"A palavra, contudo, tem a finalidade de fazer entender o que é útil ou prejudicial, e, consequentemente, o que é justo e o injusto."(Aristóteles)
Chaïm Perelman1 , fundador da Retórica moderna, em seu livro "ética e Direito"2 , mais especificamente em sua primeira parte, debruçou-se sobre a análise do conceito de "justiça", nos ofertando, ainda, outras considerações de ordem moral, sempre conectadas com a próprio Direito, enquanto ciência social.
Na própria apresentação da obra de Perelman, "ética e Direito", Alaim Lempereur já alerta que "(...) Sua originalidade se deve, em grande parte, á vontade incessante de reabilitar a vida do direito e de torná-lo o fundamento de sua atividade..."3
A preocupação perelmaniana com o Direito era tamanha, que durante o transcorrer de toda sua narrativa, na obra acima citada, o mesmo, de forma invariável, se vale de exemplos corriqueiros observados nos tribunais e nos escritórios de advocacia.
Tal postura, digamos menos formal, do ponto de vista da linguagem filosófica, árida e, por vezes, intranspugnável, demonstra, apenas, que Perelman punha em prática sua própria teoria de argumentação jurídica, ampliando os horizontes de seu próprio auditório particular, a ser formado, não só por filósofos, mas também por juristas.4
O capítulo I, da supra-mencionada obra, agora estudado tão somente em parte, surgiu de um artigo escrito por Perelman, "Da Justiça", em 1945, publicado na coleção das "Actualités Sociales" do Instituto de Sociologia Solvay da Universidade Livre de Bruxelas.
Neste ensaio Perelman prestigia, do legado aristótelico, aspectos até então pouco estudados pelos demais filósofos, a saber, o modo dialético de raciocínio jusfilósofico, como um saber necessário, sério e passível de controle, já que portador de regras próprias.
Perelman, em 1947, com a colaboração de Lucie Olbrechts-Tyteca, reabilita e reconstrói, de forma pioneira, aquilo que Aristóteles alcunhava de "técnica retórica", de origem sofística, nos idos do século V a.C., e que Platão combatia de forma ardorosa, lhe conferindo o mero status de "arte da persuasão".
O filósofo belga toma como ponto de partida a análise do "Code Napoleon" e seu raciocínio jurídico, como operação dedutiva, partindo de premissas positivas, tidas como "primum verum", vale dizer, necessárias e dogmáticas ("indiscutíveis", no vulgo do senso comum).
Perelman perquire se tal método lógico-dedutivo, portanto, axiomático, seria capaz de explicar como se operaria a interferência dos juízos de valor do aplicador da norma. Noutras palavras, Perelman se viu na obrigação de examinar se existiria ou não uma racionalidade jurídica nas decisões judiciais.
Na parte final deste opúsculo, há um tratamento quanto á resposta dada pelo filósofo de Bruxelas á tal crucial questão, que ele mesmo chamou de "justiça formal"; noção assumidamente positivista (é de se lembrar a contemporaneidade da obra de Perelman com a de Hans Kelsen, ainda que o segundo lhe tenha antecedido em sua teoria), pela qual o justo se traduziria em dispensar tratamento igual a situações que se revelam, no essencial, semelhantes.5
Em suma, para Perelman, "justiça", em sua acepção meramente formal, era sinônimo de "igualdade". é bem verdade que, em seus estudos posteriores, especialmente sobre a "Nova Retórica"6 , o mesmo apontou a importância de não se criar uma concepção absolutista da justiça, que, segundo o mesmo, há de ser desenvolvida a partir de uma argumentação racional, prudente; e calcada no senso comum e no consenso.
Chaïm Perelman, ao iniciar sua análise sobre o que seja "justiça", ainda assim preso a um resquício do modo de pensar lógico-formal, alerta ao leitor menos avisado, que não se busca o mesmo atingir uma definição completa e definitiva de justiça, expressão por demais prestigiosa e emotiva.
O jusfilósofo belga, no particular, já demonstra a evidente dificuldade que existe em se aferir, de uma maneira universal, uma noção abstrata, apotídica (aqui, entendida sob uma perspectiva silogística-axiomática) acerca de um "valor", tal qual é a justiça.
é impossível se desvendar uma definição única de tal vocábulo, extremamente polissêmico, e que, a depender das palavras utilizadas em sua definição, pode soar, na verdade, extremamente injusto ou não, a depender da própria íntima convicção de cada pessoa.
A ressonância emotiva da "Justiça" (grafada com inicial maiúscula, por indicação do próprio autor) já nos revela o profundo respeito, e porque não se dizer temor, que Perelman tem, quando se vê diante de supostos conceitos objetivos de "Justiça".
A plurivocidade da expressão suso-mencionada há de ser considerada em todos os seus sentidos possíveis, pena de se perder o próprio sentido do conteúdo da palavra, em apreço á um suposto rigor formal de linguagem.
No particular, Perelman, retomando os ensinamentos de Max Weber, assaca severas críticas ao modo de pensar lógico-dedutivo, que deita raízes na Grécia Antiga7 , e que foi reinserido no contexto iluminista por René Descartes8 e Emmanuel Kant.
Segundo o mestre de Bruxelas, é errôneo se fundamentar em deduções sólidas inferíveis de definições arbitrárias e imparciais. Assevera, Perelman, que:
"(...) Se os lógicos admitem a natureza arbitrária das definições, é porque elas não constituem, para eles, senão uma operação que permite substituir um grupo de símbolos conhecidos por um símbolo novo, mais curto e de manejo mais fácil do que o grupo de signos que o define (...)"9
Perelman aduz que o raciocínio lógico-arbitrário pode nos levar ao que o próprio denomina de "definição dupla", ou seja, uma noção com dois sentidos distintos, e sem comprovação de que tais se coincidam.
Nesse sentido, coteje-se esta assertiva com um exemplo dado por Aristóteles, em "ética á Nicômaco"10 , no qual o mesmo, testificando a ambigüidade dos vocábulos "justiça" e "injustiça", exemplifica com o uso da palavra "kleis", que tanto pode significar a clavícula de um animal como aquilo que se tranca uma porta. Do mesmo modo, Perelman não vê distinção entre razoabilidade e proporcionalidade, e. g.
O exemplo acima citado, sendo "razoável" e "proporcional" a mesma coisa, apenas reafirma, nos esclarecimentos perelmanianos, que todas as vezes que se visa definir uma noção, que não represente um signo novo, mas que já preexista na linguagem, com toda uma carga particularmente emotiva, não se trata de uma ação arbitrária ou indiferente, aos moldes kantianos.
Pelo contrário, é puro ato de vontade, carregado de desejos e paixões singulares, portanto, dialético.
Perelman entabula, destarte, a comumente conhecida "coloração afetiva das definições", a qual se liga á um juízo essencialmente sintético, porém nunca analítico. Para ele, só existe juízo analítico-arbitrário, na medida em que nenhuma coloração emocional se vincula ao termo definido.11
é pela carga de emotividade aplicada na busca em torno de um consenso sobre dada definição de um conceito, que se distinguem a filosofia da ciência. Daí porque os conceitos científicos, com fuste em métodos experimentais ou analíticos, o que não ocorre na seara filosófica, intrinsecamente valorativa, são menos perenes, porque circunstanciados, e deixam de ser aplicados, se não mais servirem ou conseguirem ser provados.
No particular, a explicação dada por Perelman nos aparenta, rogata maxima venia, contraditória, já que, com base nessa colocação, os conceitos filosóficos também teriam pouca densidade temporal, porque imiscuídos por idéias valorativas, logo humanas, portanto mutáveis; e aí, ao invés de se afastar, se aproximariam dos conceitos puramente científicos.
Tal justifica a dificuldade que têm as "ciências do espírito", noção difundida pioneiramente entre os alemães por Wilhelm Dilthey, segundo nos informa Gadamer12 , em se constituírem e consolidarem, enquanto tais.
Perelman, palmilhando essas idéias, acaba por delimitar o objeto da filosofia, como sendo justamente o estudo dessas noções extremamente valorativas, por assim dizer "prestigiosas", e que nos levam á uma situação irracional, ou ao menos, confusa.
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