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"todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, ás próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito á intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público á informação"
Essa exposição permite controle do exercício da função jurisdicional e, por conseguinte, possibilita uma maior proteção aos interesses individuais.
Ocorre que, transposta essa mesma situação para um órgão colegiado, como o júri e as turmas dos tribunais, a decisão destas instituições quanto á prisão das pessoas é tomada por simples maioria, conforme art. 488, art. 615, caput e art. 644, parágrafo único, todos do Código de Processo Penal:
"Art.
488. As decisões do júri serão tomadas por maioria de votos.
[...]
Art. 615. O tribunal decidirá por maioria de votos.
[...]
Art. 664. [...]
Parágrafo único. A decisão será tomada por maioria de votos...".
Porém, teriam estas disposições amparo na Constituição?
Em primeiro lugar, não consta no texto constitucional dispositivo que preveja de forma expressa sobre a forma como devem ser tomadas as decisões dos colegiados acerca da aplicabilidade da prisão, embora, em diversos artigos, sobre outras questões, haja tal regulamentação (47; 52, inc. XI; 53, § 2.º e §3.º; 55, §2; 57, §6.º, inc. II; 60, III; 66, §4.º; 67; 69; 77, §2.º e § 3.º; 93, VIII, X; 97; 101, par. único; 103-B, §2.º; 104, parágrafo único; 111-A; 128, §1.º, §2.º, §4.º, §5.º, I, B; 130-A; 136, §4.º; 137, parágrafo único; 155, §2.º, IV; 155, §2.º, V, a e b; 167, III).
Nesses dispositivos, pode-se verificar que, mesmo para questões menos relevantes, chega a ser exigida maioria absoluta, razão pela qual, para justificar uma prisão, parece-nos que uma interpretação sistemática leva á conclusão de que a maioria simples não seria suficiente para privar uma pessoa de sua liberdade.
Vale ressaltar que, mesmo em caso de prisão em flagrante, o indivíduo só permanecerá preso se não estiver autorizada a liberdade provisória (art. 5.º LXVI), justamente em obediência aos princípios do devido processo legal (art. 5.º, inc. LIV) e da presunção de não-culpabilidade (art. 5.º, LVII).
Poderíamos aqui questionar: o fato de o juiz singular ter autorização constitucional para decidir sobre a prisão não justificaria o colegiado decidir por maioria?
Dito de outra forma: se um único juiz pode decidir, o colegiado teria legitimidade na medida em que haveria mais de um pronunciando-se no sentido do cabimento da prisão.
Porém, ao mesmo tempo em que a Constituição permitiu ao juiz singular que decidisse sobre o assunto, também previu a possibilidade de revisão desta decisão por órgão colegiados.
Mesmo que para determinada decisão não caiba recurso, se ela violar o direito de locomoção, poderá ser atacada por habeas corpus.
Enfim, de qualquer forma a prisão será analisada por tribunal.
Também deve ser afastada eventual assertiva de que o inciso XV do art. 5.º estaria a autorizar a lei a definir o número de votos em um colegiado para que se restrinja a liberdade.
Esse inciso apenas permite certas restrições ao direito de liberdade, em favor de interesses maiores da coletividade. Mas não se pode dele deduzir que a análise da configuração das hipóteses de aplicação destas restrições possa ser tão flexível a ponto de afrontar os limites da própria liberdade.
Dito de outra forma: conquanto a lei possa definir situações em que se pode privar a liberdade das pessoas (ex.: definição de crimes), disso não decorre que a apreciação dos casos concretos fique a cargo de mera maioria simples de órgãos colegiados.
Ora, não estando claro na Constituição qual o número de integrantes do colegiado e qual o número de votos necessários para decidir pela prisão, ao elaborar as leis para reger tais definições, deve-se dar a máxima efetividade á cláusula constitucional da liberdade humana, o que só pode ser feito exigindo-se unanimidade para votações que envolvam sua privação.
Se a Constituição determina que a autoridade judiciária poderá decidir sobre a prisão, o conceito de decisão de autoridade, quando se tratar de colegiado, deve ser o mais benéfico para o réu.
Além disso, da mesma forma que quando um magistrado singular tem dúvida, ele deve decidir em favor do réu, quando o colegiado não tem certeza, sua decisão também não pode prejudicar o indivíduo.
Não se pode negar a similitude existente entre a dúvida do juiz singular e a não-unanimidade do colegiado.
Vale ressaltar que nos julgamentos feitos pelos colegiados, notadamente pelas turmas dos tribunais formadas por três membros, verificamos decisões proferidas por maioria de dois contra um.
Nesse caso, além de a decisão do Tribunal apresentar apenas um voto a mais do que a decisão de primeiro grau, ainda há um fator que deixa, pelo menos, uma certa dúvida quanto a seu acerto: o voto vencido.
Será que os juízes ou mesmo os jurados vencidos não têm razão? Será que estão errados?
Há pouco tempo, presenciamos acirradas discussões sobre a possibilidade ou não de se suspender a punibilidade pelo parcelamento de débito nos crimes contra a ordem tributária.
Disso resultou gritante ofensa á isonomia, na medida em que pessoas em situações idênticas eram tratadas de forma diversa, implicando a prisão de algumas e a liberdade de outras.
Até mesmo no colendo Supremo Tribunal Federal presenciamos constantemente acirradas discussões jurídicas que culminam em julgados por maioria, muitas vezes desfavoráveis ao réu.
Como exemplo:
Progressão de Regime e Crime Hediondo
A Turma indeferiu, por maioria, habeas corpus em que se pretendia a progressão de regime aplicado a condenado pela prática de latrocínio, haja vista a omissão do advérbio "integralmente" na sentença condenatória. Inicialmente, também por maioria, rejeitou-se a proposta formulada pelo Min. Gilmar Mendes, acompanhada pelo Min. Joaquim Barbosa, no sentido de sobrestar o feito até o julgamento, pelo Plenário, do HC 82959/SP " no qual se discute a constitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, que veda a possibilidade de progressão do regime de cumprimento da pena nos crimes hediondos definidos no art. 1º da mesma Lei. Em seguida, considerou-se que o referido dispositivo ainda é constitucional, tendo em conta que este Tribunal ainda não reviu o seu entendimento quanto á hediondez. Assim, nos termos da jurisprudência do STF, a menção feita ao §1º do art. 2º da Lei 8.072/90 basta para legitimar o cumprimento da pena em regime integralmente fechado, desde que se trate de delito hediondo ou a ele equiparado. Vencido o Min. Gilmar Mendes que deferia o writ.
HC 85692/RJ, rel. Min. Celso de Mello, 12.4.2005. (HC-85692) Informativo STF 383.
Direito de Recorrer em Liberdade - 2
A Turma concluiu julgamento de habeas corpus em que se requeria a nulidade de despacho que, em sede de apelação, determinara a expedição de mandado de prisão contra o paciente, sob alegação de que a sentença condenatória de primeiro grau, da qual não recorrera a acusação, assegurara-lhe o direito de recorrer em liberdade até o trânsito em julgado da condenação " v. Informativo 336. Por maioria, indeferiu-se o writ ao fundamento de ser possível ao tribunal de justiça revisar o momento da expedição do mandado de prisão, mesmo com sentença de primeiro grau estabelecendo segregação depois do trânsito em julgado, ainda que o Ministério Público não tenha recorrido desse ponto. Vencidos, em parte, os Ministros Carlos Velloso, relator, e Gilmar Mendes que o deferiam para assegurar ao paciente o direito de aguardar em liberdade até o trânsito em julgado da sentença condenatória.
HC 83500/PB, rel. orig. Min. Carlos Velloso, rel. p/ acórdão, Min. Nelson Jobim, 12.4.2005. (HC-83500) Informativo STF 383.
Das decisões por maioria que impõe a prisão ressuma que esta decorre de simples entendimento pessoal e não da lei.
Mas é inadmissível que a liberdade de uma pessoa dependa da idiossincrasia de outrem.
Por isso, novamente vem ao caso o princípio favor rei:
o favor rei deve constituir um princípio inspirador da interpretação. Isto significa que, nos casos em que não for possível uma interpretação unívoca, mas se conclua pela possibilidade de duas interpretações antagônicas de uma norma legal (antinomia interpretativa), a obrigação é escolher a interpretação mais favorável ao réu.
GIUSEPPE BETTIOL. Instituições de direito processual penal. [Trad. Miguel da Costa Trindade], Coimbra: Coimbra, 1974, p.296 apud FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO. Processo penal. v.1. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.71).
Conforme visto nessa citação, BETTIOL faz referência a interpretações antagônicas, mas não diz o número de séqüitos de cada uma delas.
Assim, quando dizemos que voto de liberdade, aliado ao princípio favor rei, deve ter poder de veto ao entendimento pela privação do status libertatis, isso representa nosso entendimento apenas. Não podemos dar um alcance ás palavras do autor, sem que conheçamos sua posição.
Independentemente do número de votos em favor da prisão em um julgamento, um único voto em favor da liberdade deve prevalecer, na medida em que representa uma interpretação válida e emitida por pessoa com autoridade.
Não se alegue que exigir unanimidade irá dificultar a prisão, pois o que importa é a prisão correta e não a prisão fácil.
Ora. Como foi dito, a regra é a liberdade.
Não pensamos nos delinqüentes, mas sim nos inocentes.
Muito já se disse ser preferível dez culpados libertados do que um inocente condenado.
Sendo certo que a maioria das pessoas não é criminosa, a exigência de unanimidade não pode ser atacada por favorecer o aumento da criminalidade.
Aliás, não negamos que a exigência de unanimidade de julgamento, embora possa dar maior garantia a um inocente, pode levar á absolvição do culpado.
Nesse sentido:
A symmetric Bayesian Nash equilibrium exists for any decision rule and any jury size. Under unanimity,the probability that an innocent is convicted converges to zero as the jury size grows to infinity,but the probability to acquit the guilty converges to one. Thus, protecting the innocent comes at the prize of acquitting the guilty. Moreover, the probability of a convicted defendant being innocent converges to zero. Under any nonunanimous rule, which is defined as a fraction of voters required to convict the defendant, the probability to convict the innocent as well as the probability to acquit the guilty converge to zero.
(kerstin gerling, hans peter grüner, alexandra kiel and elisabeth schulte, "information acquisition and decision making in committees:a survey" e uro p e a n c e n t r a l b a nk working paper series, working paper no.256, set 2003, pp.21/1. < http://www.ecb.int/pub/pdf/scpwps/ecbwp256.pdf >)
[Um equilíbrio simétrico Nash Bayesiano existe para qualquer regra de decisão e qualquer tamanho de júri. Sob unanimidade, a probabilidade de um inocente ser culpado converge para zero na medida em que o tamanho do júri aumenta para o infinito, mas a probabilidade de inocentar o culpado converge para um. Assim, proteger o inocente tem como preço absolver o culpado. Além disso, a probabilidade de um réu condenado ser inocente converge para zero. Sob qualquer regra de não-unanimidade, que é definida como uma fração de votos requeridos para condenar o réu, a probabilidade de condenar um inocente assim como a probabilidade de absolver um culpado converge para zero.] [tradução livre]
Seja como for, utilizando o direito comparado, encontramos decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos que considerou inconstitucional a lei da Louisiana pelo fato de esta permitir decisão por maioria no júri:
"The Supreme Court visited the issue of jury size and unanimity one final time in 1979. In Burch v Louisiana, the Court found Louisiana's law that allowed criminal convictions on 5 to 1 votes by a six-person jury violated the Sixth Amendment right, incorporated through the Fourteenth Amendment, of defendants to a trial by jury. If a jury is to be as small as six, the Court said, the verdict has to be unanimous."
(LINDER, Doug. Exploring Constitutional Law. University of Missouri-Kansas City Law School. disponível em:<http://www.law.umkc.edu/faculty/projects/ftrials/conlaw/jurysize.html> acesso em 15 mar. 2005.)
[A Suprema Corte analisou a questão do tamanho do júri e da unanimidade uma última vez em 1979. Em Burch versus Louisiana, a Corte decidiu que a lei da Louisiana que permitia condenações por maioria de 5 votos contra um em júris formados por 6 pessoas violava o direito garantido pela Sexta Emenda, incorporada pela Emenda 14, de o réu ser submetido a julgamento pelo júri. Se um júri é formado por apenas 6 membros, disse a Corte, o veredicto deve ser unânime.][tradução livre]
E a Constituição dos Estados Unidos, da mesma forma que a brasileira, não esclarece se o julgamento pelo júri deve ser por unanimidade ou não.
Atualmente, na maioria dos estados federados americados é exigida unanimidade:
O direito de ser julgado em um tribunal aberto, por um júri formado por seus pares -- em outras palavras, por cidadãos comuns. Nos Estados Unidos, os veredictos em julgamentos criminais exigem unanimidade no veredicto do júri, na maioria das jurisdições, e ao contrário do que ocorre em outros países com sistemas de júri, tanto a acusação quanto a defesa tem o direito, até certo ponto, de eliminar jurados que, na sua percepção, não seriam justos.
(E. Osborne Ayscue, Jr. "as principais distinções no sistema dos tribunais dos estados unidos". disponível em:
< http://usinfo.state.gov/journals/itdhr/0999/ijdp/ayscue.htm > acesso em 15 mar. 2005.)
Ainda que nossos tribunais não aceitem a interpretação ora proposta, o que para nós é quase certo, então que esse artigo valha como sugestão para eventual alteração da legislação processual.
Obviamente que só o fato de exigir a unanimidade não irá garantir a ausência de erros de julgamento, mas irá dar maior garantia aos indivíduos.
Autor:
Leandro Sarai
lsarai[arroba]adv.oabsp.org.br
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