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O processo criminal brasileiro e o ônus da prova: análise feita a partir da doutrina de Afrânio Silv (página 2)

Sidio Rosa de Mesquita Júnior

Inicia o autor dizendo que a doutrina tem um discurso de aceitação do princípio in dubio pro reo, mas o nega implicitamente quando aborda o tema relativo ao ônus da prova, eis que entende que tal princípio se inverte quando se exige da acusação provar apenas os elementos descritivos e normativos do delito. Para tal doutrina, segundo ele, o dolo e a negligência integram a culpabilidade, sendo que provar as excludentes e exculpantes do crime seria atribuição do réu.[13]

Com razão, Afrânio Silva Jardim critica a concepção doutrinária dominante, construída no sentido de que o fato típico constitui indício de ilicitude e estando a primeira provada pela acusação, ao réu incumbe prova a excludente da ilicitude. Para tal doutrina, o mesmo raciocínio se aplica ás causas exculpantes, ou seja, a inocorrência do crime por ausência de culpabilidade seria um múnus do réu. Infelizmente, a jurisprudência acompanha tal doutrina.

O autor propõe: a) integral aplicação do princípio in dubio pro reo; b) a regra do art. 156 do CPP deve ser interpretada de forma conciliatoria com tal princípio; c) o abandono do conceito analítico de crime porque a solução do problema é primeiramente de ordem processual.[14]

Considero coerentes as proposições de afrânio Silva Jardim, no sentido de que se exige acusação genérica da acusação, delimitada apenas pelo art. 41 do CPP, requisitando dela a demonstração da ocorrência do fato típico (tomando-se a tipicidade em seu aspecto objetivo e subjetivo - dolo), ilicitude e culpabilidade.[15] Aqui, devo dizer que alerto meus alunos para o equívoco da jurisprudência, consolidada no sentido de que a denúncia deve narrar apenas os elementos objetivos do fato e os indícios de autoria. Para mim, essa idéia de que o fato típico induz, iuris tantum, á ilicitude, leva, in concreto, á inversão do ônus da prova.

Nesse ponto, basilar é a posição do autor, in verbis:

"Assim, não nos parece cientificamente correto resolver a questão do ônus da prova na ação penal condenatória na dependência do que, neste ou naquele caso, foi alegado pela acusação ou pela defesa. Repita-se: a defesa não manifesta uma verdadeira pretensão, mas apenas pode se opor á pretensão punitiva do autor. Urge, destarte, tratar o problema do ônus da prova dentro de um sistema lógico, em termos genéricos e não casuisticamente".[16]

O autor insiste na tese de ser todo ônus da prova da acusação. A busca da verdade real, harmonizada com o art. 156, segunda parte, do CPP, deve ser compatibilizada com o art. 386, inc. VI, do mesmo código, respeitando-se ao princípio in dubio pro reo.

4. MINHAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O TEXTO

A síntese exposta evidencia o acerto daqueles que vêem em Afrânio Silva Jardim um dos mais significativos nomes do Direito Processual pátrio. Ele, Procurador de Justiça do MPRJ, defende posição que não satisfaz aos anseios daqueles que desejam manter a possibilidade de continuar propondo ações criminais espúrias, sob o manto de estar, na fase da denúncia, amparado pelo princípio in dubio pro societate.

Interessante é a posição de Gustavo Henrique e Righi Badaró, no sentido de que o réu, diante do princípio in dubio pro reo, jamais poderá ser prejudicado pela existência de dúvida relevante.[17] Assim, como o papel instrutório do Juiz é supletivo, não há, no processual judicial, adoção do princípio inquisitivo. Espera-se que o Juiz não se veja como autorizado a ser um inquisidor, mas com poderes para dirimir dúvidas relevantes, cotejando-os com o princípio in dubio pro reo.

 Em sentido vulgar, inquisição está relacionada com o tribunal eclesiástico criado para punir os crimes contra a fé católica. Por incrível que pareça, De Plácido e Silva, pouco acrescenta a esse sentido.[18] Correta está a proposta de Afrânio Silva Jardim, no sentido de que o CPP não adota sistema inquisitivo apenas porque permite ao Juiz a produção de provas para dirimir dúvidas relevantes.

Correta é a proposição de Heráclito Mossin, assim desenvolvida:

           "o sistema inquisitório apresenta as seguintes características: (a) o julgamento é feito por magistrado ou juiz permanente, que sempre é um funcionário do rei ou autoridade subordinada ao poder governamental; (b) o Juiz tem a tarefa de acusar, defender e julgar, sempre se sobrepondo á pessoa do acusado; (c) a acusação, que sempre é ex officio, permite que a denúncia seja feita de forma secreta; (d) o procedimento é escrito, secreto e não admite o contraditório e, consequentemente, a ampla defesa; (e) o julgamento é feito com base na prova tarifada; (f) a regra era a prisão preventiva do réu; (g) a decisão jamais transita formalmente em julgado, podendo o processo ser reaberto a qualquer tempo".

        É exagerada a posição de alguns autores que pretendem ver no sistema pátrio um sistema inquisitivo puro. Por isso, não posso concordar com Aury Lopes Jr., que assim expõe: "fica fácil perceber que o processo penal brasileiro é inquisitório, do início ao fim".[19]

           Não é a eventual mitigação da iniciativa das partes (princípio dispositivo) a responsável pelo surgimento "ex lege" de um Juiz acusador, próprio do sistema inquisitivo. O interesse público maior, mesmo na processualidade cível, depõe contra o Juiz inerte, refém da vontade, muitas vezes delituosa, das partes.

           Imagine-se que pais venais pretendam vender um filho para estrangeiros de péssima estrutura familiar e que, ao lado do adquirente, simulem negócio jurídico lícito. O mesmo se pode dizer de crime cuja única testemunha possa ser manipulada pelo pagamento feito pelo réu, o que torna imperiosa a necessidade de buscar outros meios probatórios que sujeitem a versão dos autos a um nível maior de certeza.

           Li atentamente a obra de José Osterno, sendo que sua leitura reforçou minha posição, construída no sentido de que a verdade é assunto complicado, mas é certo de que o processo é péssimo caminho para buscar alcançá-la.[20] Pior será de engessarmos a posição do Juiz, a ponto de fazermos valer espúrias vontades individuais, em detrimento do interesse público.

           Aury Lopes Jr. comete erro primário ao pretender dizer que o processo criminal brasileiro é essencialmente inquisitório. Na lei e na Constituição Federal não é assim. Aliás, conforme ele próprio expõe,[21] no sistema inquisitório: "confundem-se as atividades do Juiz e acusador".[22]

           O Juiz imparcial é um mito. Também, "no processo penal, a verdade real ou material, antes de ser um dogma, é um mito".[23] Porém, não podemos perder critérios seguros que permitam decisões, no mínimo, calcadas em métodos científicos e razoáveis.

           Ao meu sentir, daquilo que pude extrair, coerente é a posição de Eugênio Pacelli, compatível com a de Afrânio Silva Jardim, no sentido de "o processo penal brasileiro como um modelo de natureza acusatória, tanto em relação ás fundamentações de investigação quanto ás funções de acusação, e, por fim, quanto áquelas de julgamento".[24] Por isso, concordo com Afrânio e José Osterno, no sentido de que a atividade probatória é um ônus exclusivo da acusação, o que não impede a minha conclusão, no sentido de ser possível deferir poderes instrutórios supletivos ao Juiz.

           Finalmente, não poderia deixar de citar o grande Luigi Ferrajoli, o qual aduz a admissão do sistema acusatório no Direito Processual italiano, pelo qual o ônus da prova incumbe á parte, salvo em algumas exceções. Na Itália, a inatividade da acusação impede a produção de provas pelo Juiz.[25] Esse raciocínio é o que defendo, ou seja, o Juiz não pode substituir a acusação ou a defesa. Sua atuação investigativa é supletiva.

 

 

Autor:

Sidio Rosa de Mesquita Júnior

sidiojunior[arroba]terra.com.br

Telefone: 61-8418.0964

www.sidio.pro.br


[1] Texto produzido Sidio Rosa de Mesquita Júnior, iniciado ás 3h, de 13.5.2008. Tem por base a doutrina de JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal: revista e atualizada. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2.003. p. 199-214.

[2] JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal: revista e atualizada. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2.003. p. 199/200.

[3] Ibidem p. 200.

[4] Ibidem. p. 201. Ele cita Ruy Barbosa para dizer que "se o indivíduo degenerado, a repudia [refere-se á liberdade], a comunhão, vigilante a reivindica". Ao contrário da maioria dos juristas pátrios, não vejo grande mérito jurídico em Ruy Barbosa. Sua posição, ao meu sentir, está equivocada, visto que a liberdade é disponível. Como exemplo da minha posição, apresento a clausura de certos clérigos e de muitos outros que dispõem aceitavelmente da liberdade.

[5] Ibidem.

[6] Ibidem. p. 202.

[7] Ibidem.

[8] HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano. São Paulo: Escala, [2.000?]. passim. O filósofo que tirou Kant do "Sonho do dogmatismo" dizia que não conseguimos expor os fatos, mas aquilo que extraímos deles.

[9] JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal: revista e atualizada. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2.003. p. 203.

[10] Ibidem. p. 204.

[11] Ibidem. p. 205.

[12] Ibidem.

[13] Ibidem. p. 206.

[14] Ibidem p. 208.

[15] Ibidem. p. 209.

[16] Ibidem. p. 212.

[17] HENRIQUE, Gutavo; BADARÓ, Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 240.

[18] SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2.002. p. 436.

[19] LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade constitucional. ed. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2006. p. 182.

[20] ARAÚJO, José Osterno Campos de. Verdade processual penal. Curitiba: Juruá, 2.007. passim.

[21] Observe-se que o autor reproduz significativa parte do seu livro anteriormente mencionado, isso em outra obra: LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2.008.

[22] Ibidem. p. 61.

[23] ARAÚJO, José Osterno Campos de. Verdade processual penal. Curitiba: Juruá, 2.007. p. 155.

[24] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2.008. p. 11-12.

[25] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.002. p. 591.



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