Como psiquiatra titulado pela Associação Brasileira de Psiquiatria em prova de títulos e de conhecimentos teóricos; como psiquiatra forense, aprovado pelo Depto. de Psiquiatria Legal da Associação Brasileira de Psiquiatria, em prova de títulos e de conhecimentos teóricos nesta super-especialidade; qualificado em primeiro lugar em concurso nacional de contribuições científicas desta especialidade no ano de 2001; com 13 capítulos de livros e 5 artigos científicos publicados após 2000, sendo um em revista científica internacional - www.geocities.com/sanderfridman - venho oferecer algumas ponderações oportunas sobre caso que se impôs recentemente na mídia, e que foi tão eloquentemente debatido neste mesmo espaço pelo eminente jurista, juiz de Direito do Foro da Comarca de Jaguarão, Ilmo. Dr. Luiz Fernando Boller.
Inevitável encher-nos de admiração pelo notável esforço conduzido pelo referido magistrado. Além de dominar profundamente a árdua conceitologia jurídica, amparada nos princípios e na doutrina, jurisprudência e história, lingüística e semântica; além de dominar as capacidades necessárias articular bizarros textos legais, servis aos interesses dos poderosos de ocasião, com contrato social maior, em torno do qual os constituintes brasileiros fundaram o atual projeto de sociedade. Tudo isso atravessado pela sempre cambiante processualística, que dita que não será justa a justiça cuja prestação não se informa adequadamente. Do topo deste hercúleo trabalho de aprendizado, atualização, e auto-desenvolvimento constante, freqüentemente impossível de ser idealmente conduzido, ainda mais numa vara não-especializada, não se furtou o ilustre magistrado de enfrentar um universo de ciência, vizinho ao seu - o das perícias psiquiátrico-forenses."é o caso - por exemplo - da prisão de algum estilista detido em flagrante por tentar furtar vasos em cemitérios, ou de algum rabino preso em flagrante por furto de gravatas em lojas de grifes famosas, devendo ser afastado o argumento de que estava acometido por descontrole emocional ou alterações no comportamento," conclui o eminente jurista, não sem antes haver expressado sua convicção de que, nestes casos, perícias nem deverão ser solicitadas, por faltar-lhes indício que as sustente.
É de se elogiar tal despreendimento, que demonstra o quanto é capaz de valorizar as fontes científicas indispensáveis para que o bom magistrado possa proceder seu julgamento. Em nosso breve capítulo "Medicina e Direito: Introdução ao projeto sócio-jurídico", demonstramos a estranha forma como se articulam as ciências em geral, e a medicina em particular, no estabelecimento dos limites e prescrições legais impostas aos cidadãos - por meio das leis, e, principalmente, por sua aplicação jurídica. Este entendimento bem demonstra o ilustre juiz da comarca do interior catarinense, de que ao direito cabe a compreensão mais ou menos exata dos pesos e valores em questão, dos remédios legais, inclusive os penais, que se aplicam a cada hipotético caso. Mas que, para a definição própria de cada caso em questão, de suas características factuais, não apresenta o direito as soluções, as técnicas, as habilidades ou os conhecimentos. Derivam estes das mais variadas ciências, dominadas e disponibilizadas, no processo de informação do juizo, pelas ciências periciais - através de engenheiros, "bombeiro" (encanador), peritos criminais (criminalística), assistentes sociais, médicos, e tantos outros - cujo papel é apresentar ao juízo os elementos necessários á compreensão dos fatos tal como ocorreram, para que, dados os fatos, possa o juíz sobre eles fazer incidir a lei.
Daí a urgência de se investir nas polícias científicas em todos os lugares onde eventualmente se conheça do exercício contumaz de execuções sumárias por parte de forças policiais, em resposta á sistemática frustração em obter a condenação de réus sabidamente culpados, quando bem defendidos, diante das contumazes deficiências probatórias.
Daí também a sumamente elogiável atitude do meritíssimo juiz de Jaguarão, ao reconhecer que não lhe seria possível julgar o papel da doença mental de um réu em um ato de tipo criminoso qualquer que seja, sem que para isso tenha de lançar mão dos conhecimentos, técnicas, arte e sabedoria imanentes de um campo científico que não é o seu - a psiquiatria, mais ainda, a psiquiatria forense - tal como demonstra em sua extensa tentativa de teorizar sobre a Cleptomania, e depois de concluir, com base neste estudo, sobre os direitos que assistem, e especialmente que não assistem aos réus.
De fato, sobre isto, assim se expressa Crocce e Crocce Jr (apud Moraes e Fridman, 2005): "requer a juspsiquiatria de seus professadores toda uma gama de estudos específicos, técnica apropriada e treino intensivo para o correto desempenho do honroso mister de, louvado pelo juiz, lavrar laudo de exame de sanidade mental referente ao r[eu, pois nenhum médico não-psiquiatra, por maior que seja sua nomeada científica e o saber das formalidades jurídicas pertinentes á função pericial, estará apto a fazê-lo, abarregado no papel de juspsiquiatra, posto que tal esdrúxulo comportamento, só por si, torna o documento médico judiciário inidôneo." Ou seja, atestam Crocce e Crocce Jr, o longo caminho para um parecer psiquiátrico forense merecer a alcunha da idoneidade: uma formação médica completa, uma especialização psiquiátrica completa, e, por fim, experiência e conhecimentos comprovados nas práticas super-especializadas da psiquiatria forense. Esta é igualmente a posição do Dpto de Psiquiatria Legal da ABP..
E somente aí é que nos apercebemos da grandiosidade do gesto despreendido de nosso eminente jurisprudente, de ir em busca das melhores fontes que pôde encontrar, examiná-las, criticá-las, louvar-se em seu próprio e pessoal julgamento, mesmo que em ciência que, de outro modo, lhe seria extensamente estranha, e, por fim, expor publica e destemidamente suas conclusões muito pessoais. Salta assim, por sua própria conta, por meio de sua estupenda capacidade intelectual, por sobre a necessidade de produzir perguntas ao perito, tal como reza a tradição processual: ele mesmo as responde! Dispensável caracterizar a imensa relevância ética e moral de seu gesto, o enorme esforço e investimento pessoal que nele se encerra, a elogiável economia de passos processuais conquistada. Poupa-nos dos dilemas sobre a necessidade ontológica, ou não, de se instituir a o direito ao contraditório, a exemplo do caso civil, também na prática pericial penal, ainda mais quando os bens por estes ameaçados são de tão mais elevado valor - a honra e a liberdade.4 Se todos os magistrados tivessem a disposição deste verdadeiro exemplo, até mesmo estas tão ecoadas questões calar-se-iam em favor da tão aclamada celeridade processual.
Permita-me humildemente, nosso ilustre jurista, uma breve ponderação de menor importância, de ordem tão somente técnica, talvez até "semântica", com a qual sua extensa revisão no campo da psiquiatria forense não lhe terá, talvez, permitido concordar, mas que possivelmente, por meio dos caminhos do Imponderável, possa, ainda assim, vir a adquirir alguma relevância jurídica, mesmo que, por certo, não mais do que meramente teórica:
1. A Cleptomania é uma, e não a única, desordem mental capaz de conduzir um indivíduo a um tal estado de incapacidade de se determinar, de evitar um ato impulsivo que afronta sua própria moral, e, contra o qual, os remédios penais não terão qualquer efeito preventivo (pela ameaça) ou reabilitador.(pelo castigo).5 "Outra condição que pode estar ligada á cleptomania é o chamado transtorno de personalidade anti-social", jamais poderá, a Cleptomania, coincidir com a sociopatia, posto que é parte dos critérios mínimos para o diagnóstico daquela que esta seja cabalmente descartada.
3. Por outro lado, momentânea ou prolongadamente, entre as condições psiquiátricas capazes de tolher completamente a capacidade de um indivíduo para atribuir o devido valor aos atos, e a determinar-se de acordo com esta atribuição, incluem-se os quadros maníacos e os de intoxicação por substâncias, ilegais e, muito mais comumentemente, as legais. Indivíduos nestas condições deverão ser considerados, no Brasil, inimputáveis (art. 26, Código Penal), determinando a justiça nestes casos seu apropriado tratamento (art. 96, Código Penal), restituídos os bens e/ou indenizados os danos (arts. 928, 929, 930 do Código Civil), responsabilizados, neste ato, a quem de direito.
4. Os quadros maníacos caracterizam-se, entre outros, por intenso comprometimento do sono, que, entretanto, não causará sensação de cansaço, nem repercutirá em seu ânimo. Variados são os sintomas diagnósticos da Mania, mas que aqui não vêm ao caso. Vale, entretanto, aos propósitos in foco, explicitar que a Mania poderá tornar uma pessoa excessivamente "otimista", tomada de uma convicção de que os receios que habitualmente freiam outras pessoas - fundamento preventivo da cominação penal - não se aplicariam a si mesma, em particular, que os riscos penais não se aplicam ao seu caso. Pessoas neste quadro poderão estar persuadidas pela doença de que têm um merecimento descomunal, que certos atos, que a pessoa reconhece que seriam errados como regra, não o seriam em seu caso - por razões íntimas ou por razões sociais de natureza delirante.
5. Distingue-se esta atitude daquela idêntica do sociopata, por meio do conjunto dos sintomas que acompanham esta e não aquela, e que acompanham aquela e não esta desordem mental. Além disso, enquanto aquela patologia incide igualmente sobre pessoas moralmente orientadas ou não, esta não incidirá sobre pessoas moralmente orientadas. Maníacos poderão mais facilmente apresentar em sua história relatos da assumção desinteressada de riscos pessoais, em contextos de defesa de bens morais elevados - o que não se relatará, via de regra, na história de pessoas portadoras de um transtorno de personalidade anti-social.
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