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Da experiência mental sem consciência – Ou o problema mente/corpo para lá da consciência de acesso e (página 2)

André Barata

Com isto, penso ficarem clarificadas as razões por que a implicação (1), consagrada por Brentano, não pode ser aceite. A este propósito, afirma Putnam:

Alguns filósofos saltaram, no passado, deste tipo de consideração para o que tomaram por uma prova de que a mente é de natureza essencialmente não-física. O argumento é simples (…). Nenhum objecto físico pode, em si mesmo, referir-se mais a uma coisa do que a outra; não obstante, os pensamentos na mente têm obviamente êxito ao referir-se a uma coisa em vez de outra. Então os pensamentos (e por isso a mente) são de natureza essencialmente diferente dos objectos físicos. Os pensamentos têm a característica da intencionalidade - podem referir-se a outra coisa; nada de físico tem «intencionalidade», salvo quando essa intencionalidade é derivada de algum emprego dessa coisa física pela mente. Ou assim é pretendido. Isto é demasiado apressado: postular simplesmente poderes misteriosos da mente não resolve nada. Mas o problema é muito real. Como são possíveis a intencionalidade, a referência?[3]

Não é inapropriado, em jeito de nota, lembrar também as teses de Donald Davidson de que as sensações não são crenças, apenas causam-nas, ou seja, que entre a experiência sensorial de uma mente - por exemplo, a visual - e as suas crenças há apenas uma relação causal, não podendo aquela ser entendida como um intermediário epistémico entre a realidade e as nossas crenças acerca dessa mesma realidade. Tais teses convergem, tal como as de Putnam, ainda que a partir de pontos de vista distintos, para uma desimplicação de intencionalidade, representabilidade ou significabilidade relativamente á pura experiência sensorial de uma mente.

Ainda no que respeita a (1) - e mesmo relativamente a (2) - existem manifestas demarcações no contexto da tradição fenomenológica. Logo com Heidegger, a intencionalidade é entendida como uma noção derivada e não originariamente requerida pelo que, na linguagem do autor de Ser e Tempo, se diz como «vir á presença». Mais tarde, com a descrição de uma «existência sem existente», também Levinas leva o esforço fenomenológico - e é ainda disso que se trata - aonde não há vivências intencionais, mas onde há, não obstante, vivências. Trata-se de fenomenologia porque se trata de experiência; simplesmente não de experiência intencional. Noutras palavras, não se trata de experiência de alguma coisa, mas de simples experiência. Em Totalité et Infini, Levinas expõe o ponto com toda a clareza que a sua linguagem permite:

A relação com o infinito não pode, certamente, dizer-se em termos de existência (…). Mas, se a experiência significa precisamente a relação com o absolutamente outro, (…) a relação com o infinito realiza a experiência por excelência.[4]

Um outro fenomenólogo bastante atento á necessidade de desimplicar a intencionalidade quer da mente quer da consciência é Michel Henry. Sob a forma de um inquérito, este fenomenólogo contrapõe ao «ver da intencionalidade» um outro registo de «revelação»:

A intencionalidade que tudo revela, como se revela a si mesma? Ao dirigir-se sobre si mesma não estaremos perante uma nova intencionalidade? Não se reduzirá, então, a questão a esta última? A fenomenologia poderá escapar ao amargo destino da filosofia clássica da consciência arrastada numa regressão sem fim, obrigada a pôr uma segunda consciência por detrás da que conhece - no caso uma segunda intencionalidade por detrás desta que se quer arrancar á noite? Ou então, haverá um outro modo de revelação que não o fazer ver da intencionalidade - uma revelação cuja fenomenalidade não seria mais a da «exterioridade» deste ante plano de luz que é o mundo?[5]

Resumindo, diferentes vias de argumentação, mesmo sob tradições disciplinares distintas, evidenciam não haver necessariamente intencionalidade pelo facto de ocorrer mentalidade. Neste sentido, não se afigura sustentável o critério de Brentano. Mas, há igualmente bons argumentos que tornam pelo menos discutível a ideia de que a mente consciente implique intencionalidade.

Consciência sem intencionalidade

Se a consciência fosse necessária ou intrinsecamente intencional, como pretende a fenomenologia original de Husserl, ter-se-ia então que poderiam ocorrer estados mentais que, por não serem intencionais, não fossem conscientes.[6] Seria o caso dos qualia, admitindo que não sejam intencionais, ou então, das imagens mentais e pensamentos de que Putnam fala em "Brains in a Vat". Porém, se a consciência não implicar intencionalidade, ao arrepio da posição husserliana de que a consciência é sempre consciência de algo, não será por aqui que se poderá garantir a existência de estados mentais não conscientes. Ou seja: a intencionalidade não servirá de critério para distinguir o mental do consciente.

Ora, que a consciência não implica intencionalidade, e que com isso fica explícito um critério possível para distinguir o mental do consciente, vê-lo-emos em seguida com Ned Block e David Chalmers, autores que, não sem algumas diferenças, defendem a existência de uma consciência não intencional. Denominam-na «consciência fenomenal» em contraste com a «consciência psicológica», no dizer de Chalmers, e com a «consciência de acesso», no dizer de Block. Daqui segue-se a rejeição de (2). Com efeito, algo ser fenomenalmente consciente não implica ser intencionalmente consciente. Block resume o ponto da seguinte forma:

P-consciência é experiência. Propriedades P-conscientes são propriedades experienciais. Estados P-conscientes são estados experienciais, i.e, um estado é P-consciente se possui propriedades experienciais. A totalidade das propriedades experienciais de um estado são "como é que é" tê-lo. Passando dos sinónimos aos exemplos, temos estados P-conscientes quando vemos, ouvimos, cheiramos, provamos, e temos dores. As propriedades P-conscientes incluem as propriedades experienciais das sensações, sentimentos e percepções, mas também incluiria os pensamentos, os desejos e as emoções. (...) Tomo as propriedades P-conscientes como sendo distintas de qualquer propriedade cognitiva, intencional ou funcional. (Cognitiva = envolvendo essencialmente pensamento; propriedades intencionais = propriedades em virtudes das quais uma representação ou estado é acerca de alguma coisa; propriedades funcionais = e.g., propriedades definíveis em termos de uma programa de computador).[7]

As aludidas diferenças entre Block e Chalmers reportam-se sobretudo ás relações entre as duas espécies de consciência. Enquanto Block admite, pelo menos conceptualmente, a possibilidade de uma A-consciência sem P-consciência e vice-versa, Chalmers sustenta, através do que denomina «Princípios de coerência», uma dupla implicação entre consciousness (entendida como o lado fenoménico da consciência) e awareness (entendida como o seu lado intencional). Por esta razão, embora Chalmers, tal como Block, desimplique a intencionalidade da consciência fenomenal, não deixa, ainda assim, de sustentar uma posição vizinha da da fenomenologia husserliana. Com efeito, ainda que a consciência fenomenal não seja em si mesma intencional, só poderá haver consciência fenomenal havendo consciência intencional. Neste ponto em particular, inclinamo-nos para a posição de Block. E por duas razões. Primeiramente, a possibilidade de ocorrência de consciência fenomenal sem consciência de acesso (ou de consciousness without awareness) parece ser perfeitamente atestável em experiências qualitativas sem qualquer objecto intencional. Por exemplo, quando se deixa de prestar atenção a um objecto, mas á maneira como é vivenciado. Em segundo lugar, a possibilidade de ocorrência de consciência de acesso sem consciência fenomenal (ou de awareness without consciousness) resulta bastante evidenciada nos casos habitualmente designados como casos de Blindsight.

Direcções de investigação do problema mente/corpo

A demarcação da mentalidade face áquilo que diz respeito á intencionalidade, por mão de Putnam, torna possível enfrentar o problema mente/corpo independentemente do problema da intencionalidade (ainda que fosse precisamente este último o problema que realmente interessava Putnam em Reason, Truth and History). Digamos assim: Putnam bifurcou um problema em dois, e seguiu por uma das vias bifurcadas, a saber, a que se preocupa com entender o que é a intencionalidade. Para o presente, o que nos interessa é seguir pela outra via bifurcada, a saber, a que se preocupa com entender o que é a experiência mental.

Mas já por outro lado, com Chalmers e Block, a desimplicação de intencionalidade na consciência fenomenal conduziu a uma especificação do problema mente/corpo, a saber, a sua formulação como um problema duro (hard problem). A sua "dureza" prende-se com uma resistência a qualquer forma de tratamento, pois as estratégias de naturalização da intencionalidade - estratégias, aliás, bastante bem sucedidas -, bem como as abordagens funcionalistas á mente e o programa da IA deixam de ser, pelo menos tanto quanto parece, aplicáveis.

Contudo, e uma vez mais, o que se obtém é sobretudo uma bifurcação de um problema em dois - de um lado, o problema da intencionalidade (problema que, como vimos, interessava particularmente Putnam em "Brains in a Vat") e, do outro, o problema da consciência fenomenal e dos celebérrimos qualia. Não obstante, o facto de o problema da mente não se encontrar na via que nos leva aos problemas em torno da intencionalidade não significa que tenha de se encontrar na via que nos leva aos problemas em torno da consciência fenomenal e dos qualia. é claro que foi essa suposição que conduziu muitos autores, especialmente os qualiófilos, a julgarem que seria aí que se deparariam real e seriamente com o problema mente/corpo, o dito problema "duro" para que já Thomas Nagel apontava com o seu "What it is to be like a bat?". No entanto, a meu ver, tal como não seria, para esses autores, na intencionalidade que se deveria enfrentar o problema mente/corpo, também não será no âmbito de uma consciência fenomenal que ele poderá ser tratado. E isto porque julgo haver boa evidência contra a terceira e derradeira implicação (3).

Dito por outras palavras, não será tanto no debate, entre qualiófilos e qualiófobos, quanto á existência, ou não, de qualia, ou quanto ao seu alegado carácter não intencional, que se jogará o essencial do problema mente/corpo quando se pode evidenciar a existência de estados mentais que não são nem intencionais nem conscientes.

Experiência mental sem intencionalidade nem consciência

Mas - perguntar-se-á - pode haver uma experiência mental sem intencionalidade nem consciência? Fará algum sentido adjectivar como mental e entender como experiência algo que não disponha nem de intencionalidade nem de consciência?

Há, a meu ver, fortes e variadas razões para responder afirmativamente a estas questões. Começo com uma razão muito simples, assente na História natural das espécies animais. Seria muito pouco crível sustentar a ideia de que, por exemplo, uma mosca, artrópode dotado de receptores sensíveis, não disponha de experiência sensível; e, no entanto, seria igualmente pouco crível sustentar a ideia de que, por isso ou por qualquer outra via, as moscas dispusessem de uma consciência. Contra a primeira ideia, contam argumentos como o simples facto de haver receptores sensíveis; o facto de, apesar das diferenças, serem em muitos aspectos mais semelhantes aos receptores sensíveis dos humanos; o facto de moscas e humanos pertencerem á mesma árvore evolutiva, não obstante a distância dos ramos em que se situam. Aliás, filogeneticamente, é muito mais razoável sustentar que as espécies animais começaram por ter experiência mental e só depois experiência mental consciente. Contra a segunda ideia, contam argumentos como o facto de as respostas da mosca, ao contrário das respostas conscientes, serem necessariamente automáticas; ou o facto (embora não acessível aos nossos olhos) de as moscas não possuírem capacidade de introspecção.

Mesmo que se resista a este tipo de argumentos, é ainda possível encontrar outros na investigação de cariz não filosófico. No quadro da investigação neurobiológica da consciência de António Damásio, em O Sentimento de Si (The Feeling of What Happens), encontra-se a exposição de informação empírica no sentido de mostrar que o estado de vigília de uma mente não implica necessariamente o que o autor denomina "consciência nuclear". Essa informação decorre da observação de patologias, através do que o autor classifica como um "método de lesões", que tem a vantagem óbvia de permitir «(...)a investigação de mentes e comportamentos alterados, assim como a investigação de regiões de disfunção cerebral anatomicamente identificáveis»[8].

Ora, entre as diferentes disfunções tematizadas (sobretudo automatismo epiléptico e mutismo acinético), interessa-nos a descrição do caso de um estado avançado de Alzheimer que ilustra claramente a necessidade de discernir entre o material sensorial experienciado em estado de vigília e o seu acesso perceptivo consciente, ou, dito de outro modo, as seguintes três condições: i) que há uma actualidade mental não percepcionada; ii) que essa actualidade é ainda experiência mental; iii) que essa experiência actual mental não é consciente. O momento decisivo da descrição de Damásio é o seguinte:

Contemplou longamente, mas nada pareceu ver. Em momento algum manifestou ou estabeleceu qualquer relação entre o retrato e o seu modelo bem vivo, sentado quase na sua frente, a uma distância de pouco mais de um metro. (…) O dobrar e desdobrar da fotografia aconteciam com regularidade, desde os primeiros tempos de desenvolvimento da doença, quando ele ainda tinha a noção de que qualquer coisa de estranho se estava a passar. Dobrar e desdobrar esta fotografia talvez tivessem sido para ele uma tentativa desesperada de se agarrar a uma certeza antiga. Agora era apenas um ritual inconsciente, executado sempre com a mesma lentidão, no mesmo silêncio e com a mesma ausência de ressonância afectiva.[9]

Com isto e em termos gerais, o que Damásio procura propor é que não existe nenhuma implicação entre vigília e consciência - Nos sonhos, há consciência sem vigília; noutras circunstâncias, evidenciáveis em casos patológicos como o relatado, há vigília sem consciência. Se assumirmos que todos estes estados são, apesar das suas privações, por assim dizer, estados mentais, então há, obviamente, que distinguir neles alguns que são sem consciência nem intencionalidade.

Retomando uma argumentação mais filosófica - entenda-se, uma argumentação a priori - e menos patológica, faça-se uma breve fenomenologia da distracção. Por exemplo, olhe eu para uma paisagem, buganvílias digamos. As suas pequenas flores mascaram-se sob o manto vermelho de flores fingidas. Reflicta eu sobre o fingimento das folhas - como podem? - e, nisto, esqueça-me do olhar que nelas demorei. Vejo-as por certo, mas que consciência ainda as alcança? Não as percepciono, só me ficam as sensações. E ficam-me sem que eu fique com elas, pois eu já estou noutro lado. Ora, esse ver sem consciência é ainda experiência mental. é experiência visual sem intencionalidade (como Putnam já mostrara); mas, além disso, também sem consciência.

Outra breve fenomenologia, agora da sonolência, também dá indicação de experiência mental sem intencionalidade nem consciência. Neste caso, há uma progressiva incapacidade de fazer percepção e tomar consciência do que se passa ao redor a partir da experiência sensorial, incapacidade que nomeamos como "torpor", "dormência", "modorra" (tudo sinónimos de "sonolência"), e que, no entanto, não afecta o ver que nos entra pelos olhos adentro, enquanto estes se mantiverem abertos e houver luz que os atinja. Mais uma vez, o que se tem é uma experiência visual sem intencionalidade nem consciência.

Uma nova direcção de investigação do problema mente/corpo: naturalizar a experiência mental

Das três desimplicações acima propostas, segue-se como consequência a necessidade de distinguir na amálgama de problemas ligados ao reputado problema mente/corpo uma teoria da intencionalidade, uma teoria da consciência e uma teoria da experiência mental, sucedendo que apenas esta última é imprescindível a uma teoria da mente. Se se tratasse de pensar num lema, poder-se-ia dar-lhe a seguinte formulação: O que é, ou parece, excepcional na mente humana não lhe é essencial.

A partir do momento em que se admite a argumentação de Putnam contra a ideia de que a intencionalidade esteja implicada no mental, então não é claro em que termos a mentalidade pudesse ser definida representacionalmente como pretendeu, por exemplo, Fred Dretske ao afirmar que a mente é o lado representacional do cérebro. Seguramente, também será isso, mas não é essencial que o seja - e esse é o ponto. Naturalmente, dar conta de tudo o que é a mente humana implicará, forçosamente, prestar atenção aos aspectos representacionais nela envolvidos. Não é isso que está em causa, mas tão-só esses aspectos não serem essenciais para a determinação do que é uma mente, contrariamente ao posicionamento de Dretske e de outros defensores das teorias representacionalistas da mente.[10]

Por outro lado, a partir do momento em que se admite que a inexistência de intencionalidade e de consciência não implica não haver experiência mental, então também deixa de ser sustentável que o problema duro do problema mente/corpo esteja realmente na consciência fenomenal. Esta é seguramente importante na mente humana; contudo, não lhe é essencial. António Damásio, neste ponto, é clarificador pela maneira como discerne entre consciência e mente.[11]

Se apenas uma teoria da experiência mental é essencial para o problema mente/corpo, declinando-se, assim, a pertinência quer de uma teoria da intencionalidade quer mesmo de uma teoria da consciência, então o que programaticamente deverá estar em causa na investigação de tal problema será uma naturalização da experiência mental, e não uma naturalização da intencionalidade, sequer da consciência. Em contrapartida, qualquer sucesso que se venha a obter quanto a saber o que é a experiência mental, e como é ela possível de um ponto de vista naturalista[12], não implica nenhuma clarificação quanto ao que seja, ou possa ser, a consciência. Aliás, daqui segue-se uma rejeição de que correlações neurais da experiência visual possam ilustrar o que seja um correlato neural de consciência.

Naturalmente, se a desimplicação de consciência na experiência mental recoloca o problema mente/corpo em termos independentes da consciência por um lado, já por outro também obriga a recolocar o problema da consciência. Não o enfrentaremos agora, mas se fizer sentido uma teoria experiencial da consciência, ou seja, uma teoria de acordo com a qual uma descrição da consciência seja reconduzível a uma descrição assente em termos experienciais, então o problema da consciência não encontrará ao nível neural uma resposta directa. Em vez disso, ter-se-á uma estratégia de dois passos: em primeiro lugar, uma descrição da consciência em termos experienciais; em segundo lugar, uma naturalização da experiência mental. Portanto, admitindo os pontos de vista expostos, tentativas de naturalização directa da consciência através do estabelecimento de correlatos neurais da experiência sensorial falharão forçosamente o alvo, ainda que estejam no caminho certo, por assim dizer, no que se espera quanto a uma teoria da experiência mental. O importante, nisto, é só não serem suscitadas falsas expectativas através de uma insistente confusão entre mentalidade e consciência.

Das três desimplicações atrás propostas e da dissociação entre mentalidade e consciência levada a cabo, muito especialmente a propósito da experiência sensorial, resulta não só uma recolocação do problema mente/corpo e do problema da consciência, como se procurou mostrar, mas igualmente, e de forma particularmente incisiva, uma inflexão em alguns dos mais importantes debates acerca da natureza do processo perceptivo e do estatuto dos perceptíveis. Ocupar-nos-emos em seguida desta inflexão, procurando dar conta da sua eficácia quer na resolução de debates como o do sensorialismo versus perceptualismo ou o do realismo ingénuo versus representacionalismo quer para a formulação de uma teoria da alucinação mais satisfatória. Procuraremos, finalmente, matizar a impressão de que a inflexão proposta seja de tal modo contra-intutiva que não faça sentido sustentá-la.

A experiência mental não consciente no debate sensorialismo/perceptualismo

é moeda corrente de um certo senso-comum filosófico a ideia de que a percepção é necessariamente percepção do visível, ou do audível, ou do táctil, etc. Fala-se, em consequência, de percepção visual, de percepção auditiva, etc., mas também de percepção interna e de propriocepção, como percepção de diferentes tipos de perceptíveis - a percepção visual como percepção do que se dá de algum modo a ver, a auditiva como percepção do que se dá a ouvir, a propriocepção como percepção de estados do organismo, etc. A meu ver, há nisto qualquer coisa bastante errada. Por um lado, não encontro fundamento nesta discriminação de classes de perceptíveis; por outro - e é aqui que encontro a raiz do suposto erro - o sensorial e o perceptível não devem ser confundidos.

Fixemos a atenção na percepção visual, permitindo-nos depois generalizar para os restantes casos. Desde logo, a expressão «percepção visual» induz em erro ao fazer crer que o perceber visual é realmente um ver, que há uma homogeneidade, na dita percepção visual, entre o perceptível e o visível. A fenomenologia de Husserl cedo detectou que o que se tem é uma heterogeneidade entre a matéria hilética, impressionalidade sensorial, e o perceptível intencional. Simplesmente, notando isto, concede Husserl um privilégio difícil de sustentar á percepção, a saber, o de ser ela a dar a ver. é célebre a sua afirmação nas Investigações Lógicas de que não vemos cores, mas coisas coloridas, não ouvimos sons, mas uma canção. Qual é o erro que creio existir nesta afirmação? Não está na heterogeneidade assinalada, mas na sua inversão: aquilo que Husserl diz não ser visível só pode ser entendido como não sendo perceptível, pois realmente é visível; na verdade, é só mesmo visível. Desfazendo a inversão operada pelo fenomenólogo, obter-se-ia uma formulação como a que se propõe - em rigor, não vemos coisas coloridas, mas cores; não ouvimos a canção, mas sons.

é exactamente o mesmo erro que subjaz á disputa entre perceptualistas (entre os quais se inclui Husserl) e sensorialistas. Basicamente, a disputa reside em se determinar se o ver é exclusivamente perceptual - tese perceptualista - ou se não, havendo então espaço para o reconhecimento de um ver sensorial - tese sensorialista. A disputa teve por protagonistas mais recentes Christopher Peacocke (do lado do sensorialismo) e William Lycan (do lado do perceptualismo), estando ambas, a meu ver, certas no que respeita a pelo menos um aspecto do problema, mas ambas erradas no que respeita á tese de fundo - a de que a percepção dê a ver. Mostrar que a percepção nada dá a ver, essa é precisamente a inflexão que aqui se propõe.

Resumirei a polémica entre estes dois filósofos aos momentos cruciais para o meu ponto. Christopher Peacocke ataca o que designa por "tese da adequação" (Adequacy Thesis) - i.e, a tese que «declara que uma caracterização intrínseca completa de uma experiência pode ser dada embutindo dentro de um operador como "aparece visualmente ao sujeito que..." alguma complexa condição respeitando objectos físicos»[13]. De acordo com o autor, o perceptualismo extremado está comprometido com esta tese da adequação; por isso, apresenta três contra-exemplos que, a seu ver, a refutam e, assim, refutariam o excesso perceptualista. No entanto, como veremos, persevera na ideia de que o material sensorial é, enquanto tal, conscientemente acessível ao sujeito. Os contra-exemplos que Peacocke apresenta são os seguintes:

1.     Duas árvores são representadas como tendo o mesmo tamanho físico não obstante uma ocupar mais espaço do campo visual do que a outra. Assim, concluir-se-ia que o conteúdo perceptivo respeitaria ás árvores experienciadas com uma certa grandeza, uma mais próxima do que outra, etc., mas não respeitaria a outras propriedades da experiência como a relativa ao espaço ocupado por cada uma das árvores no campo visual.

2.     Da visão monocular para a visão binocular do mesmo estado de coisas a experiência é diferente. Assim, concluir-se-ia que as propriedades não representacionais podem variar apesar de o conteúdo representacional ser preservado.

3.     Um cubo feito com uma armação de arame pode ser alvo de percepções diferentes - ora com uma certa face á frente, ora com outra face á frente -, sem que isto acarrete qualquer mudança na disposição da armação de arame. Assim, concluir-se-ia que os conteúdos representacionais podem variar apesar de as propriedades não representacionais serem preservadas.

Na posição oposta, encontra-se William Lycan, autor que procura argumentar contra os três contra-exemplos de Peacocke. No essencial, de acordo com Lycan, tais exemplos falham porque as propriedades não representacionais que Peacocke julga neles identificar são na verdade ainda propriedades representacionais, conquanto de um nível diferente do dos objectos físicos quotidianos, como árvores, estradas, etc.[14] Por exemplo, a respeito do exemplo do cubo de arame, Lycan afirma que «(...) as duas experiências do cubo partilham algumas formas, arestas e linhas; e (…) todos esses itens são visualmente representados. Assim, há, ao fim e ao cabo, uma semelhança representacional subjacente ás experiências de ver-como aspectualmente diferentes.»[15]

Com esta "representação perceptiva estratificada" (Layered perceptual representation) Lycan julga poder identificar o material sensorial com um certo estrato da representação perceptiva, ressalvando, não obstante, a diferença face a outras camadas de representação perceptiva, designadamente, as relativas á percepção dos objectos físicos quotidianos. Ora, se Lycan tem razão, contra Peacocke, ao mostrar que o acesso consciente ao material sensorial se resolve sempre numa representação perceptiva - não devendo a estratificação obscurecer o facto de se tratar sempre de percepção -, falha, porém, aliás tanto quanto Peacocke, ao não distinguir o problema sobre o estatuto mental do material sensorial da questão do seu acesso consciente. é no reconhecimento de que há experiência visual não perceptiva que Peacocke, por seu turno, tem razão, contra Lycan; simplesmente, não é conscientemente acessível.

Consequências para uma teoria da percepção e da alucinação

A distinção entre consciência e mente, com a qual propomos ser possível solucionar o antagonismo entre sensorialismo e perceptualismo, permite, ainda em relação a uma teoria da percepção, opor uma objecção aos posicionamentos que defendem um realismo ingénuo no que respeita á correspondência entre as nossas representações mentais dadas pela percepção e o mundo, dito exterior, percepcionado. Para esse efeito, enfrentaremos o posicionamento de John Searle em Intencionalidade. Expõe aí o autor uma classificação das teorias da percepção em três tipos: a teoria representativa, o fenomenalismo e o realismo ingénuo. Procuremos, pois, discutir a opção de Searle por esta última, designadamente os argumentos com que exclui as duas primeiras teorias, de modo a clarificar qual o melhor enquadramento, não só para uma teoria da percepção, mas também para uma teoria da alucinação.

Ambas estas teorias [fenomenalismo e teoria representativa] diferem do realismo ingénuo por tratarem a experiência visual como sendo, ela própria, o objecto da percepção visual, privando-a, assim, da sua Intencionalidade. De acordo com elas, o que é visto é sempre, estritamente falando, uma experiência visual (em várias terminologias, a experiência visual tem sido chamada "sensação", "dado sensorial" ou "impressão"). São confrontados, portanto, com uma questão que não se coloca ao realista ingénuo: qual a relação entre os dados dos sentidos que vemos e o objecto material que, aparentemente, não vemos? Esta questão não se coloca ao realista ingénuo porque, de acordo com a sua explicação não vemos quaisquer dados dos sentidos. Vemos objectos materiais e outros objectos e estados de coisas no mundo, pelo menos na maior parte do tempo; e nos casos de alucinação, não vemos coisa alguma, embora tenhamos, de facto, experiências visuais em ambos os casos.[16]

Por esta longa citação, atesta-se que Searle começa por criticar o fenomenalismo e o representacionalismo por não distinguirem a experiência visual do objecto da percepção visual, o que estaria na base do facto de em ambas as teorias «o que é visto ser sempre, estritamente falando, uma experiência visual». Independentemente do que concluam o fenomenalismo e o representacionalismo, pelo menos tal como os apresenta Searle, não só não se segue uma indistinção entre experiência visual e objecto de percepção do facto de que só a experiência visual é real e efectivamente vista, como é desse mesmo facto que se impõe clara e distintamente a necessidade de distinguir experiência visual e objecto de percepção. Tratar-se-á, pois, de verificar um non sequitur na argumentação de Searle.

Em primeiro lugar, não parece credível, partindo de uma suposta invisibilidade de experiências visuais (sejam sensações, impressões ou dados sensoriais), o realista ingénuo poder concluir pela visibilidade de objectos materiais ou estados de coisas no mundo. Em segundo lugar, Searle antecipa a objecção mais previsível, da parte da teoria representacionalista, ao realismo ingénuo: ver um objecto intencional não significa ver um objecto material, pelo que o primeiro deve de algum modo representar o segundo. Só que Searle contesta a ideia de que haja uma tal relação entre um representante e um representado que se denomine "representação". Se o que vemos é um representante, então o que é representado é, por princípio, invisível, e nesses termos importaria saber como uma coisa visível pode estabelecer algum tipo de correspondência com o que permanece absolutamente invisível. Segundo Searle, esta é a enunciação de uma impossibilidade incontornável[17]. Logo, o representacionalismo seria insustentável e o realismo ingénuo a boa teoria. Contudo, não nos parece que tenha de ser exactamente assim, nem sequer aproximadamente. Na verdade, tratar-se-á precisamente de inverter a posição de Searle: um sujeito, em rigor, não estados de coisas do mundo nem objectos materiais ou intencionais, mas tão-só sensações; percepciona aqueles e só aqueles, mas tão-só enquanto veiculados pelo material sensorial que vê.

Com efeito, a "percepção visual" não acrescenta nada de visível á sensação. Daí, como se procurou evidenciar atrás, o pouco sentido que faz falar de percepção visual[18]. Se se diz que aprendemos a "ver", e que a sensação é o que menos importa no "ver", é porque o que importa não é exactamente o visível mas o invisível percepcionado. Logo, nunca esteve em causa na percepção um problema em torno da sua visibilidade, como pretende Searle, mas, bem diversamente, em torno da sua invisibilidade. E assim, não é o caso de que esteja em causa uma passagem do visível ao invisível, sequer o contrário. As sensações não se transformam em percepções. As sensações são só o suporte da transmissão da informação perceptivamente relevante. Ou ainda, por outras palavras: são causa de percepção, mas não são elas mesmas perceptíveis.

Independentemente do valor das razões que nos levam a inverter a posição de Searle, é possível demonstrar que a própria argumentação de Searle se revela, em si mesma, contraditória. Vejamos como. é evidente, a acreditar num mundo exterior com propriedades físicas identificáveis e, digamos, não enganadoras, que se temos a experiência visual de uma carrinha amarela (o exemplo é de Searle), então é porque essa experiência visual foi determinada por uma carrinha amarela. E isto significa pelo menos duas coisas: i) há uma experiência visual e há outra coisa que a determina; ii) a relação de determinação entre uma e outra deve ser de tal modo que a experiência visual represente objectivamente algo daquilo que a determinou, pois de outro modo não faria sentido que a experiência visual de uma carrinha amarela fosse determinada precisamente por uma carrinha amarela. Ora, admitindo ii) verificamos que a experiência visual é efectivamente um representante do objecto material[19], e admitindo i) verificamos que a experiência visual, ou seja, o propriamente experienciado não é da ordem do objecto material. Sendo assim, e admitindo finalmente que ter uma experiência visual é condição para que chegue a haver percepção, não há, pois, nenhuma razão que nos possa levar a concluir que o objecto percepcionado seja um objecto material. Pelo contrário, apenas á experiência visual compete ser "o veículo do conteúdo intencional", ao passo que o objecto material, além do seu papel causal, não dispõe de nenhuma outra função na percepção. é claro que o objecto percepcionado deve corresponder ao objecto material, mas daí não se segue que sejam ou possam, sequer, ser da mesma natureza.

Esta suposta identidade entre o objecto material e o objecto intencional - tese central do realismo ingénuo - mostra-se particularmente discutível quando Searle afirma que na alucinação nenhum objecto é visto, sequer um objecto simplesmente percepcionado. Segundo Searle, na alucinação apenas haveria experiência visual e nenhum objecto[20], o que se explicaria pelo facto de a identidade acarretar que a ausência do objecto material significasse a ausência do objecto percepcionado. Ora, este ponto de vista parece-nos obviamente discutível. Quem alucina alucina algo que não é redutível á simples experiência visual, alucina um objecto que, apesar de percepcionado, não é correspondido por nenhum objecto material. Logo, dificilmente Searle poderá sustentar sem contradição a tese da identidade. Uma alucinação só pode figurar, representar, significar; o que é alucinado, na alucinação visual, não é, pois, a experiência visual - que, por si, nada significa, representa ou figura - mas um objecto de percepção, forçosamente invisível. Portanto, se uma alucinação não figurasse, representasse ou significasse nada, então nada seria alucinado, não haveria alucinação. é D. Quixote que alucino, não uma experiência visual. Aliás, se as alucinações podem acontecer é precisamente por o alucinado não consistir em experiências visuais, mas em perceptíveis. Com efeito, os perceptíveis dependem de uma série de factores com sede na subjectividade e no processo cognitivo, ao passo que as experiências visuais estão para lá - ou melhor, aquém - das nossas capacidades, conscientes ou não, de discriminar, inferir ou conjecturar o que quer que seja. De certo modo, poder-se-á afirmar que a experiência visual (bem como toda a experiência sensorial), não obstante o seu carácter mental, participa mais da realidade do que do sentido que um sujeito pode extrair dessa realidade.[21] 

 Mesmo a ideia defendida por Fernando Gil, no seu Tratado da Evidência, de que a alucinação não é tanto uma percepção sem objecto, mas que, antes, será a própria percepção uma alucinação com objecto, é uma ideia que avizinha o perceptível e o alucinável. Ora, a ideia agora em causa em mais não consiste do que aprofundar essa vizinhança - se, por um lado, o regime da percepção é um regime alucinatório, por outro lado, tem-se que o alucinável mais não pode ser do que um perceptível.

Conclusão: por uma experienciologia

Atrás procurei sustentar duas ideias. Em primeiro lugar, que existem experiências mentais que não são conscientes nem intencionais. Fenomenologias da distracção e da sonolência mostram-no indirectamente, e por vias diferentes, a propósito da experiência visual - a da distracção por um desvio da actividade da atenção, a da insónia pela ausência de tal actividade. Em ambas, é-se conduzido a admitir que há ver, ainda que não haja consciência desse ver.

Em segundo lugar, procurei sustentar a ideia de que a percepção não é da ordem do sensorial (entenda-se este como visual, auditivo, táctil, etc.). No essencial, o argumento exposto é este: se subtrair a percepção ao ver sensorial não subtrai nada de visível a este ver - facto fenomenologicamente evidenciável -, então acrescentar-lhe percepção também não lhe acrescenta nada de visível.

Aparentemente, este argumento apenas mostra que percepção e visibilidade são heterogéneas, ou seja que os perceptíveis não são visíveis e que, portanto, os visíveis não são objecto de percepção. Só que o que digo da percepção é extensível á própria consciência, pois não vejo como pudesse haver consciência que não fosse já de algum modo apercebimento, ainda que não intencional - isto, no caso de se entender «intencionalidade» como referência objectiva, ou seja, como propriedade de algo ser acerca de algo, acerca de um objecto, o que não se verifica em formas de consciência sem correlato objectivo e que tomo por formas de consciência fenomenal de qualia.

Portanto, os visíveis não só não são perceptíveis, como nem sequer são conscientes. Naturalmente, o que se diz da experiência visual é válido para toda a experiência sensorial. Quer isto dizer que a experiência sensorial não ser consciente não é uma possibilidade rara, resultado de patologias ou simples registos menos frequentes da atenção, nem sequer é um facto contingente como se se pudesse verificar também o contrário. Na verdade, é uma necessidade - nenhum visível, audível, táctil, etc. é consciente.

Custa, porém, aceitar que não haja nunca apercebimento do visível. Apetece perguntar: Como assim? Quando estou atento ao vermelho e ao verde, de uma flor e de uma planta, quando me deixo sensibilizar pela experiência, não estou consciente da experiência? Recusar tais evidências não será demasiado contra-intuitivo? Duas teses complementares suavizarão porventura a estranheza que pode suscitar recusar-se a possibilidade de um apercebimento do sensorial.

Primeiramente, recusar que haja consciência do sensorial, da experiência visual por exemplo, não significa recusar nem que haja uma experiência visual nem que haja uma concomitante consciência, ainda que não do ver propriamente dito. Pelo contrário, em condições normais de atenção, a vida mental envolve quer um fluxo experiencial de natureza sensorial, o qual não é, em si mesmo, apercebido, quer um fluxo de apercebimento consciente; portanto, dois contínuos mentais de actualidade. Para ilustrar esta tese, proponho uma analogia. Imagine-se dois filmes, duas películas, ambas a correr, uma sobre a outra. A primeira traz nela a impressão do ver; a segunda, sobre aquela, é transparente, absolutamente transparente. A dificuldade que de pronto se coloca é esta: Como sei que as películas são duas e não apenas uma? Imagine-se, em seguida, que entre os dois filmes há um intervalo de espaço, de tal forma que aqueles dois nunca cheguem a tocar-se. Então, a maneira mais simples de verificar que se trata de dois filmes sobrepostos, ainda que um seja invisível, consistirá em explorar o interstício, esse espaço impreenchível entre as duas películas, ou seja, entre a sensação e a consciência, entre o ver experienciado e o invisível apercebido, como que a surpreender a inconsciência pelo canto do olho. Bernardo Soares - já o referi em epígrafe - di-lo assim: «é entre a sensação e a consciência dela que se passam todas as grandes tragédias da minha vida»[22]. Na distracção, o filme invisível deixa de estar "atento" ao filme do ver; na sonolência, o filme invisível como que cessa, deixando inteiramente exposto o filme do ver - invisibilidade em excesso no caso da distracção, visibilidade em excesso no da sonolência. Por isso, a distracção pede estímulos para a corrigir, e a sonolência pede escuridão e silêncio para a satisfazer.

Em todo o caso, perguntar-se-á: Como se pode aceder ao ver? Simplesmente não se pode, porque aceder é já perceber - daí que, no caso da percepção, o perceptualismo esteja certo na crítica que faz ao sensorialismo. Então, como falar do visível se falar dele é como falar do que não pode ser acedido? A percepção em particular, mas também todo o acesso intencional, exemplificam uma possibilidade de atitude entre outras. E quanto ao visível e á experiência sensorial em geral, a atitude não pode ser de acesso ou de apercebimento. Donde que a pergunta «Como aceder ao visível?» seja irrespondível. Por causa do visível percebo algo, mas não porque o visível se torne perceptível. Por causa do visível sensibilizo-me, mas não porque o visível sensibilize, isto entendendo por «sensibilizar» tudo o que diga respeito aos qualia e á consciência fenomenal. Com efeito, nem os percepta nem os qualia acrescentam ou subtraem nada de visível ao visível, nada de sensorial ao sensorial - ambos são heterogéneos face ao visível em particular e ao sensorial em geral. E se ambos, entre si, se distinguem, uns como aquilo de que a consciência é acesso objectivo, os outros como relações qualitativas, a verdade é que ambos são da ordem do sentido invisível, o sentido que as coisas do mundo fazem para um sujeito: por um lado, coisas, objectos e entidades, ou tudo aquilo que a linguagem pode denotar semanticamente; por outro, relações qualitativas, ou tudo aquilo que a linguagem pode conotar e metaforizar semanticamente. Não é, pois, o caso que os qualia e a consciência fenomenal estejam mais ligados ao visível, ao audível, etc., do que a consciência intencional. Em suma, os qualia não são da ordem da experiência sensorial.

A segunda tese complementar é a de que a experiência sensorial, apesar de não consciente e inapercebível, não é inerte ou indiferente relativamente a um sujeito mental. A experiência estética, longe de valer como objecção a este ponto de vista, vem, se bem interpretada, dar razões a esta "inconsciência experiencial". Um exemplo pode ajudar a esclarecer o ponto. Ouça eu música que aprecie. Seja, pois, uma versão do Cry me a River. Não devo permitir que a atenção me distraia; há que evitar, para ouvir a música, pensamentos ou outros focos de atenção; há que não antecipar nada, não recordar nada, que interrompa o fluxo da audição, que me faça descolar, permitindo assim uma distância, uma diferença, entre o filme musical e eu próprio. Na realidade, todo o esforço, mais ou menos bem sucedido, está em não se ser mais do que esse filme auditivo, reprimindo, tanto quanto se consiga, o fluxo do apercebimento consciente. Consiste isto num esforço de atenção - estar atentamente distraído para que nada distraia a audição, o ouvir. Portanto, ouço mas não reconheço nada, ouço mas não me apercebo de nada, ouço e é tudo. Talvez me arrepie e talvez diga então «Mas isto é sentir!». Note-se, todavia, que também esse arrepio é como a música: experiência e só experiência; portanto, nem pensamento nem reconhecimento. Cada palavra cantada, um estremecimento; cada volteio do saxofone outra dor; e o baixo ressoando, etc. Visualmente, sucede o mesmo: há que evitar, por alguns instantes pelo menos, recordar, antecipar, pensar o que quer que seja, para que não suceda o sujeito descolar do ver de uma obra de arte plástica, para que não se reinstale a dominação pelo reconhecimento, pela antecipação e recordação. Por esta razão, um "empirismo radical", i.e., uma atenção á experiência aquém da consciência, seja intencional ou fenomenal, é sempre da ordem do estético. E o que este faz é inverter a ordem do ver - já não sou eu que vejo as coisas, são as coisas que me fazem vê-las. A experiência provocando experiência, a experiência experimentando-se: essa arriscaria, pode ser a essência da experiência estética. Distinguir-se-ia assim pelo poder de se continuar. E o que se diz aqui a partir do artístico não é menos válido se dito das pessoas, dos amigos, até do próprio sujeito, a saber, que só encaramos realmente a vida permitindo-nos provar radicalmente a experiência. O tédio da vida surge quando desta já só vemos o que esperamos ver. é nesta possibilidade de experiência sem dominação que se joga, pois, um autêntico regresso ás coisas, contra o tédio da vida. Em suma, não seriam o inapercebimento e a inconsciência capazes de diminuir a importância da experiência sensorial, quando é nela que se lança a própria experiência da vida, nem que seja por instantes.

Finalizando, a identificação de um registo da vida mental independente quer da consciência quer da intencionalidade abre todo um campo de estudos sobre a experiência mental - crucial para o problema mente/corpo, mas igualmente para o tratamento dos problemas da percepção e da alucinação, e ainda, de uma forma bastante relevante, para a tematização da experiência estética. Pela sua importância, e mesmo pela sua quase plena anulação na tradição de estudos da Filosofia da Mente, faz sentido sugerir que se consagre tal campo de estudo de uma forma disciplinar - uma experienciologia.

Bibliografia

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  • Soares, Bernardo (20013) O Livro do Desassossego (Edição de Richard Zenith). Lisboa: Assírio & Alvim.

 

 

André Barata

abarata[arroba]ubi.pt

Universidade da Beira Interior

Instituto de Filosofia Prática

URL: www.phi.no.sapo.pt

www.ifp.ubi.pt


[1] Cf. Putnam (1981).

[2] Note-se que para Putnam ser inteiramente consequente, nem sequer deveria aceitar designar por «imagem» a imagem mental, pois, por princípio, algo ser imagem implica ser imagem de alguma coisa, ou seja, representar, referir-se a algo, ser, em suma, provida de intencionalidade. Mas, se não é, intrinsecamente, imagem, não deixa, contudo, de ser mental. Por esta razão e para que o adjectivo «mental» não fique sem o substantivo que visa qualificar, proponho substituir a expressão «imagem mental» pela expressão genérica «experiência mental» e pela expressão mais particular «experiência visual», julgo que sublinhando, assim, o ponto central do argumento de Putnam.

[3] Putnam, 1981: 24-25.

[4] Levinas, 1961: XII.

[5] Henry, 2000: 49.

[6] Note-se que tais estados mentais não estão evidentemente a ser pensados como estados inconscientes á maneira de Freud, pois para este tais estados caracterizam-se como mentais ou psíquicos justamente por serem ainda estados intencionais.

[7] Block, 1995: 380-381.

[8] Damásio, 1999: 109.

[9] Damásio, 1999: 130.

[10] Note-se que não é o caso que se esteja a pressupor que possa haver consciência não representacional. Para isso, necessário seria que mentalidade implicasse consciência, o que não se verifica. Donde que não aceitar considerar a mente em termos essencialmente representacionais não signifique que se considere que a consciência possa ser pensada em termos não representacionais.

[11] Cf. também Monteiro, 2004: 34-39 para uma crítica á ideia de que «a "mente consciente" (frase título de Chalmers) é o verdadeiro agente produtor da nossa "vida intelectual"».

[12] Note-se que resolver o problema mente/corpo continua a ser uma tarefa bastante árdua, mesmo não tendo que ver, no essencial, com o problema da consciência. Aliás, mais facilmente se concebe uma resolução para este (com base, por exemplo, numa teoria experiencial da consciência) do que para aquele. A este propósito, é ainda bastante actual a afirmação de António Damásio de que há um "mistério" na passagem dos "padrões" ou "mapas neurais" que se formam no cérebro aos "padrões" ou "imagens mentais" com aqueles correlacionados - «Não há qualquer mistério no que diz respeito á proveniência das imagens. As imagens provêm da actividade de cérebros e esses cérebros fazem parte de organismos vivos que interagem com ambientes físicos, biológicos e sociais. Deste modo, as imagens surgem de padrões neurais (ou de mapas neurais), formados em populações de células nervosas (ou neurónios), que constituem circuitos ou redes. Há, porém, um considerável mistério no que respeita á forma como as imagens emergem dos padrões neurais. O modo como um padrão neural se torna numa imagem é um problema que a neurobiologia ainda não resolveu.» (Damásio, 1999: 367)

[13] Peacocke, 1983: 343.

[14] Lycan, 1996: 152.

[15] Lycan, 1996: 156.

[16] Searle, 1983: 58 (tr.: 88).

[17] «The main difficulty with a representative theory of perception is that the notion of resemblance between the things we perceive, the sense data, and the thing that the sense data represent, the material object, must be unintelligible since the object term is by definition inaccessible to the senses. It is absolutely invisible and otherwise imperceptible.» (Searle, 1983: 59)

[18] O único sentido pelo qual ainda se poderá continuar falar de percepção visual será entendê-la como percepção causada por experiência visual; mas, em todo o caso, não se tratando realmente de aceder a percepta visíveis. Os percepta não são da ordem do sensorial; por isso, não são nem visuais, nem auditivos, nem tácteis, etc. Mesmo a experiência que um sujeito tem da sua vida perceptiva dá conta, com evidência, que a percepção, por exemplo, de uma cafeteira a assobiar sobre o lume do fogão é, de facto, uma só percepção causada por variadas fontes de experiência sensorial, e não a soma ou conjunção de várias percepções simultâneas - a que daria a ver a cafeteira, a que daria a ouvir o assobio, a que daria a cheirar o café pronto.

[19] é, porém, um representante não intencional, como um fóssil, um estrato geológico ou uma fotografia. Todos estes representantes são, ou podem ser informativos, mas apenas para um sujeito consciente que se relacione com eles perceptivamente.

[20] «In the case of visual hallucination the perceiver has the same visual experience but no Intentional object is present.» (Searle,  1983: 58)

[21] Bernardo Soares antecipa esta "realidade" da sensação e independência face á subjectividade em termos muito claros: «O que as nossas sensações têm de real é precisamente o que têm de não nossas.» (Bernardo Soares, 2001: 334)

[22] Bernardo Soares, 2001: 484.



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