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perante as experiências históricas de aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos) a dignidade da pessoa humana como base da República significa, sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República.
A fundamentalidade dos direitos, ou seja,
seu reconhecimento enquanto direitos fundamentais, é tema que sempre gera
polêmica e até a contemporaneidade, uma vez que não houve consenso a respeito.
Até mesmo a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF, ação
constitucional que visa proteger os preceitos fundamentais, carece de uma
definição mais incisiva, uma vez que estes ainda não estão explicitados de
forma direta, salientando que não significa prejuízo, uma vez que um rol
taxativo recomenda uma interpretação restritiva, decerto não benéfica ao cidadão.
Toda a controvérsia acerca do que são direitos fundamentais ocorre em virtude
da conseqüência jurídica que advém deste reconhecimento pelo Estado,
significando conferir a estes direitos a blindagem constitucional de cláusula
pétrea, garantindo sua imutabilidade. Como bem elucidou Ingo Wolfgang Sarlet
(2001, p. 354):
A garantia de intangibilidade desse núcleo ou conteúdo essencial de matérias (nominadas de cláusulas pétreas), além de assegurar a identidade do Estado brasileiro e a prevalência dos princípios que fundamentam o regime democrático, especialmente o referido princípio da dignidade da pessoa humana, resguarda também a Carta Constitucional dos "casuísmos da política e do absolutismo das maiorias parlamentares".
E isto força o Estado a cumprir sua
finalidade que é promover o bem comum, como apregoa José Luiz Quadros de
Magalhães (2002, p. 220), e ex vi o art. 5º, § 1º da Constituição brasileira
que preceitua: "as normas definidoras dos
direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata".
A análise crítica dos postulados dos direitos fundamentais e sua relação
visceral com os direitos sociais, este espécie daquele, assume contornos
essenciais. Os direitos sociais são ordinariamente classificados como normas
constitucionais programáticas, residindo na reserva do possível. Norberto
Bobbio (1992, p 77-78) tem uma posição interessante pela relevância de sua
crítica:
Tanto é assim que na Constituição italiana, as normas que se referem a direitos sociais foram chamadas pudicamente de "programáticas". Será que já nos perguntamos alguma vez que gênero de normas são essas que não ordenam, proíbem ou permitem hit et nunc, mas ordenam, proíbem e permitem num futuro indefinido e sem um prazo de carência claramente delimitado? E, sobretudo, já nos perguntamos alguma vez que gênero de direitos são esses que tais normas definem? Um direito cujo reconhecimento e cuja efetiva proteção são adiados sine die, além de confiados à vontade de sujeitos cuja obrigação de executar o "programa" é apenas uma obrigação moral ou, no máximo política, pode ainda ser chamado de direito? A diferença entre esses auto-intitulados direitos e os direitos propriamente ditos não será tão grande que torna impróprio ou, pelo menos, pouco útil o uso da mesma palavra para designar uns e outros? (grifo nosso)
E a crítica de Bobbio é oportuna, especialmente quando se considera o conteúdo de promessas em matéria de direitos. Nestas promessas é que reside a descrença do brasileiro na política e também na justiça, porque se nem o que está escrito vale, de que poderá se socorrer? Para clarear ainda mais a obscenidade do tratamento dos direitos sociais como normas programáticas, a depender do possível de ser realizado, estando, portanto, vinculadas e pendentes de escolha legislativa presa à moral de cada representante, a lição de Luís Roberto Barroso (2001, p. 120) é elucidativa:
O fato de uma regra constitucional contemplar determinado direito cujo exercício dependa de legislação integradora não a torna, só por isto, programática. Não há identidade possível entre a norma que confere ao trabalhador direito ao "seguro desemprego" em caso de desemprego involuntário (CF, art. 7º, II) e a que estatui que a família tem especial proteção do Estado (CF, art. 226). No primeiro caso, existe um verdadeiro direito. Há uma prestação positiva a exigir-se, eventualmente, frustrada pelo legislador ordinário. No segundo caso, faltando o Poder Público a um comportamento comissivo, nada lhe será exigível, senão que se abstenha de atos que impliquem na "desproteção" da família".
O citado doutrinador defende a teoria da
máxima aplicabilidade das normas constitucionais, única forma de dotar a
Constituição de caráter normativo real e de fornecer ao cidadão, seu
destinatário final, uma proteção efetiva. E não parece legítimo que se defenda
que os direitos fundamentais são apenas enunciados sem força normativa, presos
ao acaso da boa vontade do legislador.
Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p. 162) ainda aponta outro perigo do entendimento
de direitos sociais como normas programáticas, afirmando:
negar reconhecimento do princípio da proibição de retrocesso significaria, em última análise, admitir que os órgãos legislativos (assim como o poder público de modo geral), a despeito de estarem inquestionavelmente vinculados aos direitos fundamentais e às normas constitucionais em geral, dispõem do poder de tomar livremente suas decisões mesmo em flagrante desrespeito à vontade expressa do Constituinte.
Embora seja sabido que o legislador dispõe de uma margem de liberdade numa democracia, não se pode admitir que se possa ignorar o conteúdo da Constituição e legislar no sentido de desconstruir ou dissolver a vontade do legislador originário. Aqui reside o cerne deste artigo, abordando o princípio da vedação de retrocesso nos direitos sociais. Embora a abordagem deste princípio intrínseco seja ou traga alguma polêmica, como adverte Lênio Luís Streck (1999, p. 31) eis que:
Embora (o princípio da proibição de retrocesso social) ainda não esteja suficientemente difundido entre nós, tem encontrado crescente acolhida no âmbito da doutrina mais afinada com a concepção do Estado democrático de Direito consagrado pela nossa ordem constitucional. Grifos nossos
Embora, como Lênio Luís Streck afirmou, não seja difundido de maneira ampla, está a cada dia ganhando mais corpo e arrebanhando defensores, tendo como nascedouro a doutrina lusitana de Joaquim José Gomes Canotilho (1998, p. 321 e 2001, p. 81) que define o princípio da proibição de retrocesso social como:
o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa "anulação", "revogação" ou "aniquilação" pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade do legislador tem como limite o núcleo essencial já realizado.
Joaquim José Gomes Canotilho tem como adeptos no Brasil doutrinadores como Ingo Wolfgang Sarlet e Luís Roberto Barroso, et coetera. Verifica-se com Luís Roberto Barroso (2001, p. 158) que apesar do princípio do não retrocesso social não estar explícito, assim como o direito de resistência e o princípio da dignidade da pessoa humana (para alguns, questão controvertida), tem plena aplicabilidade, uma vez que é decorrente "do sistema jurídico - constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser absolutamente suprimido". Na mesma linha Flávia Piovesan (2000):
O movimento de esfacelamento de direitos sociais simboliza uma flagrante violação à ordem constitucional, que inclui dentre suas cláusulas pétreas os direitos e garantias individuais. Na qualidade de direitos constitucionais fundamentais, os direitos sociais são direitos intangíveis e irredutíveis, sendo providos da garantia da suprema rigidez, o que torna inconstitucional qualquer ato que tenda a restringi-los ou aboli-los.
Diante da transição paradigmática que a sociedade contemporânea passa buscando a afirmação e a fundamentação dos direitos, o princípio da vedação de retrocesso dos direitos sociais é um corolário para o que o ser humano deve dar valor: a sua dignidade. é indissociável a idéia de que a Constituição foi criada para propiciar cidadãos dignos, garantindo-lhes a mínima proteção para que lhes seja assegurada uma vida boa, uma vida feliz. Corroborando com isto, Flávia Piovesan (2000, p. 54-55) explicitou a essencialidade do princípio da dignidade da pessoa humana, aduzindo:
A dignidade da pessoa humana, vê-se assim, está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora "as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro".
Note-se que os próprios limites materiais no tocante ao poder de reforma da Constituição significam um entrave à sanha reformista do legislador, sempre preocupado, como se observa no Brasil, em criar novas leis ou reformular as antigas, dando pouca atenção à efetividade e à Constituição.
A unidade da Constituição precisa ser preservada, evitando-se a descaracterização dos preceitos nela contidos. Tanto isto é verdadeiro, que o legislador constituinte estabeleceu vedações para o poder reformador, protegendo sua obra e evitando a desvirtuação e o esvaziamento do conteúdo constitucional pelo legislador ordinário.
O direito à proibição de retrocesso social
consiste numa importante conquista civilizatória. O conteúdo impeditivo deste
princípio torna possível brecar planos políticos que enfraqueçam os direitos
fundamentais. Funciona até mesmo como forma de mensuração para o controle de
constitucionalidade em abstrato, favorecendo e fortalecendo o arcabouço de
assistência social do Estado e as organizações envolvidas neste processo.
Além do mais, o princípio da reserva de justiça da Constituição imprime a
vontade do titular do Poder Constituinte, este legítimo quando seja depositário
dos valores inspiradores do conteúdo normativo da Carta Magna. O poder
constitucional é limitado aos valores base em que fora sedimentado. Por
oportuno cumpre citar Oscar Vilhena Vieira (1999, p. 224) por abordar mais uma
premissa deste artigo, aduzindo "não mais é
possível pensar a Constituição - e mais ainda as suas cláusulas constitucionais
intangíveis - sem levar em conta suas qualidades intrínsecas, seu valor ético".
O valor intrínseco de uma Constituição não pode ser desprezado ou subjugado,
sob pena de ruir o conteúdo normativo da mesma.
Em um país tão marcado pela desigualdade social como o Brasil, os impactos do
processo de globalização econômica e as matizes neoliberais políticas fazem por
brotar no constitucionalismo contemporâneo a necessidade de elaborar formas de
proteger os direitos sociais, em especial os trabalhistas, garantindo o mínimo
necessário à dignidade de vida.
A globalização econômica faz com que os Estados, em geral, percam o controle de
sua economia, atingindo seu poder de gestão, imprimindo ações diretivas a
favorecer ou desfavorecer, a depender da ocasião, os direitos sociais. O que
tem acontecido é uma tendência de retrocesso na proteção e efetividade destes
direitos, por vários fatores, dentre eles a diminuição da máquina estatal,
notadamente a assistencial e o desmantelo dos direitos trabalhistas através da
flexibilização.
O Direito, enquanto ciência social aplicada deve transpassar da mera dogmática
e alcançar a realidade, indo além da análise do problema, propondo soluções
palpáveis e de aplicabilidade imediata. Esta função social urge ser
incessantemente perseguida, sob pena de retrocessão na própria civilização,
entendida como abandono dos instintos animalescos, e seguir ao encontro do
estado democrático de direito prometido na Constituição.
Como salienta Antônio Henrique Pérez Luño (1993, p. 215) os direitos sociais,
denominados por Norberto Bobbio (1992) como de segunda geração, exsurgem do
reconhecimento de que "liberdade sem
igualdade não conduz a uma sociedade livre e pluralista, mas a uma oligarquia,
vale dizer, à liberdade de alguns e à não-liberdade de muitos", o
que condiz com a idéia de mínimo existencial garantido através da intervenção
positiva do Estado. Disto extrai-se a essencialidade dos direitos sociais e a
relevância jurídica enquanto bens tutelados pela Carta Magna, a saber direito a
educação, saúde, ao lazer, ao trabalho e à moradia. Todos estes direitos estão
contidos no mínimo existencial englobado no conteúdo jurídico do princípio da
dignidade da pessoa humana.
A crise por que vive o direito tem reflexos nos direitos fundamentais. O
panorama de crise será mais ou menos agudo a depender das posições políticas
adotadas. Isto se dá pelo impacto da globalização e da afirmação do paradigma
alcunhado neoliberal, que impõe aos países periféricos uma lógica perversa de
Estado mínimo, subordinação a órgãos como o Fundo Monetário Internacional e a
situações de competição desigual e, como adverte Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p.
8) a crise, entretanto não é fruto apenas disto:
é, contudo, comum a todos os direitos fundamentais, de todas as espécies e "gerações", além de não poder ser atribuída, no que diz com suas causas imediatas, exclusivamente ao fenômeno da globalização econômica e ao avanço do ideário e da "praxis" neoliberal.
A exclusão social e formação de bolsões de pobreza são graves dilemas enfrentados pelo Brasil, que atuam reduzindo a capacidade de ação social no sentido de efetivação dos direitos fundamentais. A outra face da moeda é fragilidade que transformar-se em dominação, o que gera uma possibilidade de desmantelo da democracia. O poder paralelo ou crime organizado abrigado em favelas e aglomerados, que representam "pseudo-estados", onde o poder instituído está ausente. E aí surge o perigo de isolar em dois mundos o povo brasileiro, de um lado os moradores da cidade submetida ao poder político instituído e de outro os habitantes das favelas sob o crivo do crime organizado, podendo vir a força estatal ou violência legitimada ser utilizada com o objetivo falacioso de manter a ordem e proteger os cidadãos de bem, o que foi chamado de "fascismo do Estado paralelo" por Boaventura Souza Santos (1998, p. 23 e ss), caracterizado pela subversão da ordem jurídica. Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p. 8) contextualiza de forma brilhante os nefastos reflexos da crise dos direitos sociais:
Para além disso, convém que fique registrado que - além da crise dos direitos fundamentais não se restringir aos direitos sociais - a crise dos direitos sociais, por sua vez, atua como elemento de impulso e agravamento da crise dos demais direitos. [...] Basta, neste contexto, observar que o aumento dos índices de exclusão social, somado à crescente marginalização, tem gerado um aumento assustador da criminalidade e violência nas relações sociais em geral, acarretando, por sua vez, um número cada vez maior de agressões ao patrimônio, vida, integridade corporal, intimidade, dentre outros bens jurídicos fundamentais.(grifo nosso)
Diante deste contexto de crise, o direito
do trabalho é afetado de forma incisiva e seu desmantelo contribui para o
aumento da violência, principalmente em razão do desemprego. O único caminho
que pode despontar para a satisfação de uma sociedade justa e igualitária é
garantir, por força e proteção da Constituição Federal, a dignidade do
trabalho. E não só isto, propiciar formas de que estas normas sejam
efetivamente cumpridas.
NOTAS DE
RODAPé CONVERTIDAS
1. Ideais insertos no art. 3º, I da Constituição Federal de 1988.
2. Art. 60, § 4º, inc, IV da CF/88, in
verbis: Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente
a abolir: os direitos e garantias individuais.
3. A simples leitura do art. 1º, incisos II e III da Constituição Federal
embasa a assertiva no tocante os direitos sociais e seus valores inspiradores
são fundamentos do Estado Democrático de Direito e também sua conceituação,
haja vista, que a soberania popular, a cidadania, a dignidade da pessoa humana,
os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político e a
representatividade do povo, real detentor do poder consubstanciam o Estado
Democrático de Direito.
4. O princípio do não-retrocesso social ou aplicação progressiva dos direitos
sociais caracteriza-se pela impossibilidade de redução dos direitos sociais
amparados na Constituição, garantindo ao cidadão o acúmulo de patrimônio
jurídico.
Autor:
Dayse Coelho de Almeida
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