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Nas situações e relações envolvendo a salvaguarda de direitos ao nascituro, os direitos se constituem, mas a sua eficácia ou a determinação do sujeito é postergada ao fato do nascimento. Seguem exemplos das duas hipóteses. Primeira: Legitima-se a suceder o ser concebido no momento da abertura da sucessão (CC, art. 1.798); se nasce com vida receberá o quinhão hereditário, ao revés, o quinhão passará áquele que sucederia em lugar do nascituro. Segunda: é valida a doação ao nascituro (CC, art. 542); se nascer com vida a disponibilidade terá eficácia, do contrário será ineficaz.
Destarte, no tocante ao nascituro, não há que falar em personalidade fictícia (7) ou formal (8). Incorre em erro a doutrina que propala a antecipação ou retrotraimento de personalidade, a expectativa de direito, o direito condicional, como supôs Oertmann, para afastar a idéia de direitos sem sujeitos. Por outro lado, a salvaguarda de direitos prevista na lei civil é ampla, não sofrendo restrições ás situações de referência expressa pelo legislador (9), desde que compatíveis com a sua situação peculiar do ente humano por nascer.
O nascituro possui representante, sendo admitida a designação de curador para tanto (CC, art. 1.779); pode receber doação (CC, art. 542) e suceder (CC, art. 1.798) e pode ser objeto de reconhecimento de filiação (CC, art. 1.609, parágrafo único; Lei 8.069/90, art. 26, parágrafo único). Em função da salvaguarda de direitos, o nascituro pode figurar como beneficiário em contrato de seguro de vida (CC, art. 757) ou em estipulação em favor de terceiro (CC, art. 436), bem como pode ser inscrito como dependente perante a previdência social. A morte do genitor do ser concebido e não nascido, em decorrência de ato ilícito praticado por terceiro, gera áquele direito a pleitear indenização após o nascimento com vida (10).
Alguns autores têm deferido ao nascituro o direito de pleitear alimentos, argumentando que não seria justo á genitora suportar todos os encargos da gestação sem a colaboração econômica do companheiro reconhecido (11). À mingua de regra específica, entendo que o direito de pleitear alimentos (que é personalíssimo) deve ser conferido á gestante em face do genitor, quer como cumprimento de dever de mútua assistência quer como forma de proteção ao nascituro, quando aquela não detiver recursos financeiros para arcar com refeições adequadas e todos os encargos da gestação. Isso, sem olvidar que incumbe ao poder público propiciar apoio alimentar á gestante (ECA, art. 8º, § 3º). Demais, não se pode perder de vista que o nascituro, além de não ser pessoa, é viscera matris; a vida do ser humano nesta fase é dependente do organismo materno. Pois, é inadmissível conceder-lhe legitimidade para postular alimentos (12).
É também controvertida a questão acerca do direito ao seguro obrigatório pela morte de nascituro em decorrência de acidente de trânsito. O art. 3º da Lei 6.194/74 prevê a indenização securitária por morte, invalidez permanente e despesas de assistência médica e suplementar, cujos valores serão devidos por pessoa vitimada. Com efeito, somente as pessoas (ou seus herdeiros) vítimas de acidente automobilístico detêm o direito ao recebimento do seguro, excluindo-se a cobertura para a morte de nascituro, por não se tratar de pessoa (13). Data venia, decisões em sentido contrário, notadamente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, partem de premissa falsa e conflitante com o direito positivo, pois consideram que o nascituro goza de personalidade jurídica desde a concepção (14).
Noutra perspectiva, a situação do embrião merece atenção especial.
A gênese da vida humana, no processo natural, provém da fecundação do óvulo pelo espermatozóide, na trompa de Falópio. Em seguida, ocorre o fenômeno da nidação, com o deslocamento do óvulo fecundado, ou zigoto, rumo ao útero para fixar-se no endométrio. Nos primeiros estágios de desenvolvimento até o fim da morfogenia geral tem-se a figura do embrião, após, num período variável entre oito a doze semanas, surge o feto. Então, compreende-se na definição de nascituro o ser humano concebido e em evolução no ventre materno, nas fases ovular, embrionária e fetal.
O nascimento do primeiro bebê de proveta, em meados de 1978, concretizou a possibilidade de concepção de um ente humano fora do corpo da mulher, gerando reflexos no mundo científico e jurídico. Antes desse acontecimento histórico, a referência legal ao fenômeno da concepção, com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, era suficiente para identificar a figura do nascituro. Na atualidade, mercê dos recentes métodos de fertilização in vitro (15), deve-se restringir a concepção a que se refere o art. 2º do Código Civil áquela ocorrida no ventre da mulher, pois, igualmente, o conceito de nascituro envolve a gravidez.
O embrião humano resultado da fertilização in vitro, enquanto não for implantado no organismo materno, não goza da proteção conferida ao nascituro, pois a ele não se equipara. Não pode ser considerado ente humano por nascer.
Em curso pelo Congresso Nacional o Projeto de Lei nº. 6.960/2002 (arquivado em 31.01.2007 pelo fim da legislatura) propôs nova redação ao art. 2º do Código Civil, por sugestão da Professora Maria Helena Diniz, para fazer referência expressa ao embrião, sob a justificativa de que: "antes de implantado e viabilizado no ventre da mãe, não pode ser considerado nascituro, mas que também é sujeito de direitos". A nova redação seria a seguinte: "A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do embrião e os do nascituro".
Mas, repita-se, o embrião humano fruto da fecundação natural, no ventre materno, está compreendido no conceito de nascituro, para efeito da salvaguarda de direitos, de modo que a introdução da palavra "embrião" no citado dispositivo, de forma generalizada, atingiria aos provenientes da fertilização in vitro, antes, portanto, de sua implantação no organismo da mulher, inclusive os excedentários, que se encontram crioconservados.
Daí revelar-se estouvada tal proposição, que não leva em consideração os impactos negativos para o ordenamento jurídico e a instabilidade que acarretará ás relações jurídicas e sociais. Sem dúvida, a temática deve ser disciplinada em legislação especial, apta a cuidar dos seus diversos contornos, inclusive na esfera penal.
Em síntese, enquanto não implantado no organismo da receptora, o embrião originado in vitro não se equipara ao nascituro, nem é dotado de personalidade.
O tema encontra importante questionamento no direito sucessório. A lei civil, no tocante á sucessão legítima, dispõe o seguinte: "Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão" (art. 1.798).
Indaga-se, então, se os embriões (concebidos in vitro) implantados após o falecimento do genitor detêm legitimidade para suceder? Advertindo que a questão é polêmica, perfilho o entendimento de que a resposta negativa se impõe.
Interpretando o art. 1.798 em harmonia com o art. 2º, ambos do Código Civil, entendo que "as pessoas nascidas" são as pessoas naturais (evitando o pleonasmo, pois pessoa é o ente humano que nasce com vida) e as "já concebidas" são os nascituros (entes concebidos e por nascer, que ainda não são pessoas), pois, conforme a doutrina majoritária, a concepção referida pelo Código é aquela ocorrida no ventre da mulher.
Assim, o art. 1.798 defere legitimidade ás pessoas e aos nascituros, estando excluídos os embriões gerados in vitro não inseridos no útero da mãe "no momento da abertura da sucessão".
Pode-se, então, conferir direito hereditário ao embrião gerado in vitro, implantado no útero materno após o falecimento do pai? Sim, na sucessão testamentária.
O art. 1.799, inciso I, do Código Civil permite ao testador contemplar o nundum conceptus (o ente humano ainda não concebido), podendo, por cláusula testamentária, beneficiar embrião inserido no ventre materno após a abertura da sucessão, observado o prazo bienal previsto no art. 1.800, §4º, do diploma civil.
Concluindo este ensaio, enfatizo que a existência, em nosso direito positivo, de mecanismos de proteção á vida e á integridade física e de salvaguarda de direitos (e mesmo a outorga de alguns direitos condizentes com a sua situação especial) não pressupõe o reconhecimento da condição de pessoa ao nascituro. Sem embargo de não deter personalidade, o nascituro possui capacidade jurídica; não é pessoa, mas é sujeito de direito. Na atualidade, como visto, tais conceitos são inconfundíveis.
Já o embrião concebido in vitro não ostenta a condição de nascituro enquanto não for implantado no ventre materno. Isso, porém, não significa que deva ser tratado como coisa, porque biologicamente há vida humana em potencial, cumprindo ao legislador garantir-lhe, mesmo que somente a partir de determinado estágio, o direito á vida e á integridade física.
NOTAS
1 Direito Civil, v. 1, 32. ed., Saraiva, p. 36.
2 Adotam esse entendimento, entre outros, Francisco Amaral (Direito Civil - Introdução, 1. ed., Renovar, p. 211), Limongi França (Instituições de Direito Civil, 2. ed., Saraiva, p. 48) e Antonio Chaves (Tratado de Direito Civil, v. 1, tomo 1, 3. ed., RT, p. 315).
3 O art. 221 do Esboço previa: "Desde a concepção no ventre materno começa a existência visível das pessoas e, antes do seu nascimento, elas podem adquirir direitos, como se já estivessem nascidas". Essa idéia foi recepcionada pelo art. 70 do Código Civil argentino: "Desde la concepción en el seno materno comienza la existencia de las personas; y antes de su nacimiento pueden adquirir algunos derechos, como si ya hubiesen nacido. Esos derechos quedan irrevocablemente adquiridos si los concebidos en el seno materno nacieren con vida, aunque fuera por instantes después de estar separados de su madre".
4 O art. 3º do Projeto continha a seguinte redação: "A personalidade começa com a concepção, sob a condição de nascer com vida".
5 O inciso I do art. 4ª da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José de Costa Rica, acolhida pelo Governo brasileiro, expressa que: "Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido por lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente".
6 Teoria do Fato Jurídico - Plano da Eficácia, 1ª Parte, 2. ed., Saraiva, passim.
7 Orlando Gomes, Curso de Direito Civil, 5. ed., Forense, p. 162.
8 Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasil, v. 1, 24. ed., Saraiva, p. 196.
9 No julgamento do RE nº 99.038-MG, em 18.10.83, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal enfrentou o tema relacionado á limitação da salvaguarda de direitos conferida ao nascituro. Por maioria de votos, ficou consignado o entendimento de que as hipóteses previstas no Código Civil, relativamente aos direitos do nascituro, são exaustivas, não o equiparando em tudo ao já nascido (DJ 05.10.84, p. 16.452). Cuidava-se de ação proposta com o fim de decretar a nulidade de escritura de compra e venda de terras, tendo o autor alegado que seus pais venderam certas glebas á sua irmã, quando ainda era nascituro, o que evidenciava a ofensa ao art. 1.132 do Código Civil de 1916: "Os ascendentes não podem vender aos descendentes, sem que os outros descendentes expressamente consintam". O Relator, Ministro Francisco Rezek, assentou no seu voto o entendimento de que a proteção conferida ao nascituro abrange todos os direitos compatíveis com a sua peculiar situação. Mas o Ministro Moreira Alves suscitou a divergência á luz das lições de Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho, no que foi acompanhado pelos Ministros Djaci Falcão, Décio Miranda e Aldir Passarinho. Entretanto, a conclusão é injustificável.
10 STJ, 4ª Turma, REsp nº 399.028/SP, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, in RT 803/193.
11 Pensam assim: Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Novo Curso de Direito Civil, v. 1, Saraiva, p. 94, e Silvio de Salvo Venosa, Direito Civil, v. 1, Atlas, p. 162.
12 TRF-4ª Região, 6ª Turma, AC nº 441.689, rel. p/ acórdão Des. Néfi Cordeiro, DJ 18.06.03, p. 701.
13 TJSC, 3ª Câmara de Direito Civil, AC nº 2005.039028-9, rel. Des Marcus Tulio Sartorato, j. 29.06.06; TJSP, 34ª Câmara de Direito Privado, AC nº 818.666-0/6, rel. Des. Irineu Pedrotti, j. 01.02.06; TJRJ, 8ª Câmara Cível, AC nº 2006.001.13466, rel. Des. Odete Knaack de Souza, j. 04.05.06.
14 TJRS, 6ª Câmara Cível, AC nº 700.020.279-1/0, rel. Des. Carlos Alberto Ãlvaro de Oliveira, j. 28.03.01.
15 A fertilização in vitro é técnica de reprodução assistida, por meio da qual os óvulos - removidos do ovário por processo de indução - e os espermatozóides são fertilizados em laboratório, portanto, fora do corpo.
Autor:
Wesley Souza de Andrade
Advogado Militante em Alagoas, Professor de Direito Civil, Especialista em Direito Civil e em Processo Civil
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