Este trabalho apresenta um estudo sobre o cuidado como valor. A metodologia da leitura analítica e sintética nele empregada tem por finalidade empreender a exposição e o debate que confrontem fatos, dispositivo legal e conceitos relativos ao cuidado em saúde. Esse exercício crítico oferece resultados que apontam para a conclusão sobre a necessidade de o princípio da integralidade e saberes correlatos conduzirem com a concepção e as ações programáticas de um sistema de saúde que prime pela efetividade de sua filosofia, em que o cuidar seja um valor essencial das políticas públicas sobre saúde no Brasil.
Palavras-chave: cuidado, ética, valor, política, saúde
Este trabalho consiste em um estudo sobre o cuidado como valor, motivado pelo tema Razões Públicas para Integralidade em Saúde. Se o cuidado é proposto como valor, então estamos falando de ética, termo derivado de ethos, com o qual os gregos expressavam o que entendiam por aquilo que no humano é herança e aquisição.
Se a herança é biológica, a aquisição é cultural. É com essas duas grandes dimensões que a pessoa humana se faz entre os humanos, tendo nos serviços dedicados ao auxílio do cuidado de si um caminho para o autocultivo para a própria humanização.
É aí que os serviços em saúde se inserem como um bem que está a serviço, não apenas do combate à doença, mas, sobretudo, de uma manutenção de qualidade do ser humano que é biológica, mental e socialmente constituído.
Ora, para que isso aconteça, e de modo significativo, requerido pela dignidade humana, o cuidar deve ser entendido como uma atividade que vai além do mero exercício profissional. Ele pode e deve ser entendido como um valor que ancore as políticas públicas para o setor saúde, de modo a fazer de suas razões os motivos pelos quais a sociedade, o Estado e suas instituições hajam em conjunto para garantir saúde como direito de cidadania.
Mas... é isso o que a realidade nos apresenta? A quantas anda o dia-a-dia de nossas organizações sanitárias? Como o cidadão está sendo recebido, tratado e cuidado pelas instituições e profissionais da área da saúde? Ele recebe um cuidado que potencialize a manutenção da vida ou está sendo maltratado pelo simples fato de necessitar do respeito a um direito que lhe é elementar?
Afora a realidade, o que dizem as disposições constitucionais sobre esse assunto? E os princípios que sustentam nosso sistema de saúde, eles estão realmente sendo observados? O conceito de integralidade, universalidade e eqüidade são componentes gráficos dos discursos sobre saúde ou estão realmente fundamentando as práticas de prestação de seus serviços? O que dizem os números sobre isso? O que podemos almejar e aspirar sobre esse assunto?
Para respondermos a esse conjunto de perguntas, neste trabalho, organizado em três momentos (introdução, desenvolvimento e conclusão) serão dispostas algumas informações e alguns dados sobre a realidade da saúde no Brasil, tomando um caso concreto; bem como a lei e os princípios relativos ao tema da integralidade; os dados e a vida; a fábula do cuidado e as referências bibliográficas aqui utilizadas.
2.1 Realidade, a poesia, o fato
Ao estudar o cuidado como valor, lembramos
Theodor Adorno (1903-1969), membro da escola filosófica de Frankfurt
e que entendia o pensar como uma tarefa e a filosofia como prática, tal
qual caminho ao ethos existencial. Como que perseguido pela barbárie,
Adorno entendia que o campo de concentração de Auschwitz havia
interditado a poesia. O humano havia esgotado naquele acontecimento nefasto
toda a sua potencialidade para o mal, ultrapassado o senso estético do
grotesco e mergulhado a si mesmo no pior aspecto da animalidade possível.
Segundo Tiburi,
"... a relevância do pensamento de Adorno se mostra, sobretudo para a atualidade, política, mesmo considerando o fato de que sua recepção tenha se dado mais pelo campo da estética. Adorno é autor da famosa frase Não é possível fazer poesia depois de Auschwitz., que ele mesmo corrigiu ao dizer que talvez isso fosse falso diante de outra questão menos cultural: se é possível continuar vivendo depois de escapar de um assassinato legal (a sua experiência de intelectual meio judeu que foge do nazismo, exilando-se em outro país). A questão que está posta e que a nosso ver define a novidade ética na filosofia de Adorno diz respeito ao estatuto dessa sobrevivência, do malogro da vida" (TIBURI, 2004, p. 12 e 13).
Se é verdade que, inspirados na filósofa que perscruta Adorno, podemos assentir que o "malogro da vida", muitas vezes provocado por "assassinatos legais", inclusive por sistemas estatais de saúde, obstrui-nos o exercício poético, de outra parte referenciamos um representante da poesia que, parece-nos, sugere interpretação um pouco diferente por se tratar de alguém que não foi um filósofo profissional, mas um poeta: Fernando Pessoa (1889-1915).
Na biografia do poeta português, conta-nos Flávio Calazans (2002), aparece o registro de que aos cinco anos ele foi acometido por tuberculose; experimentou o nigredo, a "grande noite escura da alma", a depressão, a qual consistia na disciplina de "sentir tudo de todas as maneiras". Auto-anarquizado ontologicamente, Pessoa sempre buscou a alquimia da felicidade, à qual entendia ser necessário libertar-se do tempo, viver intensamente o presente, sem remorsos passados e sem sofrimentos antecipados por possíveis realizações em futuros prováveis, livre do que já foi ou do que será.
Talvez por isso ele tenha conhecido o carpe diem romano, admirado o nirvana budista, envolvido com o tao chinês, vivido o presente permanente dos alquimistas medievas, respirado de modo concentrado o yogue oriental e seguido a intuição, a espontaneidade e o instinto. Desse modo, unimúltiplo em si e por si, Pessoa talvez expresse o mais intenso desejo de viver, à medida que cria heterônimos como forma de multiplicar para si a própria existência. Segundo ele, "Quanto em mim haja de humano, eu o dividi entre os autores vários de cuja obra tenho sido o executor. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha." (PESSOA apud CALAZANS, 2002).
Uma "humanidade só minha", um cuidar de si que expressa o cuidado da humanidade, a vontade de viver, o desejo de potência e o anseio da saúde plena que, de um modo ou de outro, aparece, não na filosofia da razão ressequida pelas dores do mundo e pelos "malogros da vida", mas pela seiva da alma que vivifica o existente e o desfruta como a primeira e a última possibilidade de ser, estar, viver, alcançar alguma qualidade existencial. Talvez essa orientação nos inspire em nosso propósito de estudarmos o cuidado como o valor valioso que deve matizar a integralidade e impulsionar as razões públicas para que o cuidar seja tomado como o fundamento dos serviços dos sistemas de saúde no Brasil.
Falar de Brasil é referir-se a uma realidade cujo intricamento de questões humanas, sociais, políticas, econômicas, culturais e ideológicas aproxima-se mais do pessimismo adorniano do que do encanto poético de Pessoa. É uma realidade para a qual muitos gostariam de fazer olhos de Édipo (quer dizer, furados), dado que o conteúdo que invade nossa visão não é nada palatável para a sensibilidade asséptica e presumivelmente sã que uma certa educação nos legou como herança e imperativo ético.
Considerando isso, talvez seja o caso de lembrarmos Pirandello, o dramaturgo italiano que, ao representar a realidade por meio de um dos seus personagens, pede desculpas aos semelhantes por não poder retratar o real deles para eles, mas, sim, uma realidade da qual ninguém podia fugir.
"Mas desculpem: se para vocês eu não tenho outra realidade fora daquela que vocês me dão, e estou pronto a reconhecer e a admitir que essa não é menos verdadeira que a que eu poderei dar a mim mesmo, que essa, para vocês, é a única verdadeira (e sabe Deus a realidade que vocês me dão!), vão lamentar-se agora da realidade que eu lhes darei, esforçando-me, com toda a boa vontade, por vos representar à vossa maneira tanto quanto me seja possível?" (PIRANDELLO, 1989).
Essa realidade que se impõe perante nossos olhos, avessa à nossa capacidade (talvez poética) de representar, só é aqui lembrada porque, no fundo, o inconformismo diante dela não nos permite calar. É um lembrar para combater, um evidenciar para provocar o pensamento, o raciocínio, o julgamento e, sobretudo, a decisão de intervir e contribuir para a causa da vida, de preferência lembrando que a existência concreta, do dia-a-dia, pede a mobilização dos recursos da prática de cuidar como um valor vital a toda e qualquer pessoa humana, assentada no senso coletivo que faz do público nosso lugar existencial compartilhado e pelo qual somos todos responsáveis.
Trata-se de uma matéria de jornal. A reportagem apresenta o caso concreto de uma senhora que, ao buscar os serviços de saúde, viu-se metida no último "malogro da vida" e veio a óbito nas dependências de um Centro de Atenção Integral à Saúde, da cidade de Goiânia, Brasil. O caso ilustra a quantas anda os serviços de cuidados em saúde em nosso Sistema Único de Saúde (SUS) e o quanto temos de fazer para que ele seja alçado à altura da dignidade e integridade da pessoa humana em nosso país.
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