"AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTéRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. RESSARCIMENTO DE DANO AO ERÁRIO. SEQUESTRO DE BEM ADQUIRIDO ANTES DO FATO ILÍCITO. IMPOSSIBILIDADE.
Tem o Ministério Público legitimidade para propor ação civil pública visando ao ressarcimento de dano ao erário.
A Lei nº 8.429/92, que tem caráter geral, não pode ser aplicada retroativamente para alcançar bens adquiridos antes de sua vigência, e a indisponibilidade dos bens só pode atingir os bens adquiridos após o ato tido como criminoso. Recurso parcialmente provido."
(STJ, 1ª Turma, REsp. nº 196.932/SP, rel. Min. Garcia Vieira, j. em 18.03.99, unânime, DJ de 11.05.99).
1. Consoante a ementa supra transcrita, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 196.932, após confirmar a legitimidade do Ministério Público para o ajuizamento de ação civil pública visando á proteção do patrimônio público, reformou o acórdão recorrido e assentou a tese de que a medida de indisponibilidade dos bens, decretada com o fim de garantir o futuro ressarcimento ao erário que fora desfalcado por atos de improbidade, somente poderia alcançar aqueles bens adquiridos após o advento da Lei nº 8.429/92, já que esta não pode ser aplicada retroativamente. O eminente relator, Min. Garcia Vieira, além de indicar como precedente o RMS nº 6.182-DF1 , assim fundamentou seu voto, verbis:
"A Lei 8.429/92, que tem caráter geral não pode ser aplicada retroativamente para alcançar bens adquiridos antes de sua vigência, e a indisponibilidade dos bens só pode atingir os bens adquiridos após o fato tido como criminoso. Seu artigo 7º, parágrafo único, diz claramente que a indisponibilidade só atinge os bens adquiridos ilicitamente, só podendo ser arrestados ou seqüestrados os bens resultantes de enriquecimento ilícito. é claro que não podem ser atingidos pela constrição judicial os bens adquiridos licitamente, antes da vigência da citada norma legal, que em seu artigo 16 dispõe que pode ser requerida ao juiz a decretação do seqüestro dos bens do agente que tenha enriquecido ilicitamente ou causado dano ao patrimônio público"
2. Ao reconhecer a impossibilidade de serem alcançados pela medida de indisponibilidade os bens de origem lícita adquiridos antes da Lei nº 8.429/92, alicerçou-se o acórdão, de forma sintética, nos seguintes fundamentos: a) o ato de improbidade seria um ato criminoso; b) a Lei nº 8.429/92 não pode retroagir para atingir bens adquiridos antes de sua vigência; c) de acordo com o art. 7º, parágrafo único, da Lei nº 8.429/92, a indisponibilidade só atinge os bens de origem ilícita, ou seja, aqueles resultantes de enriquecimento ilícito.
3. Como consectário lógico do agregamento social, o qual erige-se como elemento indissociável da própria existência humana, fez-se necessária a paulatina sedimentação de normas que regessem a convivência entre os componentes da sociedade. Tal normatização, desde a sua gênese, sempre buscou garantir o desenvolvimento do grupamento, a consecução dos objetivos comuns e a pacífica coexistência dos interesses de seus membros, muitas vezes distintos ou contrapostos. Com o evolver das civilizações e a constante mutação das relações intersubjetivas, foi inevitável o aperfeiçoamento do regramento social; outrora de proporções reduzidas, ao alcance e sob o controle de todos; hodiernamente, afigura-se eivado de complexidade ímpar, culminando em ser aglutinado em compartimentos normativos, os quais se encontram subdivididos conforme a natureza e a importância dos interesses tutelados. Com esteio em tal concepção, formulou-se a dicotomia entre o público e o privado, bem como a inevitável repartição de cada um daqueles ramos consoante graus de especificidade que identificavam as novas ramificações como espécies do mesmo gênero, com pontos comuns de contato, mas igualmente com dissonâncias que desaconselhavam a análise e a disciplina de forma conjunta. No entanto, qualquer que seja o compartimento normativo em que esteja armazenada a norma de conduta e a natureza da conduta tutelada, ela normalmente apresenta um componente indissociável, qual seja, uma sanção para a sua inobservância.
4. A sanção será passível de aplicação sempre que for identificada a subsunção de determinada conduta ao preceito proibitivo previsto de forma explícita ou implícita na norma. A sanção, pena ou reprimenda apresenta-se como elo de uma grande cadeia, cujo encadeamento lógico possibilita a concreção do ideal de bem-estar social, caracterizando-se, ainda, como instrumento garantidor da soberania do direito, concebido este não como mero ideal abstrato, mas como fator perpétuo e indissociável do bem-estar geral, sendo correlato á própria coexistência humana. Como se vê, sob o prisma ôntico, inexiste distinção entre as sanções cominadas nos diferentes ramos do direito, quer tenham natureza penal, civil ou administrativa, pois, em essência, todas visam recompor, coibir ou prevenir um padrão de conduta violado, cuja observância é necessária á manutenção do elo de encadeamento das relações sociais. Sob o aspecto axiológico, por sua vez, as sanções apresentarão diferentes dosimetrias conforme a natureza da norma violada e a importância do interesse tutelado, distinguindo-se igualmente consoante a forma, os critérios, as garantias e os responsáveis pela aplicação. Caberá ao órgão incumbido da produção normativa, direcionado pelos fatores sócio-culturais da época, identificar os interesses que devem ser tutelados e estabelecer as sanções em que incorrerão aqueles que os violarem. Assim, inexiste um elenco apriorístico de sanções cuja aplicação esteja adstrita a determinado ramo do direito.
5. No direito positivo pátrio, inexistem parâmetros aptos a infirmar a regra geral acima exposta, existindo unicamente sanções que são preponderantemente aplicadas em determinado ramo do direito. À guisa de ilustração, pode-se mencionar: a) o cerceamento da liberdade do cidadão, normalmente sanção de natureza penal (art. 5º, XLVI, CR/88), mas também passível de ser utilizado como sanção contra o depositário infiel e o inadimplente do débito alimentar (art. 5º, LXVII, da CR/88), erigindo-se como eficaz meio de coerção para o cumprimento de tais obrigações; b) a infração aos deveres funcionais pode acarretar para o servidor público a perda do cargo, a qual poderá caracterizar-se como sanção de natureza cível (art. 37, § 4º, da CR/88), administrativa (art. 41, § 1º, II e III, da CR/88) ou penal (art. 5º, XLVI, da CR/88); c) a suspensão dos direitos políticos pode ser conseqüência de uma sanção penal (art. 15, III, da CR/88) ou de uma sanção política (art. 85 da CR/88 e Lei 1.079/50).
6. No âmbito específico da improbidade administrativa, tal qual disciplinada na Lei nº 8.429/92, as sanções serão aplicadas por um órgão jurisdicional, com abstração de qualquer concepção de natureza hierárquica, o que afasta a possibilidade de sua caracterização como sanção administrativa2 . As sanções de perda de bens ou valores de origem ilícita, ressarcimento do dano, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, multa civil e proibição de contratar ou receber incentivos do Poder Público, previstas no art. 12, são passíveis de aplicação pelo órgão jurisdicional, restando analisar se possuem natureza penal ou cível (rectius: extra-penal). À luz do direito posto, inclinamo-nos por esta3 , alicerçando-se tal concepção nos seguintes fatores: a) o art. 37, § 4º, in fine, da CR/88, estabelece as sanções para os atos de improbidade e prevê que serão aplicadas de acordo com a gradação prevista em lei e "sem prejuízo da ação penal cabível"; b) regulamentando este dispositivo, dispõe o art. 12, caput, da Lei nº 8.429/92 que as sanções serão aplicadas independentemente de outras de natureza penal; c) as condutas ilícitas elencadas nos arts. 9º, 10 e 11 da Lei nº 8.429/92, ante o emprego do vocábulo "notadamente", tem caráter meramente enunciativo, o que apresenta total incompatibilidade com o princípio da estrita legalidade que rege a seara penal (art. 5º, XXXIX, da CR/88), segundo o qual a norma incriminadora deve conter expressa previsão da conduta criminosa; d) o processo criminal atinge de forma mais incisiva o status dignitates do indivíduo, o que exige expressa caracterização da conduta como infração penal, sendo relevante frisar que ela produzirá variados efeitos secundários; e) a utilização do vocábulo "pena" no artigo 12 da Lei nº 8.429/92 não tem o condão de alterar a essência dos institutos, máxime quando a similitude com o direito penal é meramente semântica; f) a referência a "inquérito policial" constante do artigo 22 da Lei de Improbidade também não permite a vinculação dos ilícitos previstos neste diploma legal á esfera penal, já que o dispositivo tão somente estabelece a possibilidade de o Ministério Público requisitar a instauração de processo administrativo e não exclui a utilização do inquérito civil público previsto na Lei nº 7.347/85, o que demonstra que cada qual será utilizado em conformidade com a ótica de análise do ilícito e possibilitará a colheita de elementos para a aplicação de distintas sanções ao agente. A questão ora analisada, longe de apresentar importância meramente acadêmica, possui grande relevo para a fixação do rito a ser seguido e para a identificação do órgão jurisdicional competente para processar e julgar a lide, já que parcela considerável dos agentes ímprobos goza de foro por prerrogativa de função nas causas de natureza criminal.4 Identificada a natureza cível das sanções a serem aplicadas, inafastável será a utilização das regras gerais de competência nas ações que versem sobre improbidade administrativa, o que culminará em atribuir ao Juízo monocrático, verbi gratia, o processo e o julgamento das causas em que Prefeitos5 e membros dos Tribunais Regionais do Trabalho6 figurem no pólo passivo.
7. Além de não ter natureza penal, a obrigação de reparar o dano não é inovação da Lei nº 8.429/92, o que afasta eventuais argumentos de que tal obrigação não poderia preexistir á vigência deste diploma legal. Aquele que causar dano a outrem tem o dever de repará-lo, dever este que reside na necessidade de recompor o patrimônio do lesado, fazendo com que este, tanto quanto possível, retorne ao estado em que se encontrava por ocasião da prática do ato lesivo. Essa concepção, hodiernamente, encontra-se amplamente difundida e erigida á categoria de princípio geral de direito, sendo integralmente aplicada em se tratando de danos causados ao patrimônio público. Em relação aos agentes públicos em geral, o artigo 141, § 31, 2ª parte, da Constituição de 1946, estatuía que "a lei disporá sobre o seqüestro e o perdimento de bens, no caso de enriquecimento ilícito, por influência ou com abuso de cargo ou função pública, ou de emprego em entidade autárquica."7 O artigo 150, § 11, 2ª parte, da Constituição de 1967 que "a lei disporá sobre o perdimento de bens por danos causados ao erário ou no caso de enriquecimento ilícito no exercício de função pública". O artigo 153, § 11, 2ª parte, da Emenda Constitucional nº 1 de 1969, que "esta (a lei) disporá, também, sobre o perdimento de bens por danos causados ao erário, ou no caso de enriquecimento ilícito no exercício do cargo, função ou emprego na Administração Pública, direta ou indireta." Diferentemente dos textos anteriores, os quais restringiam a tipologia dos atos de improbidade ás hipóteses de dano ao erário e enriquecimento ilícito, o artigo 37, § 4º da Constituição de 1988 confere maior liberdade ao legislador ordinário, dispondo que "os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível", tendo sido o preceito constitucional regulamentado pela Lei nº 8.429/92. Ainda sob a ótica da Constituição de 1988, o seu artigo 15, V prevê a suspensão dos direitos políticos do cidadão nos casos de "improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º."
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