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Alfabetização, necessidades e inclusão social (página 2)

Emilia Maria da Trindade Prestes

As aprendizagens requeridas (aquisição de competências) vai depender das condições de competências e das interações e cooperações existentes entre os diferentes agentes ou fatores envolvidos - como, por exemplo, entre professores e alunos, aliando suas competências e suas habilidades e propiciando o aparecimento de novas performances (transformações) ou aprendizagens. Quando coincide haver interações (consenso) entre as competências individuais e coletivas - uma ação dialógica - envolvendo as diferentes competências dos agentes envolvidos, existe maior possibilidade de haver transformação e uma nova auto-organização: a aprendizagem. Mas a aprendizagem, por si mesma, não garante o atendimento das necessidades motivacionais (as performances).

Uma pessoa pode adquirir novas competências (aprendizagem) sem que estas, estejam efetivamente sendo utilizadas na contemplação das necessidades cotidianas, objeto de motivação para o estudo e para a aprendizagem, como por exemplo, aplicar a leitura e escrita aprendida para melhorar o trabalho ou nas orientações no espaço urbano (autonomia - inclusão). Quando falo em aprendizagem estou restringindo sua aplicação á situação de aquisição da capacidade ler e de escrever[2] na modalidade de EJA, compreendendo-a como uma possibilidade de aquisição de novas competências e mudanças de comportamentos anteriores. A aquisição da leitura e escrita será entendida, portanto, como a possibilidade de promoção de "nuevas autoorganización, la emergencia espontánea de nuevas estructuras y nuevas formas de comportamiento" (Gonzales, 2005), capazes de oferecer ás pessoas contemplação dos requisitos das suas vidas cotidianas em um contexto em constante transformação. (inclusão - ampliação de níveis de autonomia).

 Em um modelo de sociedade que transita da sociedade do trabalho para a sociedade da formação e da comunicação, a alfabetização também pode ser vista como um tipo de aprendizagem escolar que possibilita ao indivíduo estabelecer interações sociais, comunicações e intercâmbios no seu fazer cotidiano. Adquirir maior autonomia e ampliar de espaços de cidadania. Portanto, estou compreendendo a alfabetização como um processo articulado a uma complexa rede de espaços e relações socioculturais e políticas entre os quais as condições (competências) para alargar os espaços de inclusão. O enfoque da alfabetização de pessoas jovens e adultas centrado nas necessidades cotidianas permite relacionar esta problemática ás exigências da sociedade em transformação e que requisita dos cidadãos instrução e formação, categorias que ganharam e mudaram seus eixos de ação e interpretação nos processos históricos contemporâneos.

Em um contexto de "modernização reflexiva" (Beck, Giddens, Lash, 1994), da crise do trabalho (Hirata, 2002), da ressignificação da justiça e das liberdades de escolhas(Sen, 2001 ) da qualificação permanente ou da educação ao longo da vida como aprendizagens focadas na instrução escolar, a alfabetização dos indivíduos adquire novos significativos, no cotidiano das pessoas.(cf. Ribeiro, Vóvio e Moura, 2002). Para explicar a importância da alfabetização, vista como processo inicial de formação ao longo da vida e no trânsito da sociedade do trabalho para a sociedade da formação, encontro nas idéias de Peter Alheit sobre as aprendizagens e os saberes pedagógicos provenientes do "mundo da vida" cotidiana, uma referência para entender as noções de aprendizagem das pessoas adultas e como essas se dão.

No trabalho de Hernández, (2005) sobre Alheit, há uma passagem sobre o emprego de biografia da aprendizagem ao longo da vida, onde o teórico defende o emprego dessa metodologia como possibilidade de melhor captar o desenvolvimento do processo de aprendizagem. Para Alheit, a aprendizagem é uma ação integrada as experiências de vida. Um processo de "autopoese" que se comunica com as elaborações criativas de outras pessoas, tendo, portanto, raízes sociais, ainda que a biografia de cada pessoa seja única. (Hernández, 2005). Nesta estrutura conceptual, "aprender" pode ser compreendido, em um sentido largo, como o processo social de fazer, de dar forma e de transformar experiências sociais em situações, em mudança, em um período de tempo mais curto ou mais longo. A categoria "aprendizagem biográfica" (cf Alheit 1995b, Dausien 1998b. in: Dausien, 2000) significa a organização de processos de aprendizagem em um nível mais elevado, isto é, em uma estrutura do tempo e de sentido, capaz de organizar experiências, interpretação, memória, e expectativa no "gestalt narrativo" da história de vida.

Por fim, esclareço ser o recorte empírico deste texto constituído de informações prestadas por alunos dos programas e projetos: Brasil Alfabetizado (2005), Escola Zé Peão (2006) e Fazendo Escola (2005) e por mais duas pessoas de pouca escolaridade e que não estudam. Para obter essas informações utilizei técnicas diferenciadas: questionários com questões abertas, entrevistas semi-estruturadas, grupo focal e biografia de aprendizagem. As questões foram categorizadas segundo as indagações de pesquisas, os objetivos e os enfoques teóricos, propiciando as análises.

Partindo das informações fornecidas pelos indivíduos entrevistados, tentarei conservar presente as questões: Por que as pessoas estão procurando aprender a ler e escrever? Qual a importância que dão á alfabetização? Como essas pessoas estão se apropriados de novos conhecimentos? Estarão utilizando nas suas práticas cotidianas? O domínio da escrita e leitura possibilita aos indivíduos melhorar as suas condições e a qualidade de vida? Essa melhoria das condições e da qualidade de vida pode ser considerada processos de inclusão? Alargamento de espaços de cidadania? Estas questões, subjacentes em todo o texto, servem de orientação ao seu desenvolvimento.

1 - A aprendizagem: uma questão de competência.

Algumas correntes teóricas sobre a aquisição da aprendizagem e/ou da aprendizagem escolar e aqui concebida como o domínio da alfabetização, explicam que seus mecanismos funcionam através de um sistema complexo constituído por componentes sociais, biológicos, psicológicos ou mentais. (BRANSFORD, BROWN, COCKING, 2007, SOLSO, 2004, GARCIA, 2002, GONZÁLES, 2006). Na concepção de Garcia, são os conjuntos desses componentes, os subsistemas, quem propiciam a formação do conhecimento, através de processos interativos. (Garcia, 2002). Mas o conhecimento desconexo não é suficiente para desenvolver competências capazes de solucionar problemas. Para tal fim é necessário que ele seja organizado de forma a ser aplicado, possibilitando novos conhecimentos e aplicações, configurando a aprendizagem. (BRANSFORD, BROWN, COCKING, 2007). A aprendizagem, para Gonzáles, é uma ação racional orientada para determinados fins propostos (Weber, 1974, in. GONZÁLES, 2006). Este autor explica, baseando-se em Gilbert Ryle.,[3] existirem dois tipos de aprendizagens (saberes): o saber como (dominar as regras) e o saber que ( ser capaz de identificar algo) , a diferença entre os dois tipos de saberes: know how y know that, seria algo assim como a diferença entre saber como e saber que (ou saber isso).

"Se sabe cómo tocar un instrumento o cómo podar árboles, pero se sabe que el caballo es animal cuadrúpedo o que navaja se dice knife en inglés. La diferencia está en que saber cómo, es saber las reglas que gobiernan esa actividad; sin embargo, esto no quiere decir que cuando se toca un instrumento o se sabe podar árboles, quien lo hace es capaz de hacer explícitas las reglas que orientan tales actividades. Es el mismo caso que hablar una lengua: se habla inglés o español cuando se dominan las reglas fonológicas, sintácticas, semánticas, etc., de esa lengua, pero no todos los hablantes son lingüistas; es decir, no todos pueden hacer explícitas esas reglas." (Gonzáles, 2006).

No caso do saber propiciado pelo domínio da alfabetização este habilita o alfabetizando ou reforça suas competências para a aquisição do Saber Como tanto quanto para o Saber Que, apesar de não assegurar a sua efetivação. Mas, a grande pergunta continua sendo: como esse indivíduo consegue aprender a ler e a escrever?

Muitas vêm sendo as tentativas de alfabetizar o indivíduo possibilitando a leitura e explicação da realidade: saber que é e saber como é suportadas por orientações teóricas e metodológicas vinculadas a pedagogias tradicionais; ás orientações escolanovistas; a pedagogia piagetiana; de Vigostky; freiriana ou de Ferreira. Já se fala em uma pedagogia pós-construtivista com base em teoria das inteligências múltiplas de Gardner, entre outros. Para Martins, algumas dessas correntes cuidam plenamente de um aspecto do aprendizado como o conhecimento, mas descuidam completamente da capacidade cognitiva e metacognitiva, interesses e necessidades dos alunos (Martins: http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=205&rv=Literatura

Isto significa que os métodos e as técnicas utilizadas para o ensino e a aprendizagem do aluno, independentemente da base teórica que lhe oferece suporte, não terão efeitos significativos sem que exista uma relação entre seu emprego e os fatores que propiciam a busca pelos novos conhecimentos e as competências dos indivíduos para a aprendizagem. O conjunto dessas relações autoorganizadas é quem possibilita o processo da apreensão e retenção dos novos conhecimentos, produzindo novas aprendizagens. Neste processo de relações e auto-organizações estão incluídas as diferenciações, necessidades ou capacidades individuais. Os alunos, mesmo aparentando motivações semelhantes, são diferentes nas suas capacidades, motivações, interesses, ritmos evolutivos, estilos de aprendizagem e nas suas situações ambientais. Entretanto são iguais em inúmeras outras características e categorias. Logo, motivações ou necessidades aparentemente diferentes podem convergir para um mesmo objetivo, assim como pode existir relações entre fenômenos tidos como diferentes.

Em um mesmo ambiente, dependendo das interações dos agentes, muitas formas diferenciadas se inter-relacionam, estabelecendo relações que provocam autorganizações.. Os motivos que despertam o desejo de aprender num adolescente podem não ter nenhum efeito sobre um outro adolescente ou um adulto, que pode ter necessidades pessoais diferentes, mas há de se notar que esses motivos ou necessidades diferenciadas não impossibilitam que haja aprendizagem entre esses dois grupos quando há disposição para tal fim: Quando existem as necessárias condições (as competências) para o estabelecimento das transformações (a mudança de uma situação a outra), vão existir mais possibilidades de se obter os resultados desejados ou esperados. Nas complexas redes propiciadoras das aprendizagens existem mecanismos naturais de seleção. Cada pessoa seleciona e prioriza a informação recebida, segundo seus interesses e necessidades. (Torres, s/d). Se determinados conteúdos ensinados não são apreendidos por uma pessoa por falta de informação, motivação, interesse, atenção, concentração, compreensão, etc, podem, entretanto, ser objetos de apreensão, assimilação e transformação para outras que apresentem valores diferentes. Nem todo conhecimento interessa a todos nem interessa da mesma forma, nem todos têm as mesmas competências para apreendê-los. Todo esse processo está permeado por relações. Como explica Gonzáles, 2005,

"los individuos humanos tratan de satisfacer sus necesidades materiales estableciendo cierto tipo de relaciones y con ello crean una estructura emergente nueva, asimismo, interactúan unos con otros con finalidades menos predecibles y con ello forman otro tipo de sistemas(...) Los sistemas vivos son totalidades integradas cuyas propiedades no pueden ser reducidas a las propiedades de sus partes menores; sus propiedades son las del todo, que ninguna de las partes posee, y surgen de las relaciones entre las partes; esto es, surgen de una configuración de relaciones ordenadas que es característica de cada clase de sistemas o de organismos." 

Em resumo, nas complexas relações estabelecidas no processo de ensino e de aprendizagem envolvendo professor e alunos e alunos e alunos,

"los agentes en los sistemas adaptativos están en una continua interacción entre ellos mismos y entre ellos y el entorno; la condición para que estos agentes sobrevivan y se reproduzcan está en dos nociones básicas: predicción y retroalimentación. La primera es de difícil comprensión puesto que normalmente entendemos por predicción algo que los humanos hacen conscientemente, de acuerdo con un modelo explícito del mundo; no obstante la predicción es una noción que va más allá que el pensamiento consciente ya que todos los sistemas adaptativos complejos - mentes, organismos, culturas, economías" construyen modelos que les permiten anticipar el mundo" (Gonzáles, 2005).

A aprendizagem envolve tanto a noção de predição como a de retro-alimentação, uma vez que no processo de aprendizagem escolar tanto se utiliza um modelo explícito de mundo, como forma de adaptação ao novo, como o de retroalimentação,  uma readaptação ao que foi transformado.

2 - A EJA: despertando interesses

Após a V Conferência Internacional sobre Educação de Jovens e Adultos (EJA) celebrada em Hamburgo na Alemanha, no ano de 1977, representantes da América Latina e do Caribe consideraram a necessidade de priorizar políticas públicas relacionadas com a educação do jovem e do adulto, para os projetos de desenvolvimento regional e a construção de uma sociedade mais justa. Para incentivar iniciativas governamentais e não governamentais das regiões, elaboraram um Plano de Ação contendo sete temas prioritários relacionados com a educação dessas populações. A Alfabetização foi selecionada como a primeira área, considerada a porta inicial para o acesso a cultura escrita, a educação e á informação. Segundo a comissão, existe um considerável número de pessoas maior de 15 anos que não sabe ler nem escrever e que não estudam, mesmo quando as circunstâncias requerem. Essa falta de educação básica, devidamente certificada, termina se convertendo em um obstáculo para o trabalho e para a convivência no atual modelo de sociedade da informação.

A redefinição de categorias básicas sugerindo o conceito de alfabetização como o "acesso á cultura escrita, á educação e á informação", (Unesco, 2000) e como "parte de ações mais amplas onde o ler e escrever são recursos importantes para obter propósitos específicos", (Idem) estabelece um elo entre as atuais formas de "participar no mundo" e "as necessidades cotidianas", entre essas e o trabalho. Estabelecendo a ponte entre alfabetização/escolarização formal/qualificação para o trabalho, concebe-se, segundo Paiva (1997) que esses conhecimentos adquiridos elevam substancialmente a capacidade da população juvenil e adulta tanto para ter acesso á cultura escrita e a informação, como para atender ás necessidades cotidianas, tanto no plano econômico e sócio-político como no plano das necessidades subjetivas (Paiva, 2001); "nas próprias condutas humanas" (Elster, 2002).   

3 - -Motivação e aprendizagem: as necessidades cotidianas

A vontade de satisfazer ás necessidades cotidianas e de ter suas vidas modificadas com a aquisição da alfabetização está presente nos grupos de EJA.  Os motivos ou as necessidades dessas pessoas em serem alfabetizadas coincidem em muitos aspectos, havendo  variações segundo a idade, o espaço onde vivem, o gênero, a ocupação, as formas de mobilidade. No grupo das pessoas mais velhas, com mais de 50 anos, por exemplo, a vontade de aprender a ler parece mais localizada nas condições concretas de suas existências. Nessa coletividade, existe a crença de que as suas vidas já estão traçadas e que, por isso, não há mais necessidade de prosseguirem os estudos. Elas pretendem parar de freqüentar a escola tão logo adquiram a habilidade de "ler e escrever um pouco".

As próprias condições biológicas aliadas a sua situação mental subjetiva propicia que estas pessoas tenham um grande temor de, concluída a alfabetização, mudem de escola e tenham de conviver com adolescentes desconhecidos e desrespeitosos, capazes de lhes expor a situação vergonhosa, ridícula ou de agressividade. Elas têm medo da violência existente nas escolas das redes municipal e estadual, que oferecem a educação continuada para os jovens. Os mais jovens, diferentemente, talvez por vivenciarem outras condições de vida e lerem a realidade através de lentes mais generosas, possuem outros estados intencionais; afirmam que querem seguir estudando. Dizem: "Vou estudar porque ainda sou moço, tenho muita vida pela frente". Muitos são conscientes de que a escola não garante emprego, mas sem ela tudo fica mais difícil. Por isso afirmam ter interesse em continuar os estudos e aprender coisas novas como informática, matemática, uma arte ou uma profissão definida; têm interesse, inclusive, de, ao concluir a alfabetização, prosseguir o ensino fundamental e médio e até fazer um curso superior.

Entre as mulheres, algumas se iniciaram na escola já na adolescência, mas chegaram ao casamento sem que estivessem totalmente alfabetizadas. Agora, a oportunidade une motivação com a necessidade continuar estudando; sentem necessidade de serem mais compreendidas, de melhor compreender o mundo e de ajudar os filhos nas tarefas escolares, coisa impossível dada a sua situação de analfabetismo.

Ir á escola para aprender a ler também ajuda nos processos de socialização. Muitas são as pessoas - homens e mulheres - que utilizam á escola como um local de lazer, de fazer amigos, de fugir da rotina doméstica. Os colegas, segundo disseram, "se transformam em uma família". No universo dos iletrados, a religião se transforma em vetor que impulsiona a volta á escola. A contingência de ser evangélico e o incentivo dos companheiros ou pastor propicia o retorno ou ingresso, principalmente das pessoas de mais idade pela "vontade de ler a Bíblia". A necessidade de "ler os anúncios da cidade, dos ônibus" para melhor se locomover e não depender de outra pessoa para viver a cotidianidade urbana, para evitar vergonhas, como, por exemplo, não entrar no banheiro "dele", ao invés de entrar no banheiro "dela", são aspectos destacados na busca de novas aprendizagens.

            Também a necessidade de conhecer novas palavras, de melhor se expressar é um aspecto que se destaca nas entrevistas. Destaque também foi a "pressão familiar". Muitas pessoas, principalmente as mulheres, dizem que seus filhos alfabetizados zombavam da suas incapacidades de ler e por isso, eram chamadas de "burras", tornando-as fragilizadas diante da família, com sensação de baixa estima.

Nos espaços das necessidades existe, ainda, a vontade pela leitura e escrita, para "escrever cartas para a família", ou para ler "cartas de amor". A mídia, através da suas propagandas sobre os benefícios da alfabetização, também é um veiculo que motiva as pessoas a participarem do programa de alfabetização. Estas propagandas são, algumas vezes, somadas ao convite individual do professor, feito de casa em casa, áqueles que alimentam, por algum motivo, a vontade de aprender a ler ou de seguir estudando.

Além dos motivos já expostos, o desejo de vir ou retornar á escola, tanto para os jovens quanto para os adultos de qualquer idade, é assumido como ação edificante. A sala de aula cumpre funções que vão muito além de ser um espaço onde se aprende a ler e escrever. Em vários depoimentos, voltar a estudar é algo assumido pelos mais velhos como ato de rejuvenescimento, sinônimo de prazer, de distração, atividade criadora de novas amizades e de ocupação positiva da vida. Os mais jovens não negam esses benefícios da escola, mesmo alegando que estudar é uma tarefa ingrata. Alguns possuem a consciência da necessidade de se alfabetizar, mas afirmam que esse processo não é fruto de uma vontade individual, e sim de uma intenção coletiva; neste caso, a intencionalidade é algo que se satisfaz por pressões de terceiros (amigos, parentes ou situação de trabalho).

Alguns jovens se iniciam por diversas vezes nos estudos escolares e o abandonam, alegando que o fizeram por preguiça e desinteresse nos estudos. Ainda assim reconhecem que o estudo é necessário para a inclusão no mundo do trabalho, para uma convivência mais livre e autônoma no cenário urbano e para amenizar a pressão social dos dias de hoje, que cobra das pessoas habilidades que exigem leitura e escrita.  Mas é devido ás novas exigências do mundo do trabalho que a necessidade de ler e escrever se torna mais evidente. As pessoas falam de suas dificuldades e limitações, reconhecendo que ser analfabeto dificulta as poucas oportunidades que se apresentam para se trabalhar ou para se manter no emprego, apesar de serem "ótimos profissionais".

4-Necessidades e trabalho: Biografia de aprendizagens e outros relatos.

Mima é o apelido de William. Tem 21 anos, é pintor de paredes, casado e com duas filhas. Sabe ler e escrever muito pouco, apesar de ter entrado na escola aos cinco anos e nela ter permanecido até quase 16.  Na sua lembrança, repetiu cerca de cinco vezes a primeira série, sendo promovido á segunda sem conseguir aprender a ler. Aos doze anos, freqüentando a terceira ou quarta série (nem se lembra bem), começou a ler um pouco, com dificuldade, sem, todavia, escrever. As suas sucessivas reprovações são atribuídas ás suas brincadeiras com os amigos e a situação familiar: sem mãe, vivendo com a avó e um pai alcoólatra que não dava sossego a ninguém, Mima começou a trabalhar cedo em um mercadinho, colocando preço nos artigos. Trabalhava o dia todo. A escola só lhe serviu para ensinar os números e, com isso, poder trabalhar no "mercadinho", marcando os preços dos artigos. Para ele o ensino não teve outra utilidade. Quando o pai morreu, tinha 17 anos e aí foi possível ter mais tranqüilidade. Juntou-se com um amigo pintor e foi ser auxiliar, lixando paredes. Por dois anos foi ensinado pelo amigo, mas também treinou sozinho durante as noites. Tornou-se o pintor de paredes que é hoje. Não acredita que a escola tenha ajudado a sua profissão nem a atender as necessidades da sua vida cotidiana. Ele poderia ter aprendido a ler e escrever com a ajuda dos amigos, como fez com a pintura, se tivesse tido interesse. Segundo ele, para quem tem uma profissão a escola não serve. Apesar dessa afirmação, diz que é importante ler e escrever para anotar coisas, e reconhece necessitar aprender mais sobre a arte de pintar. Se soubesse ler bem, diz ele, poderia trabalhar melhor, pois "hoje tem muita técnica nova e é preciso saber misturar bem as tintas." Mas ele não sabe como fazer as misturas. Por isso acredita que a escola pode ensinar, mas "não sabe muito bem" em que curso ou disciplina pode aprender. Fica em dúvida se na disciplina de desenho, pois acha que é nela que se "mexe com tintas coloridas". Fica em dúvida se é na escola ou no SENAI. Não sabe bem.

Mesmo que a escola não lhe tenha ajudado, acha importante voltar a estudar e deseja muito quer que as filhas estudem e aprendam. Deseja que elas sejam professoras ou advogadas e acredita que para uma pessoa aprender tem que ter força de vontade, coragem, cabeça no lugar e interesse. Se fizer tudo isso a pessoa aprende. [4]

No caso de Neide, que trabalha desde nove anos como empregada doméstica, a escola é importante, apesar de nunca ter freqüentado. O pouco que sabe ler e escrever ela aprendeu sozinha, quando adolescente, com orientação de uma patroa que lhe orientava durante á noite, quando terminava o serviço. Ia juntando as palavras, vendo as letras nas revistas e jornais e ai aprendeu a ler. Por ser a única pessoa que sabe ler e escrever, numa família de dez indivíduos, é ela quem resolve quase todos os problemas da família. Leva os doentes ao hospital, acompanha os irmãos á delegacia, ao fórum e busca os benefícios e direitos. Por ser, também, a única da família a ter carteira assinada, tem acesso a cartão de crédito facilitando comprar no sistema de crediário o que a grande família necessita. Ler e escrever tem lhe ajudado muito, pois como doméstica necessita anotar recado, ler receitas e assinar papéis ou documento quando a patroa não está em casa.

No caso da biografia de aprendizagem de Mima esta se assemelha aos depoimentos de sete trabalhadores da construção civil. Freqüentando cursos de alfabetização e pós alfabetização, todos eles aparentando muitas dificuldades para ler e escrever, todos esses trabalhadores, alunos de EJA, representaram a alfabetização como algo que serve para dar mais conhecimento para o trabalho, sendo, ás vezes, até necessário. Em termos das necessidades, ao ser apresentada uma relação de onze variáveis para serem selecionadas, por ordem de prioridades, (as três mais importantes para as suas vidas), as mais destacadas como primeiras opções foram a saúde, com cinco escolhas e a religião com duas. Na segunda opção surgiram família e saúde, ambas com duas escolhas, seguindo-se de liberdade, trabalho e dinheiro, cada uma delas com uma freqüência. A terceira opção se concentrou nas variáveis, família e amigos, com dois casos, e dinheiro, conhecimentos e educação, cada qual com uma escolha.

Nem a educação e, surpreendentemente, o trabalho foram vistos como necessidades prioritárias para esses sete trabalhadores. Além de serem objeto de poucas escolhas, essas variáveis despontaram como segunda ou terceira prioridade. Diferentemente da alfabetização, que serve para as pessoas que não sabem ler e escrever, a qualificação serve para fazer um bom trabalho; para saber mais do que o outro; para melhoria no trabalho; ser uma pessoa limpa; um profissional responsável bem entendido ou para ser promovido de um cargo a outro. Na construção civil, há divisões de tarefas definidas e hierarquias de funções. Ser auxiliar de pedreiro não é o mesmo que ser pedreiro ou pintor. Assim, uma maior qualificação ou aprendizagem ajuda a mudar o tipo de serviço e a subir na carreira.

Uma das pessoas que trabalha cavando buraco, por exemplo, alega não necessitar ler nem escrever para fazer esse serviço. Entretanto, como ele aspira ser um armador, diz que gostaria de aprender as técnicas com um profissional que possa mostrar, na prática, como se faz esse serviço. A aprendizagem através dos amigos profissionais (os mestres) práticas de ofícios historicamente adotadas, continua sendo um meio de adquirir conhecimentos para suprir necessidades. Através dessas representações emergem algumas questões: é possível ter ou adquirir qualificação independentemente da escolaridade? O que é mais importante para esse grupo? A alfabetização ou a qualificação? é possível ser bom profissional para o atual mercado sem ter escolaridade? Para que serve a escolaridade afinal, se, na opinião de um trabalhador, na função que ocupa, é mais importante ter prática do que ser alfabetizado.

Mas isso não significa que a alfabetização não seja importante. Ela é importante para aprender a escrever melhor, dar mais conhecimento para o trabalho, ou para se desenvolver, ter mais facilidade para o trabalho e ter mais conhecimentos sobre coisas como: saúde, medição, ler os nomes dos materiais. O domínio da leitura e da grafia vem oportunizando que esses homens melhorem o relacionamento com a família, ganhem mais dinheiro, anotem recado, fique sabendo o que está escrito no trabalho e conheçam pessoas novas. Mas, para trabalhar melhor, é necessário não só saber ler e escrever; é preciso ter boa saúde, ser bem alimentado, ter as ferramentas necessárias para o trabalho e ser bem recompensado financeiramente.

            Se a alfabetização como aprendizagem é capaz de possibilitar novos conhecimentos, melhores condições de trabalho e até melhor relacionamento familiar, é necessário reconhecer que muitos dos que freqüentam os programas de EJA não conseguem ser alfabetizados. Além de existir as dificuldades de aprendizagem próprias das condições de ensino, condição das salas de aula, pouca experiência das professoras, falta de material didático, existem também aqueles motivos que fogem ao controle da escola, como os problemas familiares, o cansaço físico, enxergar pouco, a vergonha de começar a estudar ou o pouco tempo disponível.

            A própria noção da "não reprovação" faz com que alunos sejam promovidos a uma série superior sem maiores critérios, desconfigurando o próprio objetivo dos programas de alfabetização, que é propiciar ao alunado condições para aprender a ler e a escrever. Imersos em tantos problemas cotidianos, os indivíduos necessitam ter motivações muito fortes (ou serem capazes de serem motivados) para vencerem as adversidades, superando as dificuldades exigidas pela aprendizagem. Assim pensado, um programa como o Brasil Alfabetizado, ou como o Projeto Escola Zé Peão, destinado a pessoas jovens e adultas de pouca ou nenhuma escolaridade, ao possibilitar aos indivíduos aquisição de novas capacidades e concretização de desejos e evolução, se convertem em  sistemas adaptativos em contínua interação; uma rede de relações voltada para a criação e a transformação: uma ação de inclusão.

Síntese conclusiva: Alfabetização, necessidades e inclusão social.

            Na teoria dos sistemas complexos o mundo esta cheio de sistemas adaptativos complexos: cérebro, sistemas imunes, embriões em desenvolvimento, colônias de formigas. O mundo humano, como entende Gonzáles (2004), se compõe por sistemas sociais e culturais, organizações políticas, economias etc e todos compartem de certas propriedades fundamentais através da produção de interações de natureza competitiva ou de colaboração, produzindo constantes adaptações ou sistemas adaptativos complexos. Um sistema adaptativo complexo, continua o citado autor, tem muitos nichos e cada um deles pode ser explorado por uma gente apto para ocupá-lo. Portanto, assim como o mundo da economia tem lugar para um encanador, jogador de futebol, comerciário, empresário, assim também o "bosque tropical tem lugar para borboletas e preguiças. Sempre há lugar para novas oportunidades e sempre haverá novidades.". (Gonzáles, 2004). 

            No contexto do mundo complexo, composto de múltiplas realidades, o ambiente que exige uma maior escolaridade é apenas uma das partes desse complexo sistema. Neste mesmo sistema existem outras formas de organização que requer níveis de menor complexidade: escolarização inicial. Isto não significa, entretanto, que inexistam interações entre diferentes nichos (visto aqui como maior escolaridade, maior formação, maior qualificação ou nenhuma escolaridade do indivíduo). Sendo a sociedade uma organização composta de milhões de indivíduos mutuamente interdependentes, todas as pessoas estão continuamente em conexão e adaptando-se ás emergências requeridas pela nova organização, através de evoluções e de novos processos de organização. Se o atual modelo de sociedade, seja ele global ou local, requer pessoas dotadas de uma maior escolaridade, formação ou uma maior qualificação para o trabalho, por exemplo, também continua necessitando de pessoas ajustadas e satisfeitas por terem contempladas as suas necessidades cotidianas e existenciais [5]. Há espaço, ainda, para trabalhadores com perfis educacionais menos complexos e dotados de menor escolaridade: trabalhadores da construção civil, vendedores ambulantes e pequenos agricultores. Por outro lado, essa mesma sociedade que continua abrindo espaço e necessitando de pessoas com pouca escolarização, vai gradativamente rejeitando e condenando a processos excludentes pessoas que não saibam ler e nem escrever, ainda que minimamente. São essas modificações sociais que produzem novas exigências cotidianas criando novas necessidades. São essas novas necessidades quem produzem motivação para o estudo, possibilitando novas aprendizagens. São, enfim, essas novas aprendizagens que dotam o indivíduo de competências ou de novas competências para o enfrentamento das suas necessidades.  A alfabetização, ao propiciar aos indivíduos aprendizagens capazes de contemplarem necessidades sociais contemporâneas, possibilita que pessoas possam viver com mais segurança o simples cotidiano e realizar as pequenas coisas que as tornam mais felizes e mais humanas: mais incluídas.  Sem a alfabetização os indivíduos dificilmente terão condições de participar de uma sociedade em constantes mudanças, aprofundando exclusões e marginalidades. Assim pensado, é possível aceitar que a aprendizagem propiciada por programas como o Brasil Alfabetizado, o Fazendo Escola ou Projeto Escola Zé Peão, destinado a pessoas jovens e adultas de pouca ou nenhuma escolaridade, ampliam as possibilidades de satisfação de necessidades individuais, concretizando os motivos (desejos) que os levaram a ingressar na escola ou a ela  regressar. Assim, é possível admitir que a alfabetização, mesmo sendo apenas a porta de entrada de um longo percurso educacional possibilita mudar realidades excludentes, alargando espaços de cidadania.  Por fim, devo reconhecer que as necessidades cotidianas nem sempre se relacionaram á aquisição de benefícios materiais, políticos ou econômicos. Muitas dessas motivações situaram-se no âmbito das necessidades subjetivas. Por isso, talvez, como nos ensina Freire, seja mais humano compreender a alfabetização e as aprendizagens delas decorrentes, sobretudo, como a possibilidade de o Ser encontrar seus caminhos de humanidade e buscar a felicidade. A educação que possibilita aos cidadãos "doçura e força, sensibilidade e coragem, atividade intelectual e força moral" (González, 2004), também contribui com a evolução da vida: mudanças, adaptações e renovação. Disposição para transformar e transformar-se.

REFERÊNCIAS

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Autor:

Emilia Maria da Trindade Prestes

prestesemilia[arroba]yahoo.com.br

Professora da UFPB/PPGE. Bolsista do CNPq. E-mail: prestesemilia[arroba]yahoo.com.br Este texto é um dos

recortes da pesquisa Qualificação, trabalho e sustentabilidade: Inclusão e transformação na sociedade do

conhecimento, financiado pelo CNPq através de Bolsa de Produtividade. 2005/2008. 



2 Escola será aqui entendido como qualquer espaço de alfabetização,  vinculado ou não  ao sistema formal de ensino, mas que seja reconhecida por setores educacional como uma proposta educativa  (programa, projeto etc).   

3 Não pretendendo entrar no debate da diferença entre alfabetização e letramento. A primeira vista como habilidades adquirida pela pessoa para ler e escrever e a segunda como o emprego em práticas sociais cf. Vera Massagão Ribeiro e outras) 2002. p. 8.(cópia). Neste texto vou trabalhar com o conceito de alfabetização indistintamente

[3] Gubert Ryle, filósofo inglês, introduziu na metade do século XX a diferença entre dos tipos de saber: know how y know that, equivalendo saber fazer e saber que é. Gonzáles, César Ocho. 2006. pág. 9

[4] Atualmente Mima está trabalhando como auxiliar de instalador de antena de TV a cabo. Trata-se de um trabalho formalizado que lhe assegurou uma série de garantias e que tem modificado seu próprio comportamento e estilo de vida.  Esse trabalho foi conseguido através de redes de amizades:  pessoas para quem ele trabalhou como pintor e  por interferência as sua sogra, manicure da família. Possivelmente, se fosse se submeter a uma seleção, talvez não tivesse conseguido o trabalho. ( nem saberia como procura-lo). 

[5] Estou chamado de existencial  a condição de vida diária do individuo, o qual inclui  atendimentos de inúmeros setores da existência; social, cultural, econômico, afetivo.



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