Mirabete, ao dissertar sobre as características da jurisdição, apresenta
algumas outras que chamou de formais indeclináveis, necessárias à realização
eficiente do objetivo jurisdicional de aplicar a lei ao caso concreto. São
elas: um órgão adequado - o juiz - colocado em posição de independência para exercer
imparcialmente a atividade jurisdicional; o contraditório regular, que
permitirá às partes duelar com paridade de armas; e um procedimento
preestabelecido segundo regras de garantam o livre desenvolvimento do direito e
das faculdades das partes, visando a assegurar a justa solução do conflito.10
Compõe-se a jurisdição de alguns elementos a serem observados com vistas a se
chegar à final aplicação do direito material ao conflito. Na ordem, são eles: a notio ou cognitio (poder atribuído aos órgãos jurisdicionais
de conhecer os litígios e prover à regularidade do processo), a vocatio (faculdade de fazer comparecer em
juízo todo aquele cuja presença é necessária ao regular desenvolvimento do
processo), a coertio (possibilidade de aplicar medidas de coação processual para garantir a função
jurisdicional), o juditium (o
direito de julgar e pronunciar a sentença) e a executio (poder de fazer cumprir a sentença).11
Muito embora a jurisdição, como expressão do poder estatal soberano, seja una e
indivisível, didaticamente costuma-se classificá-la quanto à sua graduação ou
categoria (podendo ser inferior - correspondente à primeira instância - ou
superior - correspondente à segunda instância ou outros tribunais ad quem), quanto à matéria (penal, civil,
eleitoral, trabalhista e militar), quanto ao organismo jurisdicional (estadual
ou federal), quanto ao objeto (contenciosa - quando há litígio - ou voluntária
- quando é homologatória da vontade das partes), quanto à função (ordinária ou
comum - integrada pelos órgãos do Poder Judiciário - ou extraordinária ou
especial - quando a função jurisdicional não é exercida por órgãos do Poder
Judiciário), quanto à competência (plena - quando o juiz tem competência para
decidir todos os casos - ou limitada - quando sua competência é restrita a
certos casos) e outras distinções feitas em prol do melhor estudo e compreensão
do instituto da jurisdição.
O Estado, como pessoa jurídica de direito público, necessita de pessoas físicas
para o exercício da função jurisdicional. Para que essas pessoas possam exercer
a jurisdição, é preciso que estejam regularmente investidas no cargo de juiz e
em pleno exercício, de acordo com o que prescreve a lei.
A pessoa não investida na autoridade de juiz não poderá desfrutar do poder de
julgar. Conseqüentemente, estará impossibilitada de validamente desempenhar a
função jurisdicional, sob pena de, se assim o fizer, serem declarados nulos o
processo e a sentença, sem prejuízo de o pseudojuiz responder criminalmente pelo
delito de usurpação de função pública, previsto no artigo 328 do Código Penal.
Apenas ao juiz, em pleno exercício, investido regularmente no cargo, segundo os
ditames legais, caberá o exercício da função jurisdicional.
Cintra, Grinover e Dinamarco salientam que o juiz que já se aposentou não é
mais juiz, razão pela qual não pode exercer a jurisdição, devendo passar os
autos ao sucessor, consoante prescreve textualmente o artigo 132 do Código de
Processo Civil.
13
Consagrando expressamente o princípio da indeclinabilidade (ou da
inafastabilidade, também chamado de princípio do controle jurisdicional por
Cintra, Grinover e Dinamarco)
14 , dispõe o artigo 5°, inciso XXXV,
da Constituição Federal que "a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito".
Desta forma, a Lei Maior garante o acesso ao Poder Judiciário a todos aqueles
que tiverem seu direito violado ou ameaçado, não sendo possível o Estado-Juiz
eximir-se de prover a tutela jurisdicional àqueles que o procurem para pedir
uma solução baseada em uma pretensão amparada pelo direito. Conseqüentemente,
salienta Tourinho Filho, "se a lei não pode impedir que o Judiciário aprecie
qualquer lesão ou ameaça a direito, muito menos poderá o Juiz abster-se de
apreciá-la, quando invocado".
15
Em suma, apregoa o princípio da indeclinabilidade que o juiz não pode
subtrair-se da função jurisdicional, sendo que, mesmo havendo lacuna ou
obscuridade na lei, deverá proferir decisão (art. 126, CPC).
Leciona Mirabete
16 que o princípio da indelegabilidade decorre do
princípio da indeclinabilidade, anteriormente estudado. De fato, não pode o
juiz delegar sua jurisdição a outro órgão, pois, se assim o fizesse, violaria,
pela via oblíqua, o princípio da inafastabilidade e a garantia
constitucionalmente assegurada do juiz natural ("ninguém será processado nem
sentenciado senão pela autoridade competente" - artigo 5°, inciso LIII, CF/88).
Cintra, Grinover e Dinamarco afirmam que "o princípio da indelegabilidade é, em
primeiro lugar, expresso através do princípio constitucional segundo o qual é
vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições".
17 Continuam os
insignes doutrinadores esclarecendo que "a Constituição Federal fixa o conteúdo
das atribuições do Poder Judiciário e não pode a lei, nem pode muito menos
alguma deliberação dos próprios membros deste, alterar a distribuição feita
naquele nível jurídico-positivo superior".
18
é importante notar, entretanto, que o princípio da indelegabilidade não é
absoluto, pois admite exceções. O artigo 102, I,
m, da CF/88, e os artigos 201 e 492 do Código de Processo
Civil admitem que haja delegação nos casos de execução forçada pelo STF e
também nas chamadas
cartas de ordem (artigo 9°, §1°, da Lei n° 8.038/90 e regimentos internos do STF, STJ, TRFs e
TJs).
Mirabete
19 e Frederico Marques
20 entendem que as cartas
precatórias (arts. 222, 353, 174, IV, 177 e 230, do CPP) e as rogatórias (arts.
368, 369, 780 e seguintes, do CPP) constituem-se em outras exceções, legal e
taxativamente previstas, ao princípio da indeclinabilidade.
A contrario sensu, Cintra, Grinover,
Dinamarco
21 e Tourinho Filho
22 afirmam que não se pode
cogitar em delegação quanto à prática dos atos processuais inerentes às
sobreditas cartas, tendo em vista que o juiz não pode delegar um poder que ele
mesmo não tem, por ser incompetente.
Salientam os citados autores que é justamente esta a situação que ocorre nas
cartas precatórias ou rogatórias, pois o juiz não tem poderes para exercer a
atividade jurisdicional fora dos limites de sua comarca. O que ocorre, então,
nestes casos, é mera cooperação entre o juiz deprecante e o deprecado, onde
aquele, impedido que está de praticar atos processuais fora de sua comarca, por
força da limitação territorial de poderes, solicita a este que pratique os atos
necessários, exercendo, destarte, sua própria competência nos limites da
comarca onde atua.
Igualmente conhecido como princípio da aderência ao território, o princípio da
improrrogabilidade veda ao juiz o exercício da função jurisdicional fora dos
limites delineados pela lei. Sob este prisma, não poderá o crime de competência
de um juiz ser julgado por outro, mesmo que haja anuência expressa das partes.
Tourinho Filho, ensinando sobre a impossibilidade de um juiz invadir a
jurisdição de outro, esclarece que "não é lícito, mesmo mediante acordo dos
interessados, submeter uma causa à apreciação de autoridade que não tenha, para
isto, jurisdição e competência próprias".
23
O princípio da improrrogabilidade admite exceções. Acerca do assunto, Mirabete,
para o qual tal princípio decorre do da indeclinabilidade,
24 esclarece que, por vezes, é possível que haja prorrogação de competência, como
nos casos de conexão ou continência (arts. 76, 77 e 79, CPP), na hipótese
prevista no art. 74, §2,
in fine,
do CPP, na circunstância quando é oposta e admitida a exceção da verdade (art.
85, CPP) e no caso de desaforamento (art. 424, CPP).
Em termos práticos, os princípios da iniciativa das partes e da inércia se
equivalem, diferindo-se, doutrinariamente, pelo fato de o primeiro ser um
preceito do Processo Penal e o segundo, da jurisdição.
Cristalizados nos aforismos
nemo judex sine
actore (não há juiz sem autor) e
ne
procedat judex ex officio (o juiz não pode proceder - dar início ao
processo - sem a provocação da parte), tais princípios consubstanciam a índole
inerte dos órgãos jurisdicionais, que somente poderão aplicar a lei ao caso
concreto se devidamente provocados pela parte interessada em face da existência
de uma pretensão resistida ou insatisfeita amparada pelo ordenamento jurídico.
Esta provocação é feita por meio da
ação,
onde se invoca a tutela do Estado-Juiz a fim de que haja a prestação
jurisdicional.
Cintra, Grinover e Dinamarco justificam o princípio da inércia explicando que
"o exercício espontâneo da atividade jurisdicional acabaria sendo
contraproducente, pois a finalidade que informa toda a atividade jurídica do
Estado é a pacificação social e isso viria em muitos a casos a fomentar
conflitos e discórdias, lançando desavenças onde elas não existiam antes".
25
Os órgãos jurisdicionais, sabemos, devem ser desinteressados e imparciais,
características inerentes à própria existência da jurisdição. Visando a
resguardar a imparcialidade na solução do conflito, melhor é deixar que o
Estado só intervenha quando provocado por meio da ação, pois "a experiência
ensina que quando o próprio juiz toma a iniciativa do processo, ele se liga
psicologicamente de tal maneira à idéia contida no ato de iniciativa, que
dificilmente teria condições de julgar imparcialmente".
26
Ademais, ensina Tourinho Filho que se ao próprio juiz coubesse a provocação da
tutela jurisdicional, estaria ele a pedir providências a ele mesmo, numa clara
ocorrência de jurisdição sem ação, como se tem no processo do tipo
inquisitório,
27 não acolhido por nós em sede processual.
A inércia a qual os órgãos jurisdicionais estão submetidos, por força de
dispositivos como os artigos 2° do CPC e 24 do CPP, é vencida, portanto, pela
provocação das partes que, insatisfeitas, motivam a instauração de um processo
a fim de afastarem a resistência a sua pretensão.
Lecionando sobre a importância do princípio da inércia, Tourinho Filho lembra
que "mesmo na hipótese de o órgão do Ministério Público, infundadamente,
requerer o arquivamento de um inquérito policial, o máximo que o Juiz pode
fazer é remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça, nos termos do art. 28
do CPP". O que significa, continua o autor, "que nem por via oblíqua pode ser
quebrado o princípio do
nemo judex sine
actore".
28
Como não poderia deixar de ser, o princípio da inércia (também chamado por
Mirabete de princípio da titularidade)
29 comporta exceções. Assim,
por exemplo, pode o juiz,
ex officio:
declarar a falência de um comerciante no curso de um processo de concordata, se
verificar a falta de algum requisito para esta (art. 162, Lei de Falências);
instaurar a execução trabalhista (art. 878, CLT); conceder ordem de
habeas corpus (art. 654, §2°, CPP); e
decretar prisão preventiva.
Por fim, saliente-se que, antes da Constituição Federal de 1988, nos casos de
contravenções e de homicídio e lesão corporal culposos, quando conhecida a
autoria nos primeiros 15 (quinze) dias (art. 1°, Lei n° 4.611/65), era
permitido às autoridades judiciária e policial a prática do ato de iniciativa.
Hoje, entretanto, por força do disposto no artigo 129, I, da Lei Maior, estas
exceções não mais subsistem.
30
Estabelece o princípio da correlação que há necessidade imperiosa da
correspondência entre a condenação e a imputação, ou seja, o fato descrito na
peça inaugural de um processo - queixa ou denúncia - deve guardar estrita
relação com o fato constante na sentença pelo qual o réu é condenado.
O princípio da correlação, também chamado de princípio da relatividade
31 ou da congruência da condenação com a imputação ou ainda da correspondência
entre o objeto da ação e o objeto da sentença,
32 representa uma das
mais relevantes garantias do direito de defesa, pois assegura ao réu a certeza
de que não poderá ser condenado sem que tenha tido oportunidade de, previa e
pormenorizadamente, ter ciência dos fatos criminosos que lhe são imputados,
podendo, assim, defender-se amplamente da acusação.
Nesse contexto, assevera Tourinho Filho que,
in
verbis,
"iniciada a ação, quer no cível, quer no
penal, fixam-se os contornos da res in
judicio deducta, de sorte que o Juiz deve pronunciar-se sobre aquilo
que lhe foi pedido, que foi exposto na inicial pela parte. Daí se segue que ao
Juiz não se permite pronunciar-se, senão sobre o pedido e nos limites do pedido
do autor e sobre as exceções e nos limites das exceções deduzidas pelo réu. […]
isto é, o Juiz não pode dar mais do que foi pedido, não pode decidir sobre o
que não foi solicitado".33
Mirabete,
por sua vez, esclarece que
"não pode haver julgamento extra ou ultra
petita (ne procedat judex ultra
petitum et extra petitum). A acusação determina a amplitude e
conteúdo da prestação jurisdicional, pelo que o juiz criminal não pode decidir
além e fora do pedido em que o órgão da acusação deduz a pretensão punitiva. Os
fatos descritos na denúncia ou queixa delimitam o campo de atuação do poder
jurisdicional".34
Alerta
ainda o douto jurista que na hipótese de haver distorção entre a imputação e a
sentença, sem observância dos dispositivos legais pertinentes à matéria, o
direito de defesa do réu poderá estar sendo violado, o que, se comprovado,
acarretará a nulidade da decisão (RT 526/396, 565/383, JTACrSP 76/271,
RJDTACrim 17/15-25).35
Não obstante estar o juiz, de certo modo, adstrito ao requisitório da acusação,
não podendo sua sentença afastar-se dos fatos constantes na peça acusatória
inicial, cumpre observar a vigência, no Processo Penal, do também princípio da
livre dicção do direito (jura novit cúria),
onde resta consubstanciado que cabe ao juiz conhecer e cuidar do direito (narra mihi factum dabo tibi jus).
Assim, o réu não deve defender-se da capitulação dada ao crime pelo Ministério
Público ou pelo ofendido ou seu representante legal na denúncia ou na queixa,
respectivamente, mas da descrição fática nela constante, ou seja, dos fatos
nela narrados.
Nesse sentido, decidiu o STF que "o réu defende-se do fato que lhe é imputado
na denúncia ou na queixa e não da classificação jurídica feita pelo MP, ou
querelante" (HC 61.617-8-SP, j. 04.05.1984) e "o réu se defende do crime
descrito na denúncia e não da capitulação nela constante" (HC 63.587-3-RS, j.
14.02.1986).36
Na esteira desses pensamentos, faz-se necessária a breve análise dos artigos
383 e 384 do Código de Processo Penal.
O artigo 383 prescreve o instituto do emendatio
libelli, segundo o qual, "o juiz poderá dar ao fato definição
jurídica diversa da que constar da queixa ou da denúncia, ainda que, em
conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave".
Considerando que a adequação feita pelo Promotor ou querelante é meramente
provisória e que os fatos narrados implicita ou explicitamente na peça
acusatória são os mesmos analisados e julgados pelo juiz, não há ofensa ao
princípio da correlação, pois o que ocorre é simples corrigenda da
classificação contida na peça inaugural.
Neste caso, por não ter havido alteração do fato a respeito do qual foi
exercido o direito de defesa, pode o juiz alterar a tipificação apresentada
pela acusação e até mesmo condenar com pena mais grave, sem que haja
necessidade de qualquer providência prévia.37
Situação diversa ocorre, entretanto, nas hipóteses do artigo 384, caput e parágrafo único, onde, durante o
processo, surgem fatos e/ou circunstâncias elementares não contidos, expressa
ou implicitamente, na peça acusatória (mutatio
libelli). Por essa razão, a sentença não pode ser proferida de
imediato, sob pena de nulidade por ofensa aos princípios do contraditório e da
ampla defesa.
A fim de poder proferir sentença válida, atendendo aos princípios norteadores
do Processo Penal, deverá o juiz adotar uma das seguintes providências: se os
novos fatos e/ou circunstâncias puderem ensejar a aplicação de pena idêntica ou
menos grave à que seria imposta pela capitulação inicial, os autos serão
baixados à defesa para que, no prazo de 08 (oito) dias, se manifeste e, se o
desejar, produza provas, podendo ser ouvidas até 03 (três) testemunhas (art.
384, caput, CPP); se os novos
fatos e/ou circunstâncias importarem em pena mais grave, o juiz baixará os
autos à acusação para que adite a denúncia ou a queixa, abrindo-se um prazo de
03 (três) dias à defesa para que se, querendo, ofereça provas, arrolando até 03
(três) testemunhas.
Maiores considerações sobre o princípio da correlação entre sentença e
imputação, bem como questões outras acerca dos institutos da emendatio libelli e da mutatio libelli serão discutidas com mais
detalhes no Resumo do Tema 9 (Sentença. Correlação entre acusação e sentença.
Coisa julgada. Limites objetivos e subjetivos. Efeitos civis da sentença penal.
Aplicação dos artigos 383 e 384, do CPP, e a ineficácia dos atos processuais).
Em que pese estar a definitividade citada como princípio, boa parte dos
doutrinadores a considera como uma característica dos atos jurisdicionais,
38 que se revestem da possibilidade de a sentença judicial tornar-se imutável a
partir da ocorrência do fenômeno da coisa julgada.
Entenda-se coisa julgada, nas palavras de Cintra, Grinover e Dinamarco, como
sendo a "imutabilidade dos efeitos de uma sentença, em virtude da qual nem as
partes podem repropor a mesma demanda em juízo ou comporta-se de modo diferente
daquele preceituado, nem os juízes podem voltar a decidir a respeito, nem o
próprio legislador pode emitir preceitos que contrariem, para as partes, o que
já ficou definitivamente julgado".
39
De fato, encerrado o desenvolvimento legal de um processo, a manifestação
judicial consubstanciada na sentença adquire um caráter de imutabilidade, não
cabendo revisão por qualquer outro poder, ao contrário, por exemplo, das
decisões administrativas que, quanto à sua legalidade, são sempre passíveis de
revisão pelo Poder Judiciário.
40
Cintra, Grinover e Dinamarco lecionam, com bastante clareza, que, "no Estado de
Direito só os atos jurisdicionais podem chegar a esse ponto de imutabilidade,
não sucedendo o mesmo com os administrativos ou legislativos. Em outras
palavras, um conflito interindividual só se considera solucionado para sempre,
sem que se possa volta a discuti-lo, depois que tiver sido apreciado e julgado
pelos órgãos jurisdicionais: a última palavra cabe ao Poder Judiciário".
41
Por assim ser, Tourinho Filho alerta que há entendimento no sentido de que o
Senado Federal, mesmo face à competência que lhe foi atribuída pelo artigo 52,
incisos I e II, da Constituição Federal de 1988, não exerce função
jurisdicional, posto que suas decisões não têm o caráter da definitividade.
42
O princípio do juiz natural ou juiz constitucional, também chamado de princípio
do juiz competente, no direito espanhol, e princípio do juiz legal, no direito
alemão, originou-se, historicamente, no ordenamento anglo-saxão,
desdobrando-se,
a posteriori, nos
constitucionalismos norte-americano e francês. Entre nós, o referido princípio
inseriu-se deste o início das Constituições.
Trata-se de princípio que garante ao cidadão o direito de não ser subtraído de
seu Juiz Constitucional ou Natural, aquele pré-constituído por lei para exercer
validamente a função jurisdicional.
Assegura expressamente a Constituição Federal que "ninguém será processado nem
sentenciado senão pela autoridade competente" (artigo 5°, inciso LIII) e que
"não haverá juízo ou tribunal de exceção" (artigo 5°, inciso XXXVII).
Outrossim, determina a Lei Maior que "a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito" (artigo 5°, XXXV).
Dentro deste contexto, buscam os dispositivos constitucionais impedir que
pessoas estranhas ao organismo judiciário exerçam funções que lhe são
específicas (salvo, é claro, quando houver autorização da própria Constituição
Federal nesse sentido, p.ex., Senado - artigo 52, incisos I e II) e proscrever
os tribunais de exceção, aqueles criados
post
factum. Assim, nenhum órgão, por mais importante que seja, se não
tiver o poder de julgar assentado na Constituição Federal não poderá exercer a
jurisdição. Tem-se, salienta a doutrina, a mais alta expressão dos princípios
fundamentais da administração da justiça.
Fernandes Scarance afirma que a dúplice garantia assegurada pelo cogitado
princípio - proibição de tribunais extraordinários e de subtração da causa ao
tribunal competente, desdobra-se em três regras de proteção: "a) só podem
exercer jurisdição os órgãos instituídos pela Constituição Federal; b) ninguém
pode ser julgado por órgão instituído após o fato; c) entre os juízes
pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências que exclui qualquer
alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja".
43
Acentua Vicente Greco Filho que "não se admite a escolha de magistrado para
determinado caso, nem a exclusão ou afastamento do magistrado competente;
quando ocorre determinado fato, as regras de competência já apontam o juízo
adequado, utilizando-se, até, o sistema aleatório de sorteio para que não haja
interferência na escolha".
44
é bem verdade que há casos especialíssimos de deslocação da competência, como
no caso previsto no artigo 424 do CPP (desaforamento no procedimento do
tribunal do júri), entretanto, entende-se que, por estarem determinados pelo
interesse público e da própria justiça, não ferem o princípio do juiz natural,
pois o intuito é a busca do julgamento justo.
Grinover, Scarance e Gomes Filho, além de outros doutrinadores, defendem que
com a garantia do juiz natural assegura-se a imparcialidade do órgão
jurisdicional, não como atributo do juiz, mas como pressuposto de existência da
própria atividade jurisdicional. Por isso, afirmam que sem o juiz natural não
há jurisdição, pois a relação jurídica não pode nascer.
45
Os mesmos estudiosos asseveram que além de o julgamento da causa ser de
incumbência do juiz natural, é mister que perante este também seja instaurado e
desenvolvido o processo, não sendo possível o aproveitamento dos atos
instrutórios realizados por juiz constitucionalmente incompetente.
46
Neste diapasão, os artigos 108, §1°, e 567 do CPP devem ser relidos a fim de se
adequarem à garantia do juiz natural, restringindo-se sua aplicação apenas aos
casos de incompetência infraconstitucional. Em se tratando de juiz
constitucionalmente incompetente, não pode haver aproveitamento dos atos,
não-decisórios e decisórios, uma vez que o artigo 5°, inciso LIII, da Lei Maior
refere-se à garantia de que "ninguém será
processado nem
sentenciado senão pela
autoridade competente" (grifei).
De igual forma, também carece de releitura o artigo 564, I, do CPP, que dispõe
ser caso de nulidade os atos praticados por juiz incompetente. Como já
mencionado, a garantia do juiz natural é um pressuposto de existência da
atividade jurisdicional.
Sob este prisma, os atos praticados por juiz constitucionalmente incompetente
são inexistentes e não nulos. Em decorrência disso, o processo e a sentença,
eventualmente prolatada, são juridicamente inexistentes.
Questão interessante é saber se o réu, submetido a julgamento por juiz
constitucionalmente incompetente, estaria sujeito a nova persecução penal sobre
os mesmos fatos, uma vez considerando-se que a sentença prolatada seria
inexistente e, como tal, não estaria tecnicamente suscetível à formação da
coisa julgada.
Grinover, Scarance e Gomes Filho entendem que "o rigor técnico da ciência
processual há de ceder perante os princípios maiores do
favor rei e do
favor libertatis, fazendo prevalecer o dogma do
ne bis in idem, impedindo nova persecução
penal a respeito do fato em tela".
47
Esclarecem os insignes estudiosos que, não obstante o princípio do
ne bis in idem estar tecnicamente ligado
ao fenômeno da coisa julgada e que juridicamente inexistente a sentença esta
não poderia transitar em julgado, no terreno da persecução penal estão em jogos
valores preciosos do indivíduo, como sua vida, sua liberdade, sua dignidade, e
que, nesse particular, o
ne bis in idem assume dimensão autônoma, impedindo nova persecução penal do réu pelos mesmos
fatos já julgados. Observam os autores que a garantia do juiz natural é erigida
em favor do réu e não em detrimento aos direitos deste.
Acerca dos chamados tribunais ou juízos de exceção, assim considerados aqueles
criados após o fato a ser julgado, a proibição dos mesmos não abrange o
impedimento da criação de justiça ou vara especializada, pois, nestes casos,
não há criação de órgãos, mas simples atribuição de órgãos já inseridos na
estrutura judiciária, fixada na Constituição Federal, para julgamento de
matérias específicas, objetivando a melhoria na aplicação da norma substancial.
Cintra, Grinover e Dinamarco salientam a necessidade de se distinguir tribunais
de exceção de justiças especiais, como a Militar, a Eleitoral e a Trabalhista,
lembrando que estas são instituídas pela Lei Maior, com anterioridade à prática
dos fatos a serem por elas apreciados e, portanto, não constituem ofensa ao
princípio do juiz natural.
48
Inclui-se na proibição dos tribunais de exceção os foros privilegiados, criados
como favor pessoal, mas exclui-se as hipóteses de competência por prerrogativa
de função, onde é levada em conta a função exercida pelo réu e não a sua
pessoa, inexistindo, neste caso, favorecimento ou discriminação.
Notas de rodapé convertidas em notas de fim
1 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo
penal. Vol 1. São Paulo: Saraiva, 25ª ed., 2003. p. 47.
2 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO,
Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 19ª ed., 2003, p. 131.
3 Idem. p. 133.
4 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. Vol 2. p. 49.
5 Ibidem.
6 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO,
Cândido Rangel. Op. Cit. 131.
7 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Processo penal
constitucional. São Paulo: RT, 3ª ed., 2002. p. 10.
8 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal.
São Paulo: Atlas, 10ª ed., 2000. p. 166.
9 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO,
Cândido Rangel. Op. Cit. pp.
134-5.
10 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 165.
11 Idem. pp. 165-6.
12 Idem. pp. 166-7.
13 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO,
Cândido Rangel. Op. Cit. 137.
14 Idem. p. 139.
15 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op.
Cit. Vol 2. p. 59.
16 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 164.
17 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO,
Cândido Rangel. Op. Cit. 138.
18 Ibidem.
19 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 164.
20 MARQUES, José Frederico. Instituições de
direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v.I, p.
456.
21 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO,
Cândido Rangel. Op. Cit. 139.
22 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op.
Cit. Vol 2. p 60.
23 Idem. p. 61.
24 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 164.
25 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO,
Cândido Rangel. Op. Cit. 134.
26 Idem. p. 135.
27 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op.
Cit. Vol. 1. p. 48.
28 Idem. Vol 2. p. 59.
29 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p.
164.
30 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op.
Cit. Vol. 1. p. 50.
31 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 164.
32 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio
Magalhães. As nulidades no processo penal. São Paulo: RT, 7ª ed., 2001. p. 222.
33 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op.
Cit. Vol. 1. p. 50.
34 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 164.
35 Idem. p. 452.
36 Ainda nesse sentido: RT 461/306 e 507/525.
37 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio
Magalhães. Op. Cit. pp. 222-3.
38 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 165; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO,
Cândido Rangel. Op. Cit. 136.
39 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO,
Cândido Rangel. Op. Cit. 136.
40 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 165.
41 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO,
Cândido Rangel. Op. Cit. 136.
42 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op.
Cit. Vol. 2. p. 51.
43 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit.
44 GRECO FILHO, Vicente. Op. Cit.
45 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio
Magalhães. As nulidades no processo penal. São Paulo: RT, 7ª ed., 2001.
46 Idem.
47 Idem.
48 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO,
Cândido Rangel. Op. Cit.
Autor:
Flúvio
Cardinelle Oliveira Garcia
fluviocogarcia[arroba]ig.com.br