Marcelo Gruman - marcelogruman[arroba]funarte.gov.br
No início do século XX, as comunidades judaicas que começavam a se organizar nas principais cidades do país, como Rio de Janeiro e São Paulo, tiveram que lidar com a presença de prostitutas judias. O convívio da população local com as "indesejáveis" desafiava a imagem que os judeus gostariam de passar (povo pacato, ordeiro, moralmente íntegro), de modo a facilitar sua integração á sociedade nacional. O artigo trata das motivações que levaram jovens judias sobretudo do leste europeu ao mercado do prazer, sua presença no Brasil e as estratégias usadas pelas comunidades judaicas na criação de fronteiras simbólicas entre "puros" e "impuros", evitando, desta forma, más interpretações e confusões por parte dos gentios.
PALAVRAS-CHAVE: prostituição judaica; imigração judaica; identidade étnica.
ABSTRACT
In the beginning of the twentieth century, the Jewish communities which had just settled in cities like Rio de Janeiro and Sao Paulo had to deal with Jewish prostitution. The presence of the "undesirables" among the local population challenged the image that the Jews wanted to give (of a peaceful, orderly and morally correct people) as a means to facilitate their integration into the national society. The article deals with the motivations that led young Jewish girls, mostly from Eastern Europe, to prostitution, their presence in Brazil and the strategies used by the Jewish communities in the creation of symbolic frontiers between "pures" and "impures", avoiding therefore misunderstandings by the Gentiles.
KEY WORDS: Jewish prostitution; Jewish immigration; ethnic identity.
O Brasil experimentou, entre meados do século XIX e início do século XX, mudanças significativas na sua paisagem urbana, sobretudo em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, onde se perseguia o progresso, a modernidade e a "civilização". O objetivo era inserir-se no mundo civilizado reproduzindo o mundo europeu através de novos lazeres e possibilidades de busca do prazer. Surgia a vida noturna e, com ela, novos personagens nem sempre bem vindos pelas autoridades policiais e pela população de uma maneira geral, como cafetões e prostitutas. Passear pela cidade, divertir-se nas casas de espetáculos, almoçar e jantar nos restaurantes, cafés e confeitarias ou simplesmente admirar as vitrines dos magazines passou a fazer parte do cotidiano de paulistas e cariocas.
"A "indústria do lazer" possibilitou uma nova movimentação das ruas e, conseqüentemente, uma nova ordem urbana. Longe já se estava da época na qual as ladainhas, as novenas, as festas dos santos eram os únicos acontecimentos a quebrar a monotonia da nascente burguesia cafeeira" (Menezes 1992:23).
A modernidade imaginada e almejada era explicitada na eliminação do que se considerava "atraso colonial", com o combate aos costumes e usos tradicionais, e na construção de uma nova imagem da cidade, livre das ruelas estreitas e sujas, dapopulação negra e pobre que vagava pelo centro da cidade, do odor fornecido pelos animais que circulavam pelas ruas, do comércio ambulante com pouca higiene e das
epidemias que aterrorizavam os estrangeiros que aqui chegavam. O refinamento era evidenciado nas elegantes lojas da Rua do Ouvidor, no centro do Rio de Janeiro, nos automóveis que circulavam na Avenida Central, nos trajes de homens e mulherese, sobretudo, no uso da língua francesa como signo de modernidade e glamour. A perseguição á capoeira, o impedimento da circulação de animais, a repressão ás festas tradicionais populares, a derrubada de cortiços combinavam-se com a construção de grandes avenidas, teatros, cafés, cinemas e confeitarias que embelezavam a cidade e colocavam-na como uma das capitais do mundo moderno. Ainda que o "progresso" fosse exclusividade de poucos.
O mesmo fenômeno ocorria na cidade de São Paulo. A sociedade paulistana costumava encontrar-se em ocasiões de gala no Politeama-Concerto, que ás vezes funcionava como teatro, todos ansiosos para experimentar os costumes modernos e conhecer as novidades artísticas que chegavam aqui. Os encontros eram envoltos por um clima de excitação e deslumbramento característico de uma sociedade enriquecida com o desenvolvimento urbano-industrial e desejosa de importar mercadorias e hábitos parisienses.
"Frisas, camarotes, platéia e torrinhas ficavam lotados com a alta sociedade paulistana, (...) estudantes da Faculdade de Direito, empregados do comércio e modestos negociantes italianos, seguindo uma hierarquização espacial e social ainda modesta frente áquelas que as décadas posteriores assistirão. (...) No café-concerto, aproximavamse os corpos numa atmosfera efervescente, circulavam pelas mesinhas e corredores, exibiam-se uns aos outros.
(...) Possibilidades de contatos inesperados, de transgressões aos comportamentos convencionais, promessas de aventuras dissonantes diante da estabilidade reinante ou apenas idealizada na imagem da família-refúgio que se procurava instituir" (Rago 1991:35).
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