O diploma legal é uma homenagem á biofarmacêutica, Maria da Penha Maia Fernandes, símbolo da luta contra a violência familiar e doméstica. Em 1983, sofreu duas tentativas de homicídio por parte do ex-marido. Começou com um tiro enquanto dormia. Ficou paraplégica. Duas semanas depois de regressar do hospital, ainda em recuperação, sofreu um segundo atentado contra sua vida: seu ex-marido tentou eletrocutá-la enquanto se banhava. O agressor foi julgado duas vezes pelos tribunais locais (1991 e 1996), e devido aos sucessivos recursos contra as decisões do tribunal do júri, sempre permaneceu solto.
Em 1998, o Centro para a Justiça e o Direito Internacional e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, ao lado de Maria da Penha, enviaram o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), pela demora injustificada em não se dar uma decisão definitiva no processo.
Em 2001, após 18 anos do crime, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos responsabilizou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação á violência doméstica e recomendou várias medidas em relação ao caso concreto de Maria da Penha e em relação ás políticas públicas do Estado para enfrentar a violência doméstica contra as mulheres brasileiras.
Em 2002, por força da pressão internacional de audiências de seguimento do caso na Comissão Interamericana, o processo no âmbito nacional foi encerrado e em 2003 o ex-marido de Penha foi preso.
A Lei Maria da Penha tem como fundamento o disposto no art. 226, § 8º, da Constituição Federal, segundo o qual "O Estado assegurará a assistência á família na pessoa de cada um dos que integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações."
Embasa-se, outrossim, na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
A preocupação altruística do legislador, no novel diploma, cinge-se a preservar a saúde física e mental e o aperfeiçoamento moral, intelectual e social da mulher contra a agressão masculina. Até porque pelas estatísticas, dentre as hipóteses de agressão no seio da família, a violência doméstica preponderante é aquela praticada pelo homem contra a mulher.
Após a edição da Lei dos Juizados Especiais Criminais (9099/95), a violência doméstica (leia-se: lesão corporal dolosa) passou a ser processada e julgada pelos juizados. Segundo o art. 88, passou, ao lado da lesão corporal culposa, a ser crime de ação pública condicionada á representação. E, como é de geral conhecimento, os juizados não têm como objetivo o endurecimento de penas ou de medidas contra o autor do fato, ao contrário, sua finalidade precípua é sempre buscar a despenalização mediante imposição de penas não privativas de liberdade, com ênfase á pena pecuniária e á pena restritiva de direitos.
Destaque-se que os Juizados Criminais trouxeram uma oxigenação momentânea na atividade policial, mas têm representado grande fonte de impunidade aos infratores, porquanto seu caráter pedagógico, até o momento, não foi assimilado a contento. Em São Paulo, existem poucas varas especializadas nas infrações de menor potencial ofensivo, de modo que as varas criminais cumulam as competências. O que se vê é a natural e acentuada preocupação dos magistrados criminais com os processos que versam crimes mais graves, relegando os de menor potencial a um segundo plano. Uma das conseqüências provenientes deste quadro foi a frágil ou quase inexistente punição do agressor doméstico.
Isto sem falar que a mulher quase sempre se retrata perante o magistrado. No jargão popular, "retira a queixa", chegando-se á quase absoluta impunidade do homem agressor.
Para contrastar com a impunidade e com os altos índices de violência doméstica e familiar, alguns diplomas passaram a ser editados, inicialmente de modo tímido até se chegar á atual Lei Maria da Penha.
Assim, primeiramente, no campo dos Juizados, o legislador, visando minorar os excessos praticados pelo homem contra a mulher, através da Lei 10.455/02, de 13 de maio de 2.002, inseriu ao parágrafo do art. 69, parágrafo único, a possibilidade de o juiz, cautelarmente, determinar o afastamento do homem do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima.
A lesão dolosa permanecia na competência dos Juizados Criminais.
Dois anos após, através da Lei 10.886, de 17 de junho de 2.004, tratando diretamente do tema Violência Doméstica, foi acrescentado um § 9º ao art. 129, segundo o qual se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou hospitalidade, a pena passou a ser de seis meses a um ano. Não ficou aí. Instituiu-se uma causa de aumento de pena, com a inserção do § 10 ao art. 129, segundo o qual nos casos previstos nos §§ 1º a 3º do art. 129, se as circunstâncias são as indicadas no parágrafo nono deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço).
A lesão dolosa, em sua forma fundamental, continuou na competência dos Juizados Criminais.
Percebe-se que até aquele momento, na ótica do legislador, nenhuma medida surtira efeito contra o agressor familiar ou doméstico.
Por último, sobreveio a Lei Maria da Penha apresentando modificações de cunho penal, processual penal e familiar que minimizarão ou ao menos reduzirão a impunidade e o destemor do agressor que grassa nos lares nacionais.
Como o legislador se convenceu que a fórmula adotada pela Lei 9.099/95 desatendia aos propósitos de redução dos altos índices de violência familiar e doméstica contra a mulher fez opção pelo seu total ou quase total banimento.
Infelizmente, ver-se-á que o rito procedimental adotado foi mal escolhido.
Diversos doutrinadores têm pugnado pela inconstitucionalidade do termo mulher no atual diploma, uma vez que afrontaria o princípio da isonomia a proteção exclusiva da mulher, constitucionalmente assegurado. Não seria admissível uma lei voltar-se somente para a tutela do gênero feminino.
Seria inconstitucional a lei em comento?
Entendemos que não.
O gênero feminino precisa de proteção, assim como as minorias que exigem cotas nas universidades, os homossexuais que buscam a igualdade com os heterossexuais.
O Direito Penal de Gênero considera as relações de dominação entre os sexos, dando azo á constatação de que as mulheres vêm sendo historicamente vitimizadas pela opressão masculina que se desenvolve das mais variadas formas e em diversos aspectos, sendo a violência física e sexual apenas algumas de suas manifestações.
Para nós, não há supervalorização do sexo feminino. Como pelo menos 30% das mulheres brasileiras são vítimas de violência doméstica, justifica-se essa "discriminação positiva", ensejando paulatinamente, após o reconhecimento de uma igualdade formal, uma igualdade material entre os sexos com melhor equilíbrio social, intelectual, econômico, educacional etc.
A lei foi publicada no dia 08 de agosto de 2.006 e por expressa disposição de seu art. 46, tem uma vacatio legis de 45 dias. Assim, a vigência do diploma se deu no dia 22 de setembro de 2.006.
Os principais mecanismos oferecidos pela Lei de tutela á mulher no campo penal e processual penal são os seguintes: a) dá nova redação ao § 9º do art. 129 do CP modificando a pena que passa a ser de 3 meses a 3 anos e cria uma agravante genérica ao CP (arts. 43 e 44); b) autoriza a prisão preventiva e modifica a Lei de Execuções Penais (arts. 20, 42 e 45); c) veda a incidência da Lei 9099/95 (art. 41); d) cria medidas protetivas de urgência para o agressor e para a ofendida (arts. 22 e 23); e) autoriza a criação em cada Estado dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher através de Lei Estadual (art. 14). Crítica. Melhor seria Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, pois se foi afastada a incidência da Lei dos Juizados (9099/95), foi por entender que os Juizados Criminais não atendem ás perspectivas de redução da violência contra a mulher. Ora, a manutenção do vocábulo Juizado mostra, no mínimo, contra-senso e incoerência técnica.
5.1 - PROCESSO E JULGAMENTO
Durante a vacatio legis - 08/08/06 a 21/09/06 - as infrações contra a mulher, em regra, permaneceram na esfera dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9099/95) com todos os benefícios nela previstos - conciliação civil de danos, transação penal, representação nos crimes de lesão corporal e suspensão condicional do processo.
Pós vacatio legis: A lei está vigendo desde 22 de setembro. Agora, os processos serão processados e julgados pelas Varas Criminais, consoante rito dos crimes apenados com detenção (CPP, arts. 538/540). Por ter sido banida a Lei 9099/95, questiona-se: todos os institutos referidos no parágrafo anterior igualmente ficam sem aplicabilidade? A nosso ver sim, com exceção do instituto da representação no crime de lesão corporal dolosa, cujo entendimento será esboçado adiante.
5.2 - VARAS CRIMINAIS. Antes da instalação das Varas especializadas - Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher - passam as Varas Criminais a ter competência cumulativa - cível e criminal - na solução dos conflitos oriundos de violência doméstica (art. 33). Em face da competência cumulativa, caberá aos juízes criminais exercer o poder geral de cautela na hipótese de concessão de medida protetiva (art. 22 e ss).
Consigne-se que a concessão de qualquer medida assinalada neste diploma, por exemplo, afastamento do homem do lar conjugal, esgota a jurisdição penal - têm natureza satisfativa -, malgrado possa haver necessidade de revisão da medida imposta, substituição ou imposição de outra(s).
A seleção da justiça comum em lugar dos Juizados Criminais, modelo de justiça consensual que tem sido, mostra-se um retrocesso. Cremos que o legislador tomou este rumo não por falta de opção, mas por ser pobre em criatividade. Dentro da ritualística processual atual duas vertentes genéricas existem - Lei 9099/95 e Código de Processo Penal. Como entendeu que a mulher vítima de violência doméstica ficou sem tutela alguma diante dos institutos da Lei 9099/95, somente vislumbrou o Código de Processo Penal, com suas deficiências e mazelas. Menos mal nos Estados que possuem Delegacias de Defesa da Mulher, como São Paulo, que têm desempenhado papel de inegável valor no atendimento ás mulheres vítimas de crimes sexuais. Certamente, permanecerão á testa de tão importante atribuição e desempenharão com lisura, desvelo e respeito á pessoa humana o acompanhamento de cada caso que surgir.
5.2.1 - Crítica ao paradoxo. A vanguarda e o retrógrado. O legislador poderia ter mostrado vanguardismo e fecundidade, criando um novo procedimento ou até valendo-se de ritos especiais mais recentes em detrimento do rito preconizado pelo revelho Código de Processo Penal. A manutenção de procedimento superado contrasta com tantos avanços em favor da mulher. Perdeu-se, mais uma vez, grande oportunidade de propiciar aos operadores do direito em sua completude alterações legislativas harmonizadas com os dias atuais em que se anseia por um Poder Judiciário mais célere e dinâmico na prestação jurisdicional.
5.3 - DIREITO DE PREFERÊNCIA (art. 33, parágrafo único). Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o processo e o julgamento das causas referidas no caput, á semelhança de réus presos.
É inquestionável que o magistrado criminal deverá sopesar com razoabilidade os direitos fundamentais sub judice e atuar com senso aguçado. é que os processos de réus presos, igualmente, hão de receber tratamento preferencial, porquanto a liberdade é um dos bens maiores a se resguardar - por exemplo, a medida satisfativa solucionou a querela relativa á violência familiar e doméstica e afastou a urgência.
5.4 - COMPETÊNCIA RECURSAL. Da rejeição da denúncia, caberá o recurso em sentido estrito. Da sentença de mérito caberá apelação. Os dois recursos serão endereçados ao Tribunal de Justiça estadual.
Importante novidade deriva da concessão, revisão ou substituição de uma das medidas protetivas de urgência. Qual o recurso que a parte poderá manejar? A lei previu. Aquela que se sentir prejudicada impetrará agravo de instrumento, na forma do CPC, dirigido a uma das Câmaras do Tribunal de Justiça. Torna-se aparentemente esdrúxula a hipótese, no entanto é o que se extrai do art. 22, § 4º, da Lei 11.340/06, verbis: Aplica-se ás hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos parágrafos 5º e 6º do artigo 461 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil). E, para integral compreensão da mens legis, a redação do art. 461 e seus parágrafos é a seguinte:
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