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A Função Social da Empresa: adequação às exigências do mercado ou filantropia? (página 2)

Hélio Capel Filho

função. S. f. 1. Ação própria ou natural dum órgão, aparelho ou máquina. 2. Cargo, serviço, ofício. 3. Prática ou exercício de cargo, serviço, ofício. 4. Utilidade, iuso, serventia. 5. Posição, papel. 6. Espetáculo. 7. Salemidade, festividade. 8. jur. Cada uma das grandes divisões da atividade do Estado na consecução de seus objetivos jurídicos. 9. jur. O conjunto dos direitos, obrigações e atribuições duma pessoa em sua atividade profissional específica. 10. Mat. Qualquer correspondência entre dois ou mais conjuntos. 11. Quim. Grupamento de átomos que atribui a uma classe de substâncias, em cujas moléculas está presente, um comportamento químico determinado e mais ou menos uniforme. 12. Bras. Festa dançante; baile, dança. 13. Brás. Pândega, divertimento, funçanata.

Como se vê, a palavra tem significados diversificados. Para a compreensão que interessa ao presente estudo, os significados que servem ao propósito são os de números 4 e 5 - utilidade, uso, serventia; ou posição, papel. Todos eles lembram destinação, propósito. Aqui reside relevante ponderação, sobre a qual passamos a refletir.

A Ontologia - que significa o estudo (do grego logia) dos seres (do grego onto) - possui uma teoria, denominada Teoria dos Objetos, que visa fixar uma certa organização para todas as coisas do universo. A Teoria dos Objetos assume um ponto de vista antropocêntrico, entendendo ser o homem o centro do universo. Sendo o universo formado pela união de tudo o que existe, esta teoria divide os objetos que o compõe em duas categorias: naturais (tudo aquilo que existe na natureza, independente da vontade do homem) e os culturais (os que existem por vontade humana). A empresa, só para constar, seria um objeto cultural, pois criada pelo homem e para cumprir certa finalidade.

Uma pedra sem função alguma não chega a ser uma pedra, posto que o simples fato de existir já a faz ocupante de um espaço, detentora de uma certa massa e situada em certo lugar. Só estes fatos, por si, fazem dela um objeto com destinação. Mesmo os objetos ideais ou espirituais possuem uma razão de ser.

Admitindo-se que cada coisa existente no universo tem um sentido, um propósito, uma finalidade, não seria inteligente estudar um ente, seja ele qual for, sem levar em consideração os efeitos que sua existência provoca no hólos. Eis portanto sua função - a destinação além da própria existência, que ultrapassa o simples fato de existir.

O brilhante e sempre espontâneo professor catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia, J.J. Calmon de Passos5 , ao tratar da função social do processo, nos dá exata noção do sentido e do alcance que esta expressão representa para o Direito:

Quando se diz que o fígado é um órgão ao qual se associa a função hepática, estamos afirmando que ele desempenha certa atividade cujos efeitos são direcionados em benefício de outros órgãos ou funções que, por sua vez, servem ao homem, em termos de totalidade. Eis o que para mim é função - um atuar a serviço de algo que nos ultrapassa. Função social, conseqüentemente, pode ser entendida como o resultado que se pretende obter com determinada atividade do homem ou de suas organizações, tendo em vista interesses que ultrapassam os do agente. Pouco importa traduza essa atividade exercício de direito, dever, poder ou competência. Relevantes serão, para o conceito de função, as conseqüências que ela acarreta para a convivência social. O modo de operar, portanto, não define a função, qualifica-a.

A função social da propriedade já fora assinalada por Augusto Comte, antes mesmo dos juristas franceses que melhor sustentaram essa teoria, ao condenar os abusos do sistema capitalista de propriedade e, ao mesmo tempo, as doutrinas socialistas consideradas por ele como utopias ou extravagâncias.

Arnaldo Süssekind6 também aborda o problema, citando Léon Duguit:

numa de suas notáveis conferências sobre a socialização do Direito, lembrou o insigne Léon Duguit que (...) "o possuidor de uma riqueza tem, pelo fato de possuir essa riqueza, uma função social a cumprir; enquanto cumpre essa missão, seus atos de proprietário são protegidos". E conclui: "a intervenção dos governantes é legítima para obrigá-lo a cumprir sua função social de proprietário, que consiste em assegurar o emprego das riquezas que possui conforme seu destino".

Na verdade, a função social não é melhor representada pela figura do ideal capitalista violentado, rasgado pela sobreposição forçada de um ideal socialista. Não é nada disso. A função social da propriedade não tem sua melhor representação nas invasões do MST e na desapropriação, muito pelo contrário, como já ensinou Duguit. Cumprir a função social de um ente significa, então, fazer o correto uso de sua estrutura segundo a sua natureza, dando ao bem ou ente uma destinação justa, sem ferir seu ideal de existência, no plano aceito conforme o sistema e a ideologia predominante da época.

Entendido o sentido da expressão função social e, sabendo que empresa significa a atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens e serviços, como poderia ser definida então a função social da empresa?

Por mais que se pretenda emprestar ao tema um enfoque neutro, ou de qualquer forma imprimir-lhe a sutileza que só os teóricos não empresários o fazem, de forma a agradar as alas do ceticismo e da simpatia, os esforços serão sempre inúteis, pois, no atual estágio sócio-evolutivo, dificilmente se convenceria a um empregado ou a um consumidor não empresário de que a empresa brasileira faz muito mais do que deveria e, por outro lado e com igual nível de dificuldade, seria muito penoso, senão perigoso, tentar colocar na cachola do empresário a idéia de que ainda faz pouco, que deveria realizar muito mais.

Em brilhante palestra proferida durante o XIX Encontro Anual do Magistrados do Trabalho da 2ª Região, também realizado em Campos do Jordão, em 25 de setembro de 2003, a I. Professora Doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da PUC/SP, Flávia Piovesan propôs uma reflexão a respeito da relação entre os direitos humanos e o trabalho, sob a perspectiva dos direitos econômicos, sociais e culturais. Com base na idéia de integralidade, interdependência e indivisibilidade daqueles planos, a Professora enfatiza que "Da aplicação progressiva dos econômicos, sociais e culturais resulta a cláusula de proibição de retrocesso social em matéria de direitos sociais." Finaliza aduzindo que "diante desses desafios, resta concluir pela crença na implementação dos direitos humanos, como a única plataforma emancipatória de nosso tempo, como a nossa racionalidade de resistência."

Fábio Konder Comparato8 ensina que a empresa atua para atender não somente os interesses dos sócios, mas também os da coletividade:

Função, em direito, é um poder de agir sobre a esfera jurídica alheia, no interesse de outrem, jamais em proveito do próprio titular. Algumas vezes, interessados no exercício da função são pessoas indeterminadas e, portanto, não legitimadas a exercer pretensões pessoais e exclusivas contra o titular do poder. é nessas hipóteses, precisamente, que se deve falar em função social ou coletiva. (...) em se tratando de bens de produção, o poder-dever do proprietário de dar à coisa uma destinação compatível com o interesse da coletividade transmuda-se, quando tais bens são incorporados a uma exploração empresarial, em poder-dever do titular do controle de dirigir a empresa para a realização dos interesses coletivos.

À empresa interessa agir de forma a melhorar sempre sua imagem e reputação, buscando credibilidade no mercado e junto à coletividade. Atuar com responsabilidade social é implementar um processo produtivo que não agrida o meio ambiente, que valorize o homem como profissional, que coloque no mercado, com ética, produtos cuja qualidade seja reconhecida e em concordância com a normatização consumerista.

Segundo pesquisa da entidade norte¬americana Business for Social Respon¬sibility, 68% dos jovens optariam por trabalhar em uma empresa que tivesse algum investimento social, e 76% dos consumidores nos Estados Unidos pre¬ferem marcas e produtos envolvidos com algum projeto social.

Ao recolher os tributos devidos, ao empregar com dignidade, ao comercializar produtos e serviços que atendam ao clamor de zelo, confiança e respeito ao meio ambiente, a empresa já está cumprindo algumas de suas funções sociais. Seria hora de alguém exclamar: "__ Mas isso não é função social, é obrigação legal!!" E ponderar-se-ia que, estando a empresa cumprindo com suas obrigações legais, estará ela atendendo à vontade social, já que foi a consciência coletiva legislativamente representada que as criou.

Então a idéia é a de que cumprir a função social da empresa é exatamente buscar a finalidade capitalista do lucro, sem contudo se olvidar das responsabilidades que farão com que a sua existência resulte em desenvolvimento social, cultural, econômico, etc..

O objetivo é o lucro, mas para alcançá-lo a empresa provocou diversos fatos jurídicos que somaram benefícios para a coletividade que a circunda. "Resultados que ultrapassam os interesses do agente".

Em que pese pareçam realidades bem distantes e talvez por certo prisma até o sejam, o trabalho social que uma empresa realiza mobilizando por vezes todo um País, só se difere em proporções da contratação, pela microempresa, de jovem pelo programa "Primeiro Emprego", pois a natureza e a finalidade são coincidentes e não são gratuitas. O objetivo é o aumento das vendas, a redução do custo, o marketing, o lançamento de um produto, a satisfação dos que laboram sua produção, a conscientização de autoridades, a sensibilização de potenciais consumidores, impressionar a concorrência, enfim, o lucro.

Em muitos casos a empresa auxilia até mesmo em funções que, a priori, seriam de responsabilidade do Estado, sem significar substituição ou sobreposição aos deveres e às esferas públicas. Mas tudo o que se busca é a conquista da confiança por parte do mercado, para garantir melhores resultados de lucro.

Uma empresa que contrate vigilância armada para toda a quadra onde se situa e, com isso reduz a criminalidade do bairro, não estará realizando a função do Estado de garantir segurança à sociedade, embora possa estar auxiliando para aquele fim.

Sobre a atuação das empresas em ações sociais e a responsabilidade do Estado, Paulo Roberto Colombo Arnoldi, em artigo escrito em parceria com a Bolsista do CNPq Taís Cristina de Camargo Michelan9 , sabiamente conclui que

(...) atribuir alguns deveres sociais a essas entidades não significa esquivar o Estado de funções que lhe são próprias. Na economia moderna, ambos devem trabalhar juntos, pois é notório que a atividade empresarial assumiu dimensões extraordinárias (...) que sua contribuição à sociedade não significa uma diminuição dos lucros. Pelo contrário, podemos felizmente constatar uma sensível melhora nas condições econômico-financeiras das instituições que têm adotado medidas de caráter social.

CONCLUSÃO


As transformações do mundo globalizado e voltado à preservação do meio-ambiente e à valorização do ser humano impõe às empresas uma re-adequação do processo produtivo e das formas de gestão. A empresa moderna deve voltar a sua atenção para os anseios sociais, inserindo um comportamento ético e socialmente responsável, com políticas de preservação e valorização, de forma a conquistar o reconhecimento público quanto a sua exemplar atuação, pois assim estará conquistando o mercado e realizando sua função social, sem desprezar a sua finalidade primeira: o lucro.

O simples fato de a empresa realizar sua finalidade lucrativa de forma a garantir, por conseqüência, uma melhoria de vida para seus colaboradores, acionistas, fornecedores, consumidores e para a coletividade, não quer dizer que esteja substituindo ou fazendo as vezes do Estado.

Os resultados alcançados com as políticas sociais aplicadas pela empresa não se resumem em ações filantrópicas, nem assim devem ser entendidas, mas são antes estratégias, atuais e eficazes para conquistar a confiança do mercado, da sociedade e, com isso, aumentar suas vendas e garantir o lucro.

NOTAS DE RODAPé CONVERTIDAS

1. SAVATIER, René. Traité de la responsabillité. Paris <E>, 1939, Vol. I, n. 1, 1939, Vol. I, n. 1

2. Koldo Mikel Santiago Redondo, letrado do Tribunal Constitucional Espanhol, falou aos Juízes do Trabalho em Campos do Jordão, no XII Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Conamat). Afirmava que "Por questões que não dizem respeito apenas aos imperativos de igualdade e justiça, mas, também por imperativo de compensação da desigualdade, temos que defender os direitos fundamentais dos trabalhadores." Fundamenta destacando que "(...) a igualdade não é um princípio que acompanha a liberdade contratual e o trabalhador está sempre em posição de debilidade ante ao empregador." Complementa que "(...) quando falamos em direitos fundamentais de natureza trabalhista, falamos de um núcleo central de um patrimônio jurídico. Falamos que a prestação de serviço tem que se dar em condições de dignidade." Relatou os problemas e soluções vividas na flexibilização do Direito Trabalhista na Espanha e finalizou aconselhando: " O que devemos fazer é pleitear. Os direitos não caem do céu (...) Temos que educar em Direitos Humanos, (...) temos que atuar como um grupo para mudar as coisas."

3. PROSCURSEN, Pedro. Do contrato de trabalho ao contrato de atividade. São Paulo:LTr, 2003.

4. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p.311.

5. CALMON DE PASSOS, Jose Joaquim. Funcao social do processo. Rio de Janeiro: Revista Forense, v.343, jul./set., 1998.

6. SÜSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de direito do trabalho 12. ed., São Paulo: Ltr, 1991.p. 133 e 134

7. Revista Amatra II, n.º 10, Ano IV, dezembro de 2003.

8. COMPARATO, Fábio Konder. Direito empresarial: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1990.

9. MICHELAN, Taís Cristina de Camargo e ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo. Novos enfoques da função social da empresa numa economia globalizada. Revista Jurídica da Universidade de Franca. Ano 2, n. 3, 1999. p.213-220.

BIBLIOGRAFIA


COMPARATO, Fábio Konder. Direito empresarial: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1990.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p.311.

MICHELAN, Taís Cristina de Camargo e ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo. Novos enfoques da função social da empresa numa economia globalizada. Revista Jurídica da Universidade de Franca. Ano 2, n. 3, 1999.
CALMON DE PASSOS, Jose Joaquim. Função social do processo. Rio de Janeiro: Revista Forense, v.343, jul./set., 1998.

PROSCURSEN, Pedro. Do contrato de trabalho ao contrato de atividade. São Paulo:LTr, 2003.

Revista Amatra II, n.º 10, Ano IV, dezembro de 2003.

SAVATIER, René. Traité de la responsabillité. Paris , 1939, Vol. I, n. 1

SÜSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de direito do trabalho. 12. ed., São Paulo: Ltr, 1991.


Autor:

Hélio Capel Filho

heliocapel.jur[arroba]ucg.br



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