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Por isso, Ihering conceituava a ordem jurídica perfeita como sendo aquela na
qual a energia com que a justiça aplica a espada seja igual á habilidade com
que maneja a balança.
Cada particular é obrigado a defender seu direito e o direito é um trabalho
incessante, não apenas do particular, mas de uma nação inteira. A realização da
idéia do direito sobre a terra dependerá, assim, da contribuição de todos e
todos têm a obrigação de esmagar em toda parte, onde ela se erga, a cabeça da
hidra que se chama arbítrio e ilegalidade. Não podemos apenas fruir os
benefícios do direito: somos também obrigados a contribuir para sustentar o
poder e a autoridade da lei. Em resumo, cada qual é um lutador nato, pelo
direito, no interesse da sociedade.
Observa Ihering, em sua conferência, que não se trata, absolutamente, do valor
material que o Direito possa representar, mas de seu valor ideal, da energia do
sentimento jurídico na sua aplicação especial ao patrimônio e não é a
composição do patrimônio, mas a natureza do sentimento jurídico que faz aqui
pender a balança.
Para comprovar a veracidade de sua atitude mental, afirma Ihering que:
"a melhor prova nos é fornecida pelo povo inglês: sua riqueza não tem
prejudicado seu sentimento jurídico e muitas ocasiões temos tido, no
Continente, de nos convencermos da energia com que esse sentimento se afirma,
até nas mais simples questões de propriedade, como no exemplo considerado
típico do inglês em viagem que resiste a uma velhacaria do dono do hotel ou do
cocheiro com tamanha virilidade como se se tratasse de defender o direito da
velha Inglaterra, que adia se for preciso a partida e fica muitos mais dias no
mesmo sítio despendendo dez vezes mais do que a quantia que se recusa a pagar.
O povo ri e não compreende isto; - prouvera a Deus que o compreendesse. Porque
em alguns francos que este homem defende, encontra-se na realidade a própria
velha Inglaterra; lá longe, no seu país, compreende cada qual o seu direito e
ninguém tenta sequer prejudicá-lo assim, tão facilmente"
Agora suponhamos, diz Ihering a seu auditório, em Viena, um austríaco da mesma
condição e da mesma fortuna, colocado na mesma situação; como procederá ele? E
responde que, segundo sua própria experiência a tal respeito, não haverá dez
por cento que sigam o exemplo do inglês, porque os outros temerão os dissabores
da questão, o escândalo, as falsas interpretações a que podem expor-se,
interpretações, aliás, a que um inglês em Inglaterra não deve recear mas que também
o não inquietam entre nós.
Finalmente, conclui Jhering que no franco que o inglês recusa e que o austríaco
paga, há mais do que se crê; há alguma coisa da Inglaterra e da Áustria, há a
história secular do seu desenvolvimento político e da sua vida social.
Devemos lembrar, neste ponto, que quando a Argentina ocupou militarmente as
ilhas Malvinas, ou Falkland, como os ingleses ás denominam, a reação britânica
foi tão exagerada do ponto da vista do entendimento argentino e, mesmo do
nosso, que todos os jornais noticiaram declarações de autoridades, no sentido
de que não haveria razão para uma reação de tal magnitude por parte dos
britânicos.
Mas é evidente que, se os ingleses realmente acreditavam que seu direito havia
sido postergado e que uma sua possessão fora injustamente (não discutimos o
mérito) ocupada pela Argentina, não poderiam medir esforços para sanar o
esbulho, não pelo valor material, militar ou estratégico das referidas ilhas,
mas pelo fato de que ficaria a Inglaterra desmoralizada e não mais poderia
exigir a quem quer que fosse o respeito a seu direito.
Esse o motivo pelo qual se dispuseram os ingleses, no exemplo que estamos
aduzindo ao de Ihering, a armar a maior frota naval desde a segunda Guerra
Mundial, apenas para recuperar as ilhas Falkland.
A mesma não nos parece ser, infelizmente, a concepção dominante no Brasil.
Agora mesmo, o Governo Federal baixou norma dispensando o pagamento de todos os
débitos fiscais de valor inferior a Cr$12.000,00 (doze mil cruzeiros), tendo
sido conseqüentemente arquivados cerca de 350.000 processos, o que apresentou
considerável economia para o Fisco.
O Procurador-Geral da Fazenda Nacional, Cid Heráclito Queiroz, justificou a
medida dizendo que o total dos tributos que assim foram dispensados é inferior
a 1,5% do total dos créditos tributários existentes e que a economia
processual, estimada em cerca de sete milhões de atos e documentos, havia sido
considerada para essa decisão.
Ora, é indubitável que essa atitude, por parte do Governo, simplesmente
dispensando o pagamento dos tributos pela consideração primária de que sua
cobrança não seria de interesse imediato para o Estado, não pode ser defendida,
de forma alguma, em face da doutrina de Ihering, porque se hoje o Estado não
exige o cumprimento das obrigações jurídicas, por parte de cada contribuinte,
dispensando-os graciosamente sob essa absurda alegação, amanhã não terá também
qualquer autoridade moral para exigir o pagamento dos tributos por parte de
todo e qualquer contribuinte e todos poderão, talvez, deixar de pagar seus
tributos em dia, na esperança de que, mais cedo ou mais tarde, o Estado será
obrigado a desistir de gastar dinheiro tentando cobrar esses tributos e
resolverá, finalmente, dispensar o pagamento de todos esses débitos.
As idéias de Ihering são, como vemos, da maior atualidade, porque ferem
exatamente o cerne da questão jurídico-filosófica, e da opção que a respeito
delas demonstrarmos dependerá a feição de nosso ordenamento jurídico.
A luta pelo direito é, para Ihering, um dever do interessado para consigo
próprio e nós aduziríamos que também no âmbito das ações do Governo a luta pelo
direito e o respeito ás normas jurídicas são fundamentais, posto que se o
Estado, como no exemplo proposto, não defende seu direito (e que pertence, em
última análise, a cada um de nós, a cada um daqueles que pagaram seus impostos
em dia e que foram indiretamente prejudicados pela medida), também verá que o
mesmo lhe será negado e calcado aos pés de outrem.
A luta pela existência, lei suprema de toda a criação animada, manifesta-se em
toda criatura sob a forma de instinto da conservação, mas o homem sem o direito
desce ao nível do animal, segundo Ihering, porque o homem não tem somente sua
vida física, mas conjuntamente sua existência moral, que dependerá da defesa do
direito. No seu direito, o homem possui e defende a condição da sua existência
moral.
Em relação ao Estado, afirma ainda Ihering que a manutenção da ordem jurídica
não é senão uma luta incessante contra a anarquia que o ataca, considerando
incontestada essa verdade no tocante á realização do direito por parte do
Estado, dispensando, conseqüentemente, mais ampla demonstração.
Quanto ao nascimento ou á origem do Direito, Ihering contesta a opinião que,
segundo ele, gozava, pelo menos na ciência romanista, de um crédito geral, e
cujos principais partidários eram Savigny e Puchta, de acordo com a qual a
formação do direito faz-se tão sutilmente, tão livre de dificuldades como a
formação da linguagem; não exige esforço, nem luta, nem sequer elucubrações - é
a força tranqüilamente ativa da verdade que sem esforço violento, lenta, mas
seguramente, segue seu curso; é o poder da convicção á qual se submetem as
almas e que elas exprimem pelos seus atos.
Essa era a concepção que Ihering tinha a respeito da origem do direito, quando
saiu da Universidade e sob a influência dessa doutrina ficou, durante vários
anos. Em sua conferência, ele se pergunta: é ela verdadeira?
E prossegue examinando sua tese e comprovando brilhantemente a doutrina do
interesse, sustentando que o direito em seu movimento histórico apresenta-nos
um quadro de elucubrações, de combates, de lutas, numa palavra, de penosos
esforços.
Para Ihering, muitas vezes não é fácil alterar uma determinada norma jurídica,
porque com o decorrer do tempo os interesses de milhares de indivíduos e de
classes inteiras prendem-se ao direito existente de maneira tal, que este não
poderá nunca ser abolido sem os irritar fortemente. Discutir a disposição ou a
instituição do direito é declarar guerra a todos estes interesses, é arrancar
um pólipo que está preso por mil braços. Pela ação natural do instinto de
conservação, toda tentativa deste gênero provoca a mais viva resistência dos
interesses ameaçados. Daí uma luta na qual, como em todas as lutas, não é o
peso das razões, mas o poder relativo das forças postas em presença que faz
pender a balança e que produz freqüentemente resultado igual ao do
paralelogramo das forças, isto é, um desvio da linha direita no sentido da
diagonal.
O Direito será assim, para Ihering como para Ferdinand Lassalle ("Que é
uma Constituição?"- Über Verfassungswesen), a conseqüência direta e
inelutável dos fatores reais do Poder, que se manifestam dentro da sociedade ,
distinguindo ainda Lassalle o Direito real, isto é, aquele que se conforma com
essa realidade sociológica, do Direito escrito, que pode ás vezes estar em
desacordo com essa mesma realidade.
Para Ihering, somente a força de resistência dos interesses é que pode
justificar o fato de que muitas vezes, determinadas instituições jurídicas
condenadas pela opinião pública ou pelo sentimento jurídico de um determinado
povo, conseguem sobreviver muito tempo, porque o que as mantém em vigor não é á
força de inércia da História, mas a força de resistência dos interesses
defendendo a sua posse.
O cerne da teoria defendida por Ihering no opúsculo que ora examinamos não
constitui novidade absoluta: Trasimaco já enunciara a doutrina do interesse, na
Antiguidade Clássica, assim como inúmeros outros autores e Ihering teve neste
ponto continuadores entusiastas. Mas o mérito de Ihering consistiu na defesa
sistemática que desenvolveu de sua tese, bem como do brilhantismo de sua
argumentação, que dificilmente poderá ser contestada com sucesso.
A Luta pelo direito é assim, para Ihering, o signo característico da vida
jurídica, posto que o covarde abandono do direito pode, ás vezes, salvar até
mesmo a vida daquele que se recusa a defendê-lo, mas trará como conseqüência
inelutável á ruína de todo o ordenamento jurídico, a falência do Direito.
Assim, se esse covarde abandono ocorre a nível nacional e o arbítrio e a
ilegalidade se aventuram audaciosamente a levantar a cabeça, isso é sempre um
sinal certo de que aqueles que tinham por missão defender a lei não cumpriram
seu dever.
Ihering contrapõe assim ao interesse particular o interesse geral, afirmando
que quem defende seu direito, defende também na esfera estreita desse direito,
todo o Direito, porque o interesse e as conseqüências de seu ato dilatam-se
para muito além da sua própria pessoa. O interesse geral a que então se liga
não é somente o interesse ideal de defender a autoridade e a majestade da lei,
mas é o interesse muito real, muito prático, que em todos se manifesta e todos
também compreendem, mesmo aqueles que daquele primeiro interesse não têm o
menor conhecimento, de que a ordem estabelecida na sociedade, na qual cada um
pela sua parte é interessado, seja assegurada e mantida.
Cada qual é, assim, um lutador nato, pelo Direito, no interesse da sociedade.
O elemento da luta que Herbart quer eliminar do Direito, afirma Ihering que é,
pelo contrário, o mais primordial e aquele que lhe é sempre imanente- a luta é
o trabalho eterno do direito. Sem luta não há direito, como sem trabalho não há
propriedade.
À máxima: ganharás o pão com o suor do teu rosto, corresponde com tanta mais
verdade esta outra: só na luta encontrarás o teu direito.
Finalizando sua obra, Ihering afirma que desde o momento em que o direito
renuncie a apoiar-se na luta, abandona-se a si próprio, porque bem se lhe podem
aplicar estas palavras do poeta (Goethe, Fausto):
"Tal é a conclusão aceite atualmente:
só deve merecer a liberdade e a vida
Quem para as conservar luta constantemente".
A importância da obra de Ihering é, certamente, incompatível com os limites
deste trabalho e com as limitações de seu autor, mas acreditamos ter
correspondido razoavelmente ao que de nós se esperava em relação á elaboração
deste ensaio curricular, malgrado talvez a falta de método expositivo e de sistematização
que possa ser apontada em nosso trabalho, posto que defeito semelhante nada
conseguiu subtrair do brilhantismo do de Ihering.
Autor:
Antonio de Jesus Trovão
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