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A defesa como garantia constitucional (página 2)

Flúvio Cardinelle Oliveira Garcia

Em se tratando de ação penal, apenas o Estado-Administração pode ser considerado como sujeito ativo do interesse do litígio, sendo certo que, como único titular do ius puniendi, apenas ele tem legitimidade ad causam para recorrer à jurisdição criminal e exigir a prestação jurisdicional em decorrência de uma infração penal cometida.9 Em situações bastante específicas, entretanto, a lei expressamente autoriza a substituição processual, também denominada legitimação extraordinária (artigo 100, caput, Código Penal), que ocorre, por exemplo, quando o ofendido, em nome próprio, na defesa de interesse alheio - do Estado -, propõe a ação penal. é o caso das ações de iniciativa privada, subdivididas em ações de iniciativa exclusivamente privada e ações subsidiárias da pública.10 No que concerne à legitimação passiva, esta, no processo penal, resulta da participação do indivíduo num fato previsto como infração penalmente relevante, sendo mister a existência de um mínimo de indícios contra o autor do delito.

As chamadas condições específicas de procedibilidade são aquelas de caráter processual que se voltam à admissibilidade da persecução penal, condicionando o exercício da ação penal. Exemplos destas condições específicas podem ser encontrados no Código Penal, por exemplo, nos artigos 7°, §2°, "a" (entrada do agente no território nacional no caso de crime praticado no exterior); 145, parágrafo único (requisição do Ministro da Justiça nos crimes contra a honra praticados em desfavor do Presidente da República ou chefe de governo estrangeiro); 130, §2°, 147, parágrafo único, 151, §4° e outros (representação do ofendido). Mirabete ensina que as condições específicas de procedibilidade podem atuar sobre o mérito, sobre a ação ou sobre o processo, dependendo do momento de seu reconhecimento pelo juiz e dos efeitos que a lei lhes der.11

Faltando qualquer uma das condições da ação ou de procedibilidade o juiz, no exercício da função jurisdicional, deixará de apreciar o mérito, declarando o autor carecedor da ação.

A DEFESA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL

Assim como os indíviduos não podem fazer justiça com as próprias mãos, também o Estado, detentor exclusivo do ius puniendi, não pode exercer seu poder repressivo de forma arbitrária, sendo-lhe autorizado a punir apenas quando assim for determinado pelo órgão jurisdicional competente. Essa autolimitação de não poder o Estado-Administração executar diretamente sua pretensão punitiva, devendo submeter-se à prestação jurisdicional do Estado-Juiz, tem como conseqüência a própria ação, sendo certo que tal pretensão somente poderá ser atendida mediante "sentença judicial precedida de regular instrução e com observáncia do devido processo legal e participação do acusado em contraditório".12

Notadamente, o direito de ação estabelece uma relação recíproca com o direito de acesso à justiça, constitucionalmente assegurado pelo artigo 5°, inciso XXXV, da Carta Magna promulgada em 1988, que estabelece que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito".

O processo, portanto, há de ser considerado visando a proporcionar às partes o pleno acesso à justiça, ou, como escrevem Cintra, Grinover e Dinamarco, acesso à ordem jurídica justa.13 Faz-se necessário ter em mente que o acesso à justiça não se perfaz com a mera possibilidade de ingresso em juízo, mas com o crescente aumento da admissão de pessoas e causas no processo, sendo-lhes garantida a observáncia das regras estabelecidas para o devido processo legal, com participação intensa na formação do convencimento do juiz por meio do efetivo exercício do contraditório e da ampla defesa.

Nesse diapasão, barreiras econômicas que poderiam impedir ou desmotivar pessoas a buscarem a tutela jurisdicional ou mesmo exercerem, quando em juízo, sua ampla defesa, vêm sendo paulativamente combatidas por normas constitucionais e infraconstitucionais que oferecem soluções valiosas no intuito de que haja a efetividade do processo, dirimindo conflitos e buscando a justiça. Sob este prisma, o artigo 5°, inciso LXXIV, da Constituição Federal preceitua a assistência jurídica integral e gratuita, processual e pré-processual, aos que comprovarem insuficiência de recursos, obrigando o Estado a disponibilizar defensores públicos, dotados de muitas das garantias reconhecidas ao Ministério Público (artigo 134, CF/88). Esclarecem Cintra, Grinover e Dinamarco que "além de caracterizar a garantia de acesso à justiça, a organização das defensorias públicas atende ao imperativo da paridade de armas entre os litigantes, correspondendo ao princípio da igualdade, em sua dimensão dinámica".14

Os juizados especiais (Leis n° 9.099/95 e n° 10.259/01), a legitimação do Ministério Público e de associações, entidades sindicais, partidos políticos, sindicatos, para a defesa de interesses difusos e coletivos (Lei n° 7.347/85 e artigos 5°, XXI e LXX; 8°, III; 129, III e §1°; 232, todos da CF/88) e a ampliação da titularidade para propositura da ação direta de inconstitucionalidade (art. 103, CF/88) são exemplos da preocupação do legislador com o efetivo acesso à justiça e com o pleno exercício da defesa de interesses juridicamente tutelados.

Pelo exposto, verfica-se que os direitos de ação e defesa elevam-se ao patamar constitucional, consubstanciando-se em verdadeiras garantias constitucionais, imprescindíveis ao correto exercício da jurisdição e à tutela das partes em relação às suas faculdades e poderes processuais. Dessa forma, assegura nossa Lei Maior, em especial no artigo 5°, incisos XXXV, LIV e LV, a garantia ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa. Como garantia que é do acusado e do processo, a defesa passa a ser uma condição de regularidade do procedimento, legitimando a própria jurisdição.15

A AMPLA DEFESA E O CONTRADITÓRIO

O princípio da ampla defesa, como vimos, está expressamente previsto no artigo 5°, inciso LV, da Carta Magna de 1988. Vicente Grego Filho afirma que a ampla defesa é constituída a partir dos seguintes fundamentos: "a) ter conhecimento claro da imputação; b) poder apresentar alegações contra a acusação; c) poder acompanhar a prova produzida e fazer contraprova; d) ter defesa técnica por advogado, cuja função, aliás, agora, é essencial à Administração da Justiça (art. 133 [CF/88]); e e) poder recorrer da decisão desfavorável".16 Com bastante razão e proficiência, afirma o ilustre doutrinador que a ampla defesa é o cerne ao redor do qual se desenvolve o processo penal.

O contraditório, assegurado em sede constitucional no mesmo dispositivo normativo que garante a plenitude de defesa, é tido como um instrumento técnico por meio do qual se torna possível efetivar a ampla defesa no processo penal. Não ocorre, entretanto, primazia entre a defesa e o contraditório, visto que ambos são manifestações da garantia genérica do devido processo legal.17

O princípio do contraditório compreende, em suma, o direito de acusação e defesa participarem no convencimento do juiz, a partir da sustentação de suas razões e da produção de provas, bem como da ciência que ambos devem ter dos atos processuais realizados pelo juiz e pela parte contrária.

A fim de garantir o equilíbrio de forças entre acusação e defesa, é fundamental que o contraditório seja pleno e efetivo, assegurando às partes - Ministério Público e acusado - um tratamento igualitário, garantindo-se a paridade de armas no processo penal. Daí decorre o princípio da igualdade das partes, segundo o qual exige-se o mesmo tratamento aos que se encontrem na mesma posição jurídica no processo.

Ressalte-se, entretanto, que a acusação é exercida por uma instituição oficial forte, bem preparada, com todo um aparelhamento estatal de apoio, tendo o acusado, via de regra, somente o auxílio de seu advogado. Ademais, no processo penal, a própria garantia individual da liberdade de ir e vir do indivíduo encontra-se ameaçada. Por assim ser, entendem Scarance18 e Tourinho Filho19 que no conflito entre o ius puniendi estatal e ius libertatis do réu, este deve ser favorecido, não havendo, no particular, ofensa ao princípio constitucional da isonomia. Aliás, o tratamento diferenciado no processo penal em favor da defesa encontra respaldo nos consagrados princípios do in dubio pro reo e favor rei.

Sobre o tema, merecem transcrição as palavras do renomado Scarance que esclarece, in verbis: "Mas quando se afirma que as duas partes devem ter tratamento paritário, isso não exclui a possibilidade de, em determinadas situações, dar-se a uma delas tratamento especial para compensar eventuais desigualdades, suprindo-se o desnível da parte inferiorizada a fim de, justamente, resguardar a paridade de armas".20

DEFESA TéCNICA E AUTODEFESA

No ámbito Processo Penal, o já mencionado princípio da ampla defesa compreende, em linhas gerais, o direito à defesa técnica durante todo o processo e também o direito ao exercício da autodefesa. A primeira apresenta-se como uma defesa necessária, indeclinável, que deve ser plenamente exercida visando à máxima efetividade possível. A segunda, por sua vez, é renunciável, exercida pelo próprio acusado, sem interferência do defensor, a partir da atuação pessoal junto ao magistrado por meio do interrogatório ou pela presença física aos principais atos processuais.21

Verifica-se a necessidade da defesa técnica na medida em que, sem ela, não seria possível garantir-se a paridade de armas no processo, o que, per si, seria suficiente para a nulidade dos atos praticados (artigo 564, III, "c", CPP). Considerando que a relação entre o acusado e seu defensor deve pautar-se na confiança, cabe àquele constituir advogado segundo seu livre arbítrio. Entretanto, não o fazendo, determina os artigos 263 e 265 do Código de Processo Penal que o juiz, obrigatoriamente, nomeie um defensor, não podendo este último, sem motivo imperioso, renunciar à defesa.

Como vimos, mesmo o acusado que não dispõe de recursos para custear o patrocínio de advogado constituído tem o direito à assistência jurídica integral gratuita, segundo garante o artigo 5°, inciso LXXIV, da Constituição Federal de 1988. Sendo o acusado legalmente habilitado para o exercício da advocacia e, como tal, conhecedor técnico das especificidades processuais, poderá exercer, motu próprio, sua defesa técnica.

Por ser o direito de defesa garantia da própria justiça e, como dito, condição de paridade armas, imprescindível à concreta atuação do contraditório e, conseqüentemente, à própria imparcialidade do juiz,22 a defesa técnica torna-se indeclinável, irrenunciável, sem a qual não seria possível atingir uma solução justa.

A defesa técnica há de ser plena, manifesta durante todo o processo, assegurando ao acusado, em todas as etapas do iter processual, os direitos e as garantias que lhe são constitucional e legalmente conferidas, tais como o contraditório, o direito à prova e a garantia do duplo grau de jurisdição.23

A simples constituição ou nomeação de advogado para atuar na causa não é suficiente para se comprovar a efetividade da defesa. Não basta a presença do advogado, mas a efetiva atuação desde no sentido de assistir com diligência e afinco ao seu cliente, proporcionando-lhe o completo exercício de sua ampla defesa. Cumpre ao juiz conduzir o processo e zelar para a preservação dos princípios do contraditório, da igualdade de armas, do devido processo legal e, com mais razão, da plenitude de defesa. Verificando o magistrado que uma atuação negligente, desatenciosa, superficial, do advogado ou defensor está causando desnível na balança da igualdade entre acusação e defesa, deverá, em cotejo com as fortes evidências constatadas nesse sentido e sempre atento à imparcialidade que deve nortear os atos judiciais, declarar o acusado indefeso, solicitando-lhe que nomeie, num prazo estabelecido, novo defensor, sob pena de ser-lhe nomeado um a critério do juízo (artigos 263 e 497, V, do CPP).

Ao contrário da defesa técnica, o direito de autodefesa, embora não possa ser desprezado pelo magistrado, é renunciável, ou seja, poderá o acusado, se assim desejar, declinar sua presença no interrogatório e em outros atos processuais de instrução, bem como abster-se de postular pessoalmente aquilo que lhe é permitido por lei. Tem-se, portanto, as três facetas básicas da autodefesa: 1) direito de audiência, quando, pessoalmente tem a oportunidade de defender-se, apresentando ao juiz da causa sua versão dos fatos; 2) direito de presença, por meio do qual lhe é facultado acompanhar os atos de instrução e, assim, auxiliar o defensor na realização de sua defesa; e 3) direito de, pessoalmente, postular sua defesa, interpondo recursos, impetrando habeas corpus, formulando pedidos relativos à execução de pena, sendo que, nestes casos, o acusado ou sentenciado dá o impulso inicial ao ato, devendo, a posteriori, ser assistido por um defensor.24

O interrogatório é considerado ato de defesa renunciável, e não um meio de prova, conforme equivocadamente disposto nos artigos 185 e seguintes do CPP, haja vista que o acusado não tem o dever, e nem pode ser obrigado, a fornecer elementos de prova contra sí. Outrossim, o acusado não é obrigado a comparecer ao ato do interrogatório, sendo que, se o fizer, não tem o dever de dizer a verdade e nem mesmo, se assim desejar, de responder às perguntas da autoridade. é justamente o direito ao silêncio que "garante o enfoque do interrogatório como meio de defesa e que assegura a liberdade de consciência do acusado".25

Observe-se, entretanto, que o ato do interrogatório não poderá deixar de ser levado a termo pelo juiz se o acusado apresentar-se para depor, sob pena de cerceamento de autodefesa, uma vez que a liberdade desta é ampla, podendo ser exercitada pela exposição de argumentos contrários à tese da acusação ou pela simples postura de permanecer em silêncio. Tamanha é a importáncia da autodefesa que, não obstante os procedimentos penais preverem momentos certos para a realização do interrogatório, o acusado não interrogado no tempo determinado pelas normais processuais, mas que "venha a ser preso no curso do processo penal, ou compareça, espontaneamente ou em virtude de intimação, perante a autoridade judiciária, deve ser interrogado, sob pena de nulidade (art. 185). Se a notícia da prisão surgir em grau de recurso, deve o tribunal baixar os autos a fim de que se proceda ao interrogatório antes do julgamento".26 Por força do artigo 564, III, "e", do CPP, há nulidade insanável na falta de interrogatório do réu presente.

Em que pese a infringência à garantia constitucional implicar, prima facie, em nulidade absoluta do processo, os casos pertinentes a ausência do ato processual defensivo necessitam, para tanto, de análise da amplitude do prejuízo causado. Caso o prejuízo seja suficiente a ponto de macular a defesa como um todo, a nulidade será absoluta (art. 564, III, "a", "c", "e", "g", "l", "o", CPP). Em contrapartida, havendo o vício de um ato defensivo que não tem o condão de interferir na plenitude de defesa, a nulidade será relativa, dependendo da comprovação do prejuízo. é que, segundo esclarece Grinover, Fernandes e Gomes Filho, "nesses casos, o vício ou a inexistência do ato defensivo pode não levar, como conseqüência necessária, à vulneração do direito de defesa, em sua inteireza, dependendo a declaração de nulidade de demonstração do prejuízo à atividade defensiva como um todo".27

A Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal sedimentou o entendimento exposto ao estabelecer que "no processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo ao réu".

COLIDÊNCIA DE DEFESAS

Diante da necessidade já exposta de uma defesa efetiva, não se admite, em nossos tribunais,28 a colidência de defesas, ou seja, um mesmo advogado patrocinando, em juízo, a defesa de dois acusados valendo-se de teses antagônicas. De fato, não poderá o causídico sustentar duas defesas colidentes, sendo certo que um dos acusados restará prejudicado, compromentendo seu amplo direito de defesa. Nesse sentido, Grinover, Scarance e Gomes Filho alertam que "a nomeação de um só defensor para réus que apresentem versões antagônicas para os fatos apontados como delituosos sacrifica irremediamente o direito de defesa".29

Não raro, pode ocorrer de as linhas de defesa técnica e autodefesa apresentarem, entre si, argumentação divergente, alternativa, cumulável ou até mesmo excludente. Trata-se, no particular, de caso diverso da verdadeira colidência de defesas, pois, nesta, o mesmo advogado assume a tarefa de defender dois réus cujas defesas são inconciliáveis por haver conflito de interesses, no caso em testilha, contudo, tem-se uma aparente colidência, em regra plenamente conciliável, entre a defesa técnica e a autodefesa relativas ao mesmo acusado. Grinover, Scarance e Gomes Filho asseveram que a apreciação sucessiva das linhas de defesa apresentadas é a solução acertada para dirimir o aparente conflito que, na verdade, consubstancia-se em mera incompatibilidade lógica.30

Alerta-nos, os eminentes doutrinadores, que pode acontecer, porém, que a defesa técnica ignore os argumentos defensivos apresentados pelo réu em sua autodefesa. Neste caso, deverá o juiz proceder às seguintes análises: primeiramente, verificar se, no caso em apreciação, o comportamento do defensor significou deixar o réu indefeso, circunstáncia que, se constatada, implicará em nulidade absoluta do processo tendo em vista a incompatibilidade ter afetado a defesa como um todo. Caso o resultado seja negativo, então deverá o juiz apreciar as diversas teses de defesa, também sob pena de nulidade.31 Já entenderam nossos tribunais que, numa situação de total disparidade entre a autodefesa e a defesa técnica, sendo a apresentada pelo defensor a mais benéfica, deverá esta prevalecer sobre aquela.32

DIREITO AO SILÊNCIO

O direito a não se auto-incriminar foi concebido, num primeiro momento, a partir da interpretação sistemática de consagradas garantias constitucionais, notadamente, os princípios da ampla defesa, da presunção de inocência e, como não poderia deixar de ser, do devido processo legal. Concluiu-se, portanto, que ninguém seria obrigado a se auto-incriminar, não podendo o acusado ou suspeito ser coagido a produzir prova contra si mesmo.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, ratificada pelo governo brasileiro por meio do Decreto n° 678, de 06/11/1992, inseriu expressamente, no contexto jurídico-positivo de nosso país, o princípio de que a pessoa não está obrigada a produzir prova contra si mesma, prevendo em seu artigo 8°, n.2, "g", que "toda pessoa tem direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada".33

Do amplo princípio que veda a forçosa auto-incriminação, decorre o direito ao silêncio, manifestamente previsto no artigo 5°, inciso LXIII, da Constituição Federal de 1988, quando assegura que "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado".

Muito embora o texto constitucional tenha se referido apenas ao preso, entendem a doutrina34 e a jurisprudência35 que a interpretação da regra constitucional, face ao princípio da presunção de inocência, deve ser no sentido de que a garantia ao silêncio seja assegurada a toda e qualquer pessoa que sofra investigações penais ou que esteja sendo acusada em juízo criminal, devendo o ônus da culpabilidade ser imputado à acusação.

Nesse contexto, face ao reconhecimento constitucional da prerrogativa de permanecerem em silêncio, o investigado, o indiciado e o réu têm o direito subjetivo de, se assim desejarem, não responderem às perguntas que lhes forem formuladas por qualquer autoridade ou agente do Estado, porquanto, escolhendo permanecerem calados - exercitando, assim, legitimamente a prerrogativa que têm - não podem sofrer qualquer restrição ou prejuízo de ordem jurídica no plano da persecução penal.

José Carlos Gobbis Pagliuca esclarece que a cláusula legitimadora do direito ao silêncio consagrou, no ámbito do sistema normativo constitucional brasileiro, diretriz proclamada em 1971, pela Quinta Emenda que compõe o Bill of Rights norte-americano.36 Acrescenta o ilustre autor que o direito de ficar em silêncio "insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal. E esse direito ao silêncio inclui, até mesmo de forma implícita, a prerrogativa processual de o indiciado ou réu negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial ou judiciária, a prática da infração penal que lhe foi imputada."37

Rogério Tucci também ressalta que o direito de permanecer calado "não pode importar desfavorecimento do imputado, até mesmo porque consistiria inominado absurdo entender-se que o exercício de um direito, expresso na Lei das Leis como fundamental ao indivíduo, possa acarretar-lhe qualquer desvantagem".38

Sobre esta questão, pronuncionou-se o Pleno do Supremo Tribunal Federal assegurando que "o réu, ainda negando falsamente a prática do delito, não pode, em virtude do princípio constitucional que protege qualquer acusado ou indiciado contra a auto-incriminação, sofrer, em função do legítimo exercício desse direito, restrição que afete o seu estatus poenalis" (HC 68.742-DF, Rel. Ministro Ilmar Galvão - DJU 02.04.93).

À luz do explanado, o direito ao silêncio há de ser exercido de maneira plena, sem pressões - sejam elas diretas ou indiretas - destinadas a forçar o depoimento do acusado. Na esteira desses pensamentos, os artigos 186 e 198 do Código de Processo Penal perdem sua eficácia quando em cotejo com a Constituição Federal, não tendo sido recepcionados pela Lei Maior de 1988, uma vez que aludem a prejuízos ao interrogado face ao legítimo exercício do direito constitucional de permanecer em silêncio.

Grinover, Scarance e Gomes Filho alertam, entretanto, que o Superior Tribunal de Justiça já entendeu "não constituir nulidade a advertência feita ao interrogado, nos termos do art. 186 do CPP, de que seu silêncio poderia prejudicá-lo, quando não provado qualquer prejuízo para a defesa" (STJ, RHC 6524-SP, DJU 30.06.97, Boletim IBCCrim 58/204).39 Continuam os insígnes autores assertando que, de fato, a nulidade poderá ser absoluta ou relativa, dependendo do exame concreto das circunstáncias, porquanto, se implicar em comprometimento da defesa como um todo, será irremediável, caso contrário, será parcial.40

é importante notar que apenas o denominado interrogatório de mérito, enquanto autodefesa está acobertado pelo direito ao silêncio, devendo as perguntas sobre a qualificação do interrogado (artigo 188, caput, CPP) serem prontamente respondidas, visto que suas respostas não ensejam atos defensivos.

Por fim, ainda sobre o interrogatório, cumpre frisar que um vício grave que este ato pode apresentar é a falta de informação sobre o direito de o indiciado ou acusado permanecer calado. Seguindo a mesma linha de pensamento já explicitada, Grinover, Fernandes e Gomes Filho instruem que a ausência de tal informação resulta nulidade do interrogatório sob duas dimensões:

"a mais grave, consubstanciada na nulidade de todo o processo, a partir do interrogatório, se, no caso, o ato viciado redundou no sacrifício da autodefesa e, conseqüentemente, da defesa como um todo. Ou, na dimensão mais moderada, pela invalidade do interrogatório, com sua necessária repetição, mas sem que os atos sucessivos fiquem contaminados, se se verificar que o conteúdo das declarações não prejudicou a defesa como um todo e os atos sucessivos".41

Insta-se observar, contudo que, em regra, um interrogatório viciado invalida as provas dele decorrentes, ainda mais se essencial para a validade de outro ato processual. Neste caso específico, a nulidade do interrogatório comunicar-se-á com os atos processuais embasados no mesmo, conforme já se pronunciou a 1ª Turma do STF no julgamento do HC 78.708-SP (RTJ 168/977), in verbis: "em princípio, ao invés de constituir desprezível irregularidade, a omissão do dever de informação ao preso dos seus direitos, no momento adequado, gera efetivamente a nulidade e impõe a desconsideração de todas as informações incriminatórias dele anteriormente obtidas, assim com as provas derivadas". Frise-se, entretanto, que a posição do Supremo Tribunal Federal, conforme restou evidenciado no bojo do sobredito julgado, é a de que deve ser ponderada a orientação da defesa do réu no processo: se a de realmente permanecer silente, fazendo o ônus da prova recair sobre a acusação; ou se de intervenção ativa no processo, situação na qual, segundo nosso Excelso Pretório, o réu abdica do direito de manter-se calado e das conseqüências da falta de informação oportuna a respeito.

Por último, resta analisar o caso em que o réu não é cientificado de seu direito de permanecer calado, mas, mesmo assim, deixa de responder às perguntas feitas pela autoridade interrogante ou, se respondendo, nega as acusações que lhe são imputadas. Percebe-se que, neste caso particular, não há prejuízo à autodefesa e nem à defesa como um todo, um vez que do interrogatório não resultaram informações incriminatórias que pudessem influenciar no convencimento do juiz da causa. Por essa razão, não há por que se declarar a nulidade do ato.

Notas de rodapé convertidas em notas de fim

1 Nesse sentido: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. Vol 1. São Paulo: Saraiva, 25ª ed., 2003. p. 306; FERNANDES SCARANCE, Antônio. Processo penal constitucional. São Paulo: RT, 3ª ed., 2002. p. 177; MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. São Paulo: Atlas, 10ª ed., 2000. p. 104.
2 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. p. 308.
3 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. p. 178.
4 Nesse sentido: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. p. 507; MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 105; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cándido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 19ª ed., 2003, p. 258.
5 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. São Paulo: RT, 7ª ed., 2001, p. 68.
6 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. p. 513.
7 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cándido Rangel. Op. Cit. p. 259.
8 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Op. Cit. pp. 66-7.
9 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 106.
10 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cándido Rangel. Op. Cit. p. 267.
11 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit. p. 108.
12 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cándido Rangel. Op. Cit. p. 256.
13 Idem. p. 33.
14 Idem. p. 82.
15 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. pp. 265-6.
16 GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989.
17 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. pp. 266-7.
18 Idem. pp. 49-50.
19 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. pp. 41-2.
20 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. p. 49.
21 Idem. p. 270-81.
22 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Op. Cit. p. 79.
23 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. p. 272.
24 Idem. pp. 280-1.
25 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Op. Cit. p. 81.
26 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. p. 280.
27 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Op. Cit. pp. 80-1.
28 Causa de nulidade absoluta: RTJ 32/49 e 42/804; RT 217/78, 302/447, 357/375, 371/44, 399/289 e 423/397.
29 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Op. Cit. p. 87.
30 Idem. p. 88.
31 Ibidem.
32 RTJ 80/497 e 79/422.
33 FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. p. 279.
34 Nesse sentido: GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: RT, 1997. p. 113.; FERNANDES SCARANCE, Antônio. Op. Cit. p. 279.; PAGLIUCA, José Carlos Gobbis. As garantias do devido processo legal. In: MARQUES DA SILVA, Marco Antônio (coordenador). Tratado temático de processo penal. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. pp. 241-2.
35 RTJ 141/512, Relator Ministro Celso de Mello; HC n° 68.742-DF, Relator Ministro Ilmar Galvão.
36 PAGLIUCA, José Carlos Gobbis. Op. Cit. In: MARQUES DA SILVA, Marco Antônio (coordenador). Op. Cit. p. 242.
37 Ibidem.
38 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. Saraiva, 1993. Apud: PAGLIUCA, José Carlos Gobbis. Op. Cit. In: MARQUES DA SILVA, Marco Antônio (coordenador). Op. Cit. p. 243.
39 GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antônio, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Op. Cit. p. 83.
40 Idem. pp. 84-5.
41 Idem. p. 83.

 

 

Autor:

Flúvio Cardinelle Oliveira Garcia

fluviocogarcia[arroba]ig.com.br



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