O que significa "existir politicamente?",
perguntam-se os teóricos do republicanismo1 na busca de saciar a
curiosidade filosófica em torno da noção de cidadania. Em verdade, o "existir"
de que nos ocupamos quer dizer ter cédula de plena cidadania , de uma relação
de vida em que ter cédula de plena cidadania é ter voz e voto nas deliberações
comuns, ter a capacidade para resistir a interferência arbitrária de outros (não
somente do próprio Estado, mas também de todos os demais agentes sociais2 )e, em igual medida, para resistir (como o homem encrático de Aristóteles ) a interferência arbitrária do
"inimigo" que todos nós levamos dentro : por isso que, para uma concepção
republicana , não há cidadania sem virtude, sem autogoverno pessoal; o mero bourgeois está ainda muito longe do citoyen.
E como uma ( e toda ) república é uma "república de razões", isso implica que
todos os participantes na deliberação comum devem estar dispostos a cambiar
suas preferências como resultado da deliberação. Todos devem ter, pois, e ao
menos, a preferência de segunda ordem de modificar suas preferências de
primeira ordem em caso de que os argumentos contrários resultem concludentes ;
e devem ter também a força de vontade para lográ-lo, isto é, para conseguir que
ao menos esta metapreferência se imponha as suas preferências de primeira ordem
(Sunstein)4 .
Por outro lado - diga-se de passo -, não há qualquer razão para crer que este
ideal de cidadania implica tanto como ás vezes se sugere : quase se converteu
em lugar comum - falso, por certo, como a maioria dos lugares comuns - o dizer
que a exigência republicana de virtude cidadã implica perfeicionismo moral .
Desde logo, há que observar que o muito republicano Kant distinguiu nitidamente
entre o bom cidadão e o homem moralmente bom - ou seja, entre a virtude cidadã
e a virtude moral. Isso é coisa sobradamente conhecida , não obstante não falte
quem replique que precisamente esse detalhe faz de Kant um liberal á la moderna, e não um republicano á la antiga. Assim como assim , para tirar
esse alguém do assylum ignorantiae em que evidentemente se acha sua consciência histórica, basta com que se lhe
recomende urgentemente a leitura do livro III da Política (1276b-1277b) de
Aristóteles, que é a origem da distinção posterior - também kantiana - entre
virtude cidadã e virtude moral5 .
Pois bem, entendido assim, parece muito intuitivo que a condição ou a relação
social de cidadania, em termos de uma concepção democrático-republicana, é uma
condição ou relação de igualdade básica e equilíbrio entre pares: não havendo
equivalência e não sendo indiferenciados em sentido moral, o que cabe a cada
indivíduo é atribuído por "direito próprio", em função de sua individualidade
separada e autônoma. Sua estrutura lógico-formal é a de um grupo abelhiano:
pressupõe a estrutura das classes de equivalência e a estrutura da ordem linear
parcial, complicando-as ulteriormente mediante a introdução de um operador de soma,
de um elemento neutro e da definição das propriedades de comutatividade e
associatividade.
De acordo com essa estrutura, pode-se "somar" e "diminuir", mas não multiplicar
ou dividir. As relações de amizade, como as de cidadania, são relações enquadradas
neste tipo de estrutura de igualdade. Por isso não é de estranhar que na
tradição republicana resulte fundamental este tipo de vínculo social relacional
de igualdade, porque nele se joga basicamente o processo de aperfeiçoamento
mútuo - e de auto-aperfeiçoamento - e, portanto, a parte nuclear do processo de
correta formação do caráter pessoal e de uma adequada via de individualização6 .
Pensemos por um momento nas implicações de algo tão simples como a divisa: "um
homem, um voto". Esta divisa aponta a um modo de resolver uma determinação
coletiva, dando a cada um, independentemente de quaisquer méritos que seja
possível reconhecer-lhe ( riqueza, instrução, suposta excelência moral, etc.),
exatamente o mesmo peso á hora de inclinar a balança da decisão comum; ou seja,
guarda uma relação de equilíbrio no que se refere as diferenças dos agente
sociais que dela participam e dispõe de meios para restaurar o equilíbrio nos
casos em que a situação assim o requeira.
Há, com efeito, outras maneiras de resolver esse problema de decisão coletiva.
Por exemplo: a) por consenso
unânime ( um modo congenial com o éthos dos vínculos comunitários); ou b) autoritariamente, por decisão dos superiores hierárquicos ; ou c) dando a cada um, não o mesmo peso,
senão um peso proporcional a algum de seus méritos, a sua riqueza, ponhamos o
caso.
Imaginemos, por um momento - e como mero exercício mental - , como poderia ser
uma vida política assim ; poderíamos organizar um verdadeiro mercado político (
um de verdade, e não essa brincadeira metafórica com que a "teoria econômica da
democracia" trata de representar os processos políticos atuais) : uma subasta
de votos. Vender-se-ia então o direito de sufrágio ao melhor preço. Seria um
lindo mundo este, em que os magnatas oligopolistas e outros empresários modelo
pelo estilo pujassem em subasta pública por comprar votos cidadãos.
Votos cidadãos? Seríamos "cidadãos" se a lei nos permitisse alienar, por
exemplo, nosso direito de sufrágio?
Seguramente que não; não seríamos cidadãos, em nenhum sentido sério da palavra.
Como tampouco o seríamos se o direito consentisse a alienação de nossa
liberdade7 , se, ponhamos o caso, reconhecesse validez pública a um
contrato civil privado , "livremente" subscrito -coacti volunt - , por meio do qual uma parte se vendesse á
outra em qualidade de escrava, participando do preço8 . Há direitos
de todo ponto inalienáveis, como estes dois, o direito de sufrágio e o direito
a não ser "objeto" ou propriedade de outro. E são inalienáveis, porque não são
direitos puramente instrumentais, senão direitos
constitutivos do homem mesmo como âmbito de vontade soberana:
direitos que habilitam publicamente a existência de in-divíduos dignos,
separados, livres e autônomos, isto é, que habilitam publicamente a existência
dos cidadãos.
Certamente que o fato de que a lei limite nossa capacidade de eleição,
proibindo a alienação voluntária do sufrágio e da própria liberdade é uma
interferência. Mas bem sabemos que para o republicanismo não molestam as
interferências como tais, senão somente as interferências arbitrárias. As
interferências legais não arbitrárias não somente não diminuem ou restringem em
nada a liberdade, senão que a protegem e ainda a aumentam, como claramente se
pode constatar nos exemplos aquí mencionados.
Sem inalienabilidade legal do sufrágio e da própria pessoa - para seguirmos no
exemplo dado- , não há liberdade, nem há dignidade9 , e nem, se bem
observado, existências políticas individuais, autônomas e separadas
(cidadania). Estas duas restrições legais ( como não interferência arbitrária e
própria da liberdade republicana), característica de nossas democracias, são um
dos testemunhos mais patentes do fato de que a base do mundo político moderno
foi sentada pela tradição republicana. Representam o núcleo duro republicano de
nossas democracias, resistentes até agora (embora por vezes mitigadas e
vilipendiadas de forma dissimulada) á "desconstrução" que o liberalismo operou
na modernidade.
Richard Price é particularmente expedito no tema do direito e, especialmente,
no que se refere á liberdade: um governo justo não infringe a liberdade, mas a
estabelece; não anula os direitos da humanidade, senão que os protege e os
confirma;(...) não é a mera possessão de liberdade o que permite chamar livres
a um cidadão ou a uma comunidade, senão a segurança de possuí-la que dimana de
um governo livre..., segundo se dá este quando não existe nenhum poder que
possa efetivamente anular a liberdade. Por conseguinte , se se atende
unicamente á concepção puramente negativa da liberdade como não-interferência,
então essas duas restrições ( do sufrágio e da própria pessoa) têm de se ver
como intromissões na "liberdade" dos "indivíduos", intromissões justificáveis
(Nozick) - ou não (Ayn Rand) - por outros valores que competem com o da
liberdade liberal puramente negativa.
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