em boa medida, o resultado histórico
desse processo de largo alcance, que desembocou na separada cristalização de
uma esfera privada despolitizada, supostamente sem relações de poder, por um
lado, e por outro, de uma esfera pública propriamente política. Não fará falta
insistir aqui em que essa separação estrita resultou falida. Por um lado, mais
além de toda fictio iuris, a
sociedade civil está atravessada de relações de poder e subalternidade , está
prenhada de sujeitos, de grupos e de classes sociais vulneráveis á
interferência arbitrária de outros; a ficção liberal não serve senão para
deixar aquí as coisas como estão e, ás vezes , para impetrar do Estado o
pontual respeito do statu quo ante
.
Por outro lado, a ficção de que a esfera civil- "apolítica"- e a esfera pública
- "política"- estão separadas como compartimentos estanques se vê reforçada
pelo novo conceito liberal de uma cidadania universalizada , segundo a qual se
permite a participação na vida política com total independência do nível de
ingressos ( sem considerar, isto é , a posição ocupada na sociedade civil). Mas
, como todo mundo sabe, essa ficção é escarnecida a diário, em todas as
democracias liberais do mundo (e muito especialmente a nossa), pelo gigantesco
bombeio de recursos que desde a plutocracia da "apolítica" esfera civil emanam
em direção aos esforçados competidores por um posto baixo o sol na esfera "política"17 .
A soma de ambas as coisas: relações de dependência, alienação e subalternidade
na sociedade civil "apolítica" , e a invasora influência dos plutocratas na
vida política, convertem ao povo soberano, como agudamente observou Clarín há
mais de um século, em um soberano in
partibus infidelium18 .
Cass Sunstein, por exemplo, tem insistido de modo especialmente agudo neste
ponto para os Estados Unidos da América: na interpretação liberal - pré New
Deal - do estado de direito, a medida da neutralidade do estado se considerava
o statu quo ante "impolítico" da
sociedade civil. De maneira, por exemplo, que em casos de discriminação racial
no mercado laboral, a Corte Suprema tendia a considerar que era um "fato" da
sociedade civil que houvesse empresários que não queriam contratar
trabalhadores de cor em igualdade de condições salariais. Esse "fato" era
impolítico, resultado de intercâmbios privados entre os empresários e os
trabalhadores de cor que aceitavam os contratos laborais oferecidos. E se
considerava um interferência imprópria, violadora da neutralidade e da
imparcialidade do Estado, que os tribunais se imiscuíssem em um sentido ou
outro. O New Deal mudou isto radicalmente, reintroduzindo na jurisprudência
norte-americana um autêntico sopro de ar republicano fresco; e isso é o que
hoje está de novo ameaçado com a contra-revolução liberal.
De fato , ainda que o direito necessariamente entranhe interferência - mesmo
sendo a lei forçosamente coercitiva - , a interferência em questão não será
arbitrária desde que os operadores jurídicos tenham título e capacidades para
interferir somente quando o façam de forma e maneira que os efeitos de suas
decisões se adaptem ás opiniões recebidas da cidadania , ou , dizendo de outro
modo , desde que expressem e plasmem historicamente as expectativas
psico-biológicas , culturais, jurídico-sociais de validade e de legitimidade
substancial de uma comunidade de indivíduos ante a qual o discurso jurídico
deve apresentar-se justificado, isto é, ante a qual a qualidade do discurso
jurídico e político será medida por sua humanidade, pela precisão de sua adesão
á natureza humana e que sirva para iluminar, fundamentar e constituir
determinado agrupamento social em uma comunidade verdadeiramente ética.
Mas não se trata somente de que a tradição republicana seja capaz de reconhecer
esta dimensão jurídico-política da cidadania. Mais importante ainda é a
circunstância de que, além desse simples reconhecimento, é exatamente na
tradição republicana que podemos encontrar vias adequadas de articulação dessa
forma de vínculo social relacional : modos adequados de combiná-lo, de
potenciar e cultivar seus melhores lados, e de mitigar ou jugular seus lados
destrutivos e perigosos; sempre e em tudo condizente com a obrigação ética de
produzir, reproduzir e desenvolver a cidadania, a liberdade e a dignidade
humana com respeito aos variados caprichos de nosso entorno sócio-cultural.
Daí que a idéia de cidadania é central na perspectiva republicana porque
permite enfrentar-se ás hipertrofias e hipotrofias dos distintos vínculos
sociais relacionais: aos excessos e defeitos, isto é, das relações de
comunidade, de autoridade, de proporcionalidade e ainda dos mesmos vínculos
sociais de igualdade nos que se inserta a própria relação de cidadania . Da
mesma forma, e em igual medida, porque permite enfrentar-se também á
fagocitação de um tipo de vínculo social por outros: as restrições
antiacumulatórias e antireacionárias ao uso do poder, por exemplo, tratam de
evitar que os vínculos sociais de autoridade (o poder político) socavem tanto
as bases da vida social comunitária como a eficácia mesma da liberdade e,
consequentemente, da cidadania20 ; as restrições antialienatórias e
antiacumulatórias ao uso da propriedade privada, por exemplo, tratam de evitar
que os vínculos sociais de proporcionalidade (o mercado) socavem as bases da
vida social comunitária; as restrições antialienatórias e antiacumulatórias ao
uso do direito de sufrágio tratam de evitar a corrupção da relação de igualdade
cidadã por contágio dos vínculos de proporcionalidade. E a famosa "eterna
vigilância cidadã" (republicana) que trata de evitar que o abuso de autoridade
por parte dos mais astutos e egoístas rompa os vínculos da igualdade cidadã e
degrade a concepção de justiça em uma banalização do uso do poder ao serviço de
espúrios e injustificados interesses políticos e/ou econômicos, isto é, degrade
a res publica a imperium.
Por conseguinte, parece de todo razoável supor que o objeto e a função de todo discurso jurídico e político deveria consistir, em última instância, na
articulação combinada dos vínculos sociais relacionais estabelecidos pelos
indivíduos, sendo que, para tanto, é de todo desejável que se parta de
indivíduos dotados de inatas constrições cognitivas, com capacidade autotélica21 de automodelar-se, com motivações próprias, plurais e genuínas de perseguir a
virtude e de estabelecer determinados vínculos sociais relacionais (dos quais
emergem a moralidade e a juridicidade) e, desde aí, por meio de atos que são
qualificados como "valiosos", desenhar um modelo normativo e institucional que
evite, em um entorno social prenhado de assimetrias e desigualdades, a
dominação e a interferência arbitrária recíprocas, garantindo uma certa
igualdade material e, em último termo, estimulando e assegurando a titularidade
e o exercício de direitos (e o cumprimento de deveres) de todo ponto
inalienáveis e que habilitam publicamente a existência dos cidadãos como
indivíduos plenamente livres.
Isto significa, em termos mais modestos e mais realistas, um compromisso mais
específico e virtuoso - no sentido davirtú de Maquiavel (que Cícero denominou virtus e os republicanos ingleses traduziram como civic
virtue ou public-spiritedness)-
no sentido de definir e de construir desenhos institucionais, normativos,
discursivos e sócio-culturais os mais amigáveis possíveis para com as funções
próprias de nossas intuições e emoções morais. E, quando isso não seja
inteiramente possível, que se defendam desenhos institucionais, normativos,
discursivos e sócio-culturais opostos a sempre possível manipulação perversa
dessas intuições e emoções.
Em
definitivo, estamos firmemente convencidos de que o modelo institucional que
melhor reflete, entre todos que conhecemos, esse ideal de cidadania22 é o da república democrática defendida pela Ilustração. E não somente pelo fato
de que a tradição republicana seja capaz de reconhecer a pluralidade das
motivações da vida social humana - coisa que supõe já uma notável vantagem de
partida com relação ao monismo motivacional da tradição liberal -, senão porque
seu peculiar talante de modelo ético-político aberto aporta valores de
cidadania essencialmente útil para tomar (no nosso caso) o direito como práxis e um poderoso instrumento de
construção social e, muito particularmente, para assimilar os câmbios formais e
materiais no processo de tomada de decisões ante a dinâmica fluída e
contingente do entorno sócio-cultural em que se dá a constituição
psico-ético-histórica do ser humano.
Em definitivo, estamos firmemente convencidos de que o modelo institucional que
melhor reflete, entre todos que conhecemos, esse ideal de cidadania22 é o da república democrática defendida pela Ilustração. E não somente pelo fato
de que a tradição republicana seja capaz de reconhecer a pluralidade das
motivações da vida social humana - coisa que supõe já uma notável vantagem de
partida com relação ao monismo motivacional da tradição liberal -, senão porque
seu peculiar talante de modelo ético-político aberto aporta valores de
cidadania essencialmente útil para tomar (no nosso caso) o direito como práxis e um poderoso instrumento de
construção social e, muito particularmente, para assimilar os câmbios formais e
materiais no processo de tomada de decisões ante a dinâmica fluída e
contingente do entorno sócio-cultural em que se dá a constituição
psico-ético-histórica do ser humano.
NOTAS DE RODAPé CONVERTIDAS
1. Sobre as ruínas de tronos e altares do medievo tardio, e inspirado nos
ideais políticos do Mediterrâneo antigo - como palingenésico, pois, da
Antiguidade clássica -, o republicanismo fez o mundo moderno; e o liberalismo,
que vem retificando-o desde o segundo terço do século XIX, poderia acabar
destruindo-o (Doménech). Para os efeitos que aquí nos interessa, não trataremos
do tema sob a perspectiva do comunitarismo, porquanto que o mesmo não se nos
afigura uma grande tradição histórico-política prenhada de conseqüências
práticas e institucionais, como as outras duas, senão mais bem uma "moda"
acadêmica anglo-saxônica , efêmera e episódica, segundo se está vendo. Em
verdade, pensadores como Charles Taylor, Alasdair MacIntyre, Michael Sandel,
Michael Walzer, entre outros , objetam a pretensão de seus opositores de
inferir princípios de justiça sem prévia concepção do bem da pessoa. Eles
sustentam, em síntese, que tal pretensão conduz a propositura de fórmulas de
justiça vazias ou , se não, implica passar de contrabando uma certa concepção
de bem. Além disso , os autores comunitaristas também sustentam que as
concepções do bem se articulam por meio das práticas e convenções de uma
sociedade, pelo que os princípios que se inferem delas variam segundo as
sociedades, contrariamente á aspiração de inferir princípios universais de
justiça. Isto conduz a um tipo de relativismo como o que aqui é mencionado e
devidamente rechaçado. (Atahualpa Fernandez). Sobre o papel central
desempenhado pelo pensamento republicano no período fundacional do mundo
moderno cfr.: Ovejero et al.; Skinner; Pettitt; Pocock; Sunstein.
2. Claro que esta concepção relativa á obrigação do Estado só é possível se tomamos como premissa uma idéia de direito
fundamentada, entre outras coisas, numa moral de respeito mútuo, ou seja, de
que somos nós mesmos quem, ao conceber o direito como uma estratégia
adaptativa, outorgamos direitos morais a todo o homem, com vistas a viabilizar
os quatro modelos elementares de vínculos sociais relacionais e, assim, a vida
social mesma. Com isto, o aparente mistério de que existam direitos que não
foram outorgados se soluciona da maneira mais simples: todos os direitos,
inclusive os fundamentais, têm de ser outorgados a seus portadores, só que já
não são outorgados nem por atos particulares, nem pela lei e tampouco em função
de premissas religiosas ou metafísicas, senão por nós mesmos ao nos conceber baixo
uma moral de respeito recíproco e universal. Não há, pois, direito que não seja
outorgado para resolver os problemas adaptativos a ele relacionados. E isto
implica uma nova concepção do Estado, segundo a qual este não pode ser
concebido como Estado mínimo com obrigações puramente de proteção, senão que
tem de ter uma função positiva: a de prover as bases mínimas de uma vida
respeitável. Hoje podemos ver que a visão do Estado do século XVIII, que trata
de manter em nossos tempos o liberalismo, é a conseqüência de uma moral
fragmentada que, por sua vez, foi a ideologia da burguesia. Fixou-se na ficção
de que todos ( egoistas por natureza) podem prover para si mesmos os meios
necessários a sua existência e se fecharam os olhos ao fato de que a
hipertrofia dos lados perversos do vínculo de proporcionalidade ( cuja
conseqüência é a acumulação da riqueza nas mãos de uns poucos), rompe todos os
vínculos comunitários e de igualdade , criando ( com o monopólio do
reconhecimento da autoridade) um poder que restringe , não assegura e não
promove a liberdade (plena) dos indivíduos. (Atahualpa Fernandez).
3. Nesse sentido, é de sobra conhecido que, para Aristóteles, por exemplo, a
existência separada e autônoma, a formação do indivíduo, quer dizer, de seu
caráter, é um logro ético de primeira ordem e no qual intervém por muito o
próprio indivíduo, que se automodela e se faz a si próprio, á medida que é
capaz de eleger seus desejos e resolver seus conflitos interiores, integrando
mais ou menos harmonicamente seus distintos "eus" (ou módulos), fazendo-se mais
e mais encrático: somente dele
pode dizer-se que é "uno e indivisível", ou seja , indivíduo. Para Aristóteles
- e isto marca a diferença com relação ao pensamento platônico da felicidade do
homem virtuoso em qualquer circunstância -, ser enkratés é uma condição necessária para ser livre e feliz,
mas não suficiente. O bom controle sobre si mesmo, o ser sábio e senhor de si
mesmo (precisamente para satisfazer o imperativo do oráculo, por se conhecer a
si próprio), a "força interior" (uma possível tradução de enkratéia) ou a liberdade respeito dos
próprios impulsos, em uma palavra : a capacidade de superar os obstáculos
internos, é imprescindível para ser feliz e livre ( no sentido de que nenhum
obstáculo interno frusta sua vontade e que, para os estóicos, corresponde á ataraxia : uma disposição de ânimo cujo
logro é uma tarefa individual e que permite alcançar o equilíbrio emocional
graças á diminuição das paixões e desejos e a fortaleza frente á adversidade) ,
mas também o é um entorno que não levante diques externos á realização da firme
vontade do enkratés ( palavra que
designava em grego coloquial a quem tinha poder ou capacidade de uma firme e
virtuosa disposição sobre algo; desse adjetivo deriva o substantivo enkratéia, verossimilmente um neologismo
socrático -Jaeger).Com efeito, a consideração das constrições externas e a
idéia de que o virtuoso não pode ser incondicionalmente feliz , faz de
Aristóteles um teórico do indivíduo e da polis mais realista que Platão - seu
mestre e em relação ao qual Aristóteles guardou respeito e admiração muito
tempo depois de sua morte (Guariglia). Em câmbio, o homem acrático, incontinente ou perverso, "não é
uno, senão múltiple, e no mesmo dia é outra pessoa e inconstante" (ética Eudemia,
1240b). Ignorante de si mesmo, o Akratés - aquele que viola o silogismo prático e ignora os mecanismos causais que,
operando dentro dele, colapsam sua vontade - é, segundo a célebre definição
aristotélica, quem atua contra seu melhor juízo, ou seja, quem, havendo
decidido conscientemente um curso de ação como o melhor ou mais conveniente
para ele, é incapaz de levá-lo a cabo, pois é débil de vontade e incapaz de
impor suas próprias decisões deliberadas a seus impulsos e compulsões. Isso
leva ao homem vicioso, desesperado da debilidade de sua vontade , a enfrentar a
si mesmo, pois ao estar dissociados seus desejos e seus sentimentos, torna
possível " que um homem seja seu próprio inimigo" (ética Eudemia, 1240b). Daí
que a liberdade e a cidadania exijam, antes de tudo, um indivíduo enkrático que, por dizê-lo com o apóstolo
dos gentiles, conhece-se muito bem a si mesmo, que entende o que faz e faz o
que verdadeiramente lhe parece virtuoso e justo; isto é, de um indivíduo que,
afrontando de forma virtuosa os adversos retos racionais, os problemas
emocionais, os fatores ou resíduos de irracionalidade e as eventuais
constrições informativas exteriores desenhadas para perturbar a realização de
suas firmes convicções, desejos e juízos, não ceda ante nenhuma outra coisa
senão somente ante a força da virtude moral e da sensatez.
4. Esta idéia sugere, de pronto, que um sistema social complexo torna
aconselhável dispor de certo sentido do "eu interior" para sobreviver nos
intercâmbios recíprocos e para desenvolver aquilo que os psicólogos denominam
uma "teoria da mente", isto é, a certeza de que os outros também têm intenções
e preferências (desde logo de primeira e de segunda ordem) , crenças , pontos
de vista e desejos. Trata-se de um exercício de distanciamento intelectual com
relação aos domínios específicos em que estão estruturadas nossas intuições -
morais ou de outro tipo -, de um exercício no qual se desprega uma
intencionalidade de segunda ordem e a que Sperber denomina de módulo
metarepresentacional, isto é, um módulo conceitual especial de segunda ordem.
Enquanto outros módulos conceituais processam conceitos e representações de
coisas, geralmente de coisas percebidas, o módulo metarepresentacional processa
conceitos de conceitos e representações de representações. Muitas das
investigações atuais postulam que a função da capacidade de conceber e
processar metarepresentações é dotar aos seres humanos de uma psicologia
intuitiva. Em outras palavras, este é um "módulo da teoria da mente", e seu
domínio próprio está constituído pelas crenças, os desejos e as intenções que
dão lugar á conduta humana. A capacidade para compreender e classificar as
condutas não como simples movimentos corporais senão em termos de estados
mentais subjacentes é uma adaptação fundamental dos organismos que devem
cooperar e competir entres eles de muitas maneiras. Uma vez que se tem na
ontologia estados mentais e capacidade para atribuí-los a outras pessoas, não
há mais que um passo, ou não há sequer um passo, até ter desejos acerca destes
estados mentais - desejar que alguém creia tal coisa ou que alguém deseje uma
outra - e gerar intenções para modificar os estados mentais de outras pessoas.
A comunicação humana é tanto uma maneira de satisfazer esses desejos
metarepresentacionais como de explorar as capacidades metarepresentacionais da
audiência. Um organismo que está dotado somente de módulos perceptivos e
módulos conceituais ( um processo perceptivo seria: "há uma nuvem"; inferir
desta percepção "é possível que chova" é um processo conceitual) de primeira
ordem possui crenças, mas em câmbio não tem crenças acerca das crenças próprias
ou alheias, nem uma atitude reflexiva respeito delas. O vocabulário relacionado
com suas crenças está limitado ao vocabulário de saída de seus módulos e não
pode conceber nem adotar novos conceitos nem criticar ou rechaçar os velhos. Um
organismo que, em câmbio, está dotado também de um módulo metarepresentacional
pode representar-se conceitos e crenças acerca de conceitos e crenças, pode
avaliá-los criticamente e aceitá-los ou rachaçá-los no terreno das
metarepresentações. Em resumo, trata-se de suas classes diferentes de módulos e
de crenças ou representações: as crenças "intuitivas" originadas em módulos de
primeira ordem e as crenças "reflexivas" surgidas do módulo
metarepresentacional. Isso, em qualquer caso, poderia ser uma das justificações
psicológicas mais profundas da idéia segundo a qual não há vida moral(ou
jurídica) , nem bom conhecimento, sem intencionalidade de segunda ordem ( sem
preferências sobre preferências, ou sem crenças sobre crenças). Nesse sentido,
negar que tenha sentido discutir ou argumentar a favor e em contra das
preferências dos indivíduos implica, desde logo, negar que tenha sentido o fato
de que os indivíduos mesmos reflexionem pertinente e adequadamente acerca de suas próprias preferências. Significa
negar filosoficamente ás pessoas a possibilidade ou a oportunidade de que
deliberem acerca de se o que consideram "o melhor" é realmente o melhor para
elas. Mas isso é tanto como negar-lhes a condição mesma de pessoa. Pois o mesmo
que com as crenças, acontece com os desejos: porque os humanos, á diferença do
resto dos animais, se distinguem pela capacidade de tomar distância intelectual
e emotiva sobre seus desejos e preferências. E a mais clara evidência disso é
que todos temos preferências sobre nossas
próprias preferências, quer dizer, preferências de segunda ordem.
Desejamos isto ou aquilo, mas desejamos também desejar isto e aquilo. Desejamos
fumar, por exemplo, mas desejamos não desejar fumar. Desejamos ser de alguma
maneira (quiçá distinta da que somos), e isso equivale a desejar ter
determinados desejos (seguramente distintos dos que normalmente temos). Quanto
sofrimento humano deixa sua raiz mais profunda em um conflito entre as ordens
de preferências.
5. Daí que uma das principais debilidades do pelo demais muito estimável livro
de Pettit seja a de haver construído, de bom começo, a noção de liberdade como
não-dominação de um modo que exclui quase por completo o autocontrole
psicológico ; é que dessa debilidade resultou as dificuldades com que tropeça
ao final do livro, á hora de defender a noção de virtude cidadã.
6. Isto implica, desde logo, o pressuposto "inclusivista" de que todos os
indivíduos têm de contar por um, e nenhum por mais de um - o pressuposto que
distingue a concepção de republicanismo aquí adotada de suas variantes
modernas-, e que incorpora já uma sorte de compromisso igualitário: significa
que a comunidade política é requerida não somente para tratar os indivíduos
como iguais, senão também para criar as condições necessárias e as
possibilidades reais para que essa igualdade seja ( efetivamente) levada a
cabo. Dito de outro modo, uma concepção republicana democrática terá de ser
também "inclusiva", dar espaço para que gentes procedentes de todos os rincões
da sociedade possam impugnar as decisões legislativas, executivas e judiciais.
Este requisito significa que o Estado terá de ser representativo de diferentes
setores da população, que os canais de disputa terão de estar bem estabelecidos
na comunidade e que o Estado terá de se guardar da influência das organizações
empresariais e de outros interesses poderosos (Pettit). Note-se ainda que desde
suas primeiras formulações a justiça sempre foi associada com a igualdade e,
nessa mesma medida, foi evolucionando ao compasso desse princípio ilustrado. No
Livro V da ética a Nicómaco, por
exemplo, Aristóteles desenvolveu a sua doutrina da justiça ( que, ainda hoje,
representa o ponto de partida de todas as reflexões sérias sobre a questão da
justiça ) situando a igualdade (proporcional ou geométrica) como o cerne deste
valor, isto é, como núcleo básico da justiça. De fato, e neste particular
sentido, tanto em situações experimentais como de observação, já se demonstrou
que o objetivo da justiça baseado na igualdade é capaz de anular quaisquer
outras considerações contrapostas. Inclusive o princípio básico do
comportamento humano que é maximizar o próprio benefício, é rechaçado em favor
de maximizar uma distribuição equitativa (um princípio da igualdade): alguns
estudos indicaram que, ademais de sentir-se desgraçadas quando obtêm menos do
que crêem que merecem, as pessoas se sentem verdadeiramente incômodas quando
obtém mais do que merecem ou quando outras pessoas obtêm mais ou menos do que
merecem. Em síntese, dado um conjunto determinado de condições qualificativas,
as pessoas sempre tratarão de atuar de uma maneira que pareça justa, quer
dizer, igualitária (Clayton e Lerner). Mas, como é quase ocioso recordar, a
igualdade não é um fato. Dentro do marco da espécie humana, que estabelece uma
grande base de semelhança, os indivíduos não são definitivamente iguais. O
princípio ético-político da igualdade não pode apoiar-se portanto em nenhuma
característica "material"; é mais bem uma estratégia sócio-adaptativa, uma
aspiração desenvolvida ao longo de nossa história evolutiva, que passou de
aplicar-se a entidades grupais mais reduzidas até englobar a todos os seres
humanos (como proclamam, aliás, as mais conhecidas normas acerca dos direitos
humanos da atualidade). A justificação de tal princípio descansa, desde suas
origens, no reconhecimento mútuo, dentro de uma determinada comunidade ética,
de qualidades comuns valiosas e valores socialmente aceitos e compartidos, os
quais representaram uma vantagem seletiva ou adaptativa para uma espécie
essencialmente social como a nossa que, de outro modo, não haveria podido
prosperar biologicamente. A regra, portando, é do trato igual, salvo nos casos
em que, por azar social (origem de classe, adestramento cultural, etc.) ou azar
natural (loteria genética - que inclui a distribuição aleatória de talentos e
de habilidades - enfermidades e incapacidades crônicas sobrevindas, etc.), dos
quais não somos absolutamente responsáveis, o tratamento desigual esteja
objetiva e razoavelmente justificado. Que embora a igualdade constitua o núcleo
básico da justiça ( e parece muito intuitivo que se trata de uma emoção moral
arraigada em nossa arquitetura cognitiva mental : o mais canalha dos homens sempre
reagirá ante um tratamento desigual no que se refere a sua pessoa), as reais e
materiais desigualdades entre os membros de nossa espécie exigem o desenho de
estratégias compensatórias para reparar, na medida em que se possa fazer, as
desigualdades nas capacidades pessoais e na má sorte bruta. Dito de outro modo,
justiça e igualdade não significam, necessariamente, ausência de desníveis e
assimetrias, já que os indivíduos são sempre ontologicamente diferentes, mas,
sim, e muito particularmente, ausência de exploração de uns sobre outros. Daí
que tratar como iguais aos indivíduos não necessariamente entranha um trato
idêntico: não implica necessariamente, por exemplo, que todos recebam uma
porção igual do bem, qualquer que seja, que a comunidade política trate de
subministrar, senão mais bem a direitos ajustados ás diversas condições
(Dworkin). Nas palavras de Zeki e Goodenough: "For instance, in a literal
sense, human equality is a myth. Variation ensures that each of us has our own
package of strengths and weaknesses. Neither of us has the ability to paint
respectably, write good detective fiction, compose songs or play sweeper for
even a middling kind of football team. Yet, as a legal matter, the democratic
societies in which we live treat us as the equal of those who can do these
things. This equality myth is a key element in the maintenance of a
particularly admirable kind of social order, a counterfactual that pays
dividends in fairness and stability. Proving the law wrong in its declared
assumptions may not actually affect the utility of those assumptions (p.e.
Goodenough)".
7. Uma observação paralela acerca da noção de liberdade: para começar, diremos
que para ser plenamente indivíduo, para gozar de plena existência individual,
separada e autônoma, é necessária a liberdade plena. E a liberdade (plena), a
exemplo do que ocorre com a individualidade, também não pressupõe a (plena)
existência ab initium et ante saecula de indivíduos (plenamente) separados e autônomos, senão que a (plena)
existência separada e autônoma desses indivíduos pressupõe a (plena)
institucionalização histórico-secular da liberdade. De fato, na vida social
tudo é possível : o melhor - se houver - e, desde logo, o pior. Tão é tudo
possível na vida social, que até é possível nela a declaração de inexistência
individual, o certificado de defunção social de alguns humanos: a escravidão é
a morte do "indivíduo" para todos os efeitos do trâmite social, sua
desumanização total por via de redução do sujeito a mero instrumentum vocale , segundo a célebre
formulação do direito romano ( ou "instrumento animado" , para usar a expressão
de Aristóteles).Para existir como indivíduo separado e autônomo é , pois, e ao
menos , necessária a prévia institucionalização da liberdade; é necessário não
ser escravo, não ser tratado como um instrumento , senão como um fim em si
mesmo - aliás , dito seja de passo, perde-se habitualmente de vista que quando
Kant formula a exigência de tratar aos demais como fins em si mesmos, não está
dizendo nada radicalmente novo e "moderno", mas que está repetindo o mesmo que
sustentaram todos os filósofos morais e todos os juristas republicanos ao menos
desde Aristóteles, ou seja: que aos livres não se lhes pode tratar como
escravos , quer dizer, como instrumentos ( "vocais" ou "animados"). Pois bem, o
liberalismo entende por liberdade somente a liberdade negativa, e esta é
definida de tal maneira que uma pessoa é livre quando está livre de coerção,
quer dizer, que não há ninguém nem tampouco uma lei que lhe ponha impedimentos.
De liberdade positiva se fala, em câmbio, quando uma pessoa tem a capacidade e
a oportunidade de atuar, ou seja, de que o Estado não só deve proteger senão
também ajudar o indivíduo, de criar oportunidades para que o indivíduo se possa
ajudar a si mesmo. Para citar um exemplo que se encontra em Hayek: no primeiro
caso, um montanhês que cai em um abismo do qual é incapaz de sair, é livre
neste sentido porque não há ninguém que o impeça de sair; já no caso de
liberdade positiva, nosso montanhês precisamente não seria livre neste sentido,
se não pode sair, ainda que ninguém o impeça - falta-lhe a capacidade e a
oportunidade de atuar. O direito proíbe, por exemplo, matar a outro indivíduo
se não é em circunstâncias muito extremas, e isso supõe uma restrição óbvia de
meus cursos de ação, supõe uma interferência. Mas dita interferência não é
arbitrária, senão que precisamente está justificada pela proteção geral da
liberdade dos cidadãos, assim que não pode implicar uma violação de minha
liberdade mais que em um sentido muito primário. Trata-se, em síntese, de uma
concepção robusta de liberdade, aqui entendida em seu sentido
republicano-democrático, como "não interferência arbitrária", ou seja, como um
aparato histórico-institucional que imponha ao Estado a obrigação de assegurar e de promover, no
contexto de uma sociedade igualitária, a liberdade necessária para que o
indivíduo possa autoconstituir-se como entidade separada e autônoma, e que, em
igual medida, garanta ao mesmo - como já dissemos antes, plena capacidade para
resistir á interferência arbitrária não somente do próprio Estado, mas também
de si mesmo e de todos os demais agentes sociais. Sobre liberdade republicana e
sua diferença com relação a liberdade liberal: Pettit; Overero et al.; Skinner ; Sandel e Atahualpa
Fernandez.
8. Precisamente, no direito romano, o consentir em ser vendido a outro,
participando do preço, acarretava a perda automática da cidadania (Inst. Just.,
I, Título 3º., 4). Nas repúblicas antigas, as dívidas não saldadas podiam levar
a um livre á condição de escravidão ( daí a origem do "vender-se para
participar do preço"). A maioria das póleis democráticas helênicas - não as oligárquicas - aboliram esse uso, que ameaçava
permanentemente e fatalmente aos livres pobres (Ste. Croix).
9. E aqui talvez seja razoável intercalar um parêntese para lembrar que, sobre
este aspecto, nos filiamos á doutrina que tende a conceber a dignidade a partir
da situação básica de relação do homem com os outros homens, em lugar de
fazê-lo em função do homem singular encerrado em sua esfera individual e que
havia servido ás caracterizações deste valor na fase do Estado liberal de
direito. Esta dimensão intersubjetiva (relacional, coexistencial) da dignidade
é de suma trancendência para calibrar o sentido e o alcance atual da ética e do
direito que encontram nela (na dignidade) seus princípios fundantes. E não
podemos inferir nada acerca da dignidade humana a partir de nossos meros ideais
políticos ou de vagas elocubrações acadêmico- filosóficas. A investigação da
dignidade está estritamente vinculada com a noção de natureza humana, a qual,
por sua vez, é uma questão tão fática como a medida do perihélio de Mercúrio.
Resulta epistemologicamente insustentável a posição dos que postulam uma
natureza humana de um certo tipo com independência de qualquer informação
empírica sobre esta e meramente como condição transcendental da possibilidade
da moralidade, da responsabilidade, da sociedade igualitária ou da igual
"dignidade" humana. Depois, parece oportuno observar que a própria idéia de
dignidade é um conceito relativo, a qualidade de ser digno de algo. Ser digno
de algo é merecer algo. Uma ação digna de aplauso é uma ação que merece o
aplauso. Um amigo digno de confiança é um amigo que merece nossa confiança. Se
alguém é mais alto ou gordo ou rico (ou o que seja) que outro, então merece que
se registre seu record, quer dizer, é digno de figurar no Guinness World
Records. O que não significa nada é a tão popular dignidade genérica, sem
especificação alguma. Dizer que alguém é digno, sem mais, é deixar a frase
incompleta e, em definitiva, equivale a não dizer nada. De todos modos,
palavras como "dignidade", ainda que privada de conteúdo semântico, provocam
secreção de adrenalina em determinados juristas acadêmicos e proclives á
retórica. De fato, resulta inclusive muito difícil aceitar a própria noção
kantiana da dignidade humana. E a razão, como se verá, consiste em que tal
noção obriga a aceitar uma forma de dualismo de duvidosa cientificidade: que há
um reino da liberdade humana paralelo ao reino da natureza e não determinado
por ele. Depois, Kant mesmo não oferece prova alguma de que o livre arbítrio
existe; se limita a dizer simplesmente que é um postulado necessário da razão
prática pura sobre a natureza da moralidade. Ora, o fundamento da moral e do
direito não está na dignidade abstrata, senão na plasticidade concreta de nosso
cérebro, em nossa margem de manobra, em nossa capacidade de pensar e decidir,
de gozar e sofrer. Daí que nenhuma teoria social normativa (ética ou jurídica)
coerente deveria admitir termos tão vazios como o de dignidade sem uma base
empírica acerca da natureza humana , sob pena de converter-se em uma cerimônia
da confusão revestida de um esquema teórico abstrato, vazio e meramente formal.
10. A este propósito, Tugendhat chama atenção ao fato de que, dentro da
evolução atual do direito constitucional , criou-se na Alemanha dos pós-guerra
um conceito novo , que também começa a ser adotado no pensamento anglosaxônico,
denominado de "Drittwirkung", que significa literalmente o efeito para
terceiros. Com esto conceito pretende-se afirmar que as garantias
constitucionais não devem restringir somente o poder do Estado, senão também o
poder que umas partes da sociedade têm sobre outras. Este passo, que reconhece
que as garantias constitucionais não devem restringir somente o poder do
Estado, senão todo o poder, é, segundo Tugendhat , um importante passo
intermédio que não deve ser aplicado somente aos direitos negativos.
11. E aqui parece residir, em seu sentido mais radical, o significado mais
profundo da celebríssima sentença de Aristóteles , trivializada até tornar-se
quase que incompreensível: que o homem é um "animal político" quer dizer que
todas as suas relações sociais - incluídas as relações consigo próprio - são
potencialmente políticas, são relações de poder , de autoridade, de governo.
Quer dizer que o homem é um animal social, que só socialmente se constitui como
indivíduo separado e autônomo, e que a vida social - parte da qual é a vida
intrapsíquica - está prenhada de assimetrias e desigualdades, de relações de
poder. Tendemos hoje a ver essas declarações como puras metáforas, porque o
pensamento liberal do século XIX - não há liberalismo propriamente dito antes
do XIX - nos acostumou a ver a esfera privada como uma esfera completamente
despolitizada, isto é, como uma esfera na qual não se dão relações de poder de
nenhum tipo. Mas é precisamente isso o que está agora de novo em disputa: que a
relação entre o marido e a mulher , entre o empregador e o empregado, entre as
instituições bancárias de crédito e os clientes , entre o magnata oligopolista
e os inermes consumidores ; o que está agora de novo em disputa , digo, é que
tudo isso sejam relações puramente privadas em sentido liberal, quer dizer,
vazias de poder e , portanto, apolíticas , insuscetíveis de transformação e
intervenção política. Com efeito, muitos dos âmbitos em que os indivíduos
desenvolvem boa parte de sua vida social (empresas , bairros, famílias) estão
submetidos a relações de autoridade que abarcam aspectos fundamentais de sua
existência. Assim, por exemplo, os proprietários dos meios de produção, com
frequência tomam decisões ou impõe regras que alcançam não somente aos próprios
processos de trabalho, senão que têm que ver com os modos de vida dos
trabalhadores e, sobretudo, das trabalhadoras (indumentárias, decisões
reprodutivas, formas de socialidade, etc.). Daí porque as versões mais
igualitárias e mais participativas do republicanismo desconfiam de um sistema
de produção que alimenta a venalidade e o egoísmo; criticam o férreo limite
liberal entre o público e o privado e defendem que os princípios republicanos
(igualdade de poder , autogoverno) não se limitem á esfera pública, senão que
também devem alcançar a casa ou a fábrica; desenham propostas institucionais
que limitem uma desigualdade que entendem incompatível com o sentimento cívico
e a justiça material; e se mostram confiadas nas possibilidades cívicas e
cooperativas de uma natureza humana que estimam maculada pelo moderno
capitalismo de corte liberal. No mais, é muito provável que a idéia
foucaulniana dos "micropoderes" possa encontrar aquí, na crítica da
despolitização liberal da sociedade civil, uma via de fértil relaboração.
12. No direito romano, o contrário do sui
iuris é o alieni iuris (Inst.Just., I, Título 8º.).
13. Para Aristóteles, sobretudo em sua Política (1290 a-b), passagem em que
declara expressamente que "democracia" quer dizer governo dos pobre livres. E
mais fiel que Kant ( para quem a democracia é um despotismo) á aguda análise
classista aristotélica do governo foi Adam Smith: O governo civil, enquanto é
instituido para a segurança da propriedade, é instituído em realidade para a
defesa do rico contra o pobre, ou daqueles que têm alguma propriedade contra
aqueles que não têm nenhuma (John Rae) .
14. " O governo não tem outro fim que o de preservar a propriedade", parágrafo
94 do Segundo Tratado.
15. Após as vitórias á domicílio dos exércitos napoleônicos, vinha a introdução
do Código de Napoleão, grande nivelador e dissolvente de estruturas servís,
estamentais e gremiais. Logo após a conquista de Moscou, não se resolveu o
Imperador a implantá-lo. Este erro político do general corso foi em realidade
seu pior erro como militar : os campesinos russos assim liberados de seu odiado
regime de servidão haveriam provavelmente tolerado e ainda sustentado
ativamente a intendência das tropas francesas ocupantes .
16. A teoria econômica neoclássica tradicional ( a de primeira e segunda
geração) foi em boa medida a análise sofisticada, não da vida econômica
histórico-real, senão dessa ficção jurídica. No manual mais lido por gerações
inteiras de estudantes de economia, o de Samuelson (Prêmio Nobel em 1970)
pode-se ler o seguinte: "Em um mercado perfeitamente competitivo, realmente não
importa quem alquila a quem; assim pois, suponhamos que o trabalho alquila ao
capital". A relação capital-trabalho, uma relação de todo ponto assimétrica e
política para a velha economia política ( de Adam Smith a Marx), tornava-se agora, com a teoria econômica neoclássica
tradicional, uma relação simétrica e impolítica (Doménech).
17. O liberalismo de esquerda ( os liberais
á " la norte-americana" e o grosso da social-democracia européia
atual) reaciona a isso com grande vivacidade, tratando de marcar e fazer de
verdade estanques os dois compartimentos e criticando a transferência massiva
de recursos desde a sociedade civil privada até a vida política pública
(Rawls). Naturalmente as vias de "contágio" entre a esfera "apolítica" e a
"público-política" são numerosas, e não se esgotam na degeneração plutocrática
das democracias de cunho liberal. Em uma original crítica do liberalismo de
esquerda, George Lakoff , por exemplo, chamou a atenção sobre o papel crucial
que desempenham na retórica da argumentação política pública as metáforas
procedentes da vida privada familiar.
18. De fato, Clarín - grande filósofo do direito, eclipsado por sua fama de
grande escritor - foi um crítico severo das graves limitações democráticas do
então ainda incipiente liberalismo: "Mas ainda mais triste ( e melhor prova do
que afirmo) que a ausência de leis que dêm ao direito da autonomia tudo o que
em justiça lhe pertence, muito mais triste é a ausência do sentido jurídico da
autonomia nos povos ; quase ninguém se queixa... da espécie de escamoteio do direito próprio, que com
habilidade duvidosa mas com desdita admirável, nos dão em espetáculo contínuo
os poderes constitucionais que equilibrados bem ou mal entre si, conspiram com
perfeita armonia com o fim de fazer ilusória a chamada soberania popular. é o
povo um soberano in partibus infidelium.
E sem embargo, partidos liberais inteiros, que oferecem mil vantagens, nem
sequer como guloseima de direito oferecem um remédio para impedir este jogo no
qual o povo sai perdendo sempre. E é que esses partidos liberais não sentem a
necessidade de converter em real essa soberania tão decantada, para crer na
qual se necessita de uma fé não menos cega que para crer na eficácia das
relações que a Igreja mantém com o céu"( Leopoldo Alas).
19. Sobre a natureza e as características de cada um desses vínculos cfr. Fiske
e Atahualpa Fernandez.
20. Tal era o sentido da lex agrária proposta pelos irmãos Graco: restringir a acumulação da propriedade da terra,
restringindo as condições de sua alienabilidade - embora essa proposta, como se
sabe, tenha-lhes custado a vida. Ora, uma vida social polarizada, com extremas
desigualdades, leva ao faccionalismo, á destruição de toda possibilidade
deliberativa, e finalmente - como acabou acontecendo em Roma -, á completa
desvigorização da cidadania. Por isso até Maquiavel - diligente funcionário a
serviço da diplomacia da época pós-savonaroliana e que era um republicano de
tradição latina, isto é, não democrática - deixou advertido que a viabilidade
da vida civil "republicana" - ao contrário que a "monárquica" - exige certas
doses notáveis de igualdade na estrutura básica da propriedade: o que queira
fazer uma república donde existam bastantes gentilhomens, não poderá fazer nada
se primeiro não os despede a todos, e o que queira fazer um reino ou um
principado donde exista bastante igualdade não poderá fazê-lo se não extrai
dentre os iguais muitos homens de ânimo ambicioso e inquieto e os converte em
gentilhomens de fato, se não de nome, dando-lhes castelos e possessões e lhes
favorecendo com bens e com homens, para que assim, posto em meio deles,
sirva-se, para manter seu poder, dos que, a sua vez, apoiam-se nele para
sustentar sua ambição, enquanto que os demais são obrigados pela força a
suportar este jogo que, de outro modo, não consentiriam (Discursos).
Registre-se que, direta ou indiretamente, a defesa, sóbria e vigorosa, que nos Discursos sobre a primeira década de Tito Livio ( um dos livros mais influentes na política prática das três centúrias
seguintes) se faz da superioridade das constituições republicanas sobre os
principados e monarquias, irradiou, em efeito, ao republicanismo revolucionário
moderno, aos homens da commonwealth na Inglaterra do XVII, a Rousseau e os clubes jacobinos na França do XVIII, ao
republicanismo transatlântico de Jefferson e os padres fundadores dos Estados
Unidos da América. Irônica vingança contra o "sórdido tipo de vida" , afastado
da ação, a que se viu reduzido Maquiavel (como puro homem de letras) quando do
restabelecimento em Florença do Principado dos Medici (Skinner).
21. Aqui há que se considerar as ações que os psicólogos contemporâneos chamam
"autotélicas", isto é, das ações que se valoram por si mesmas,
independentemente de suas conseqüências ( uma atividade que compensa por si
mesma a quem a realiza e que, por isso mesmo, proporciona inestimáveis
retribuições internas). Estas são aquelas ações nas quais a típica relação
meios-fins com que se soe descrever a ação humana não vige: a ação autotélica
traz a recompensa em si mesma, nos próprios meios. O processo é o que conta, o
caminho é a meta ou parte da meta ( e a meta é um estado mental).Um exemplo
importante - ademais de clássico - é o do trabalho: o jovem Marx condenava a
alienação do trabalho sob os regimes econômicos de propriedade privada
precisamente porque impediam que fosse uma atividade autotélica - portanto,
livre e voluntária, e não trabalho forçado -; mas não há modo de dar sentido a essa condena ética da alienação do trabalho
- uma das peças decisivas da teoria marxista da justiça - no marco de uma
linguagem puramente egoísta.
22. Em verdade, o liberalismo, sejam quais forem seus méritos, não pode
considerar-se o legítimo herdeiro histórico da noção - antiga e moderna - republicana
de cidadania , que exige virtude, independência e uma liberdade mais protéica
que a pura não inteferência. Quando muito, pode reclamar para si a herança do
Edicto de Caracala (anno domini 212), por meio do qual se concedeu uma desleixada "cidadania" romana aos
súditos de todos os rincões do Império.
Autor:
Atahualpa Fernandez
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