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Um segundo ponto, é que não basta olhar para os mecanismos econômicos, pois a desigualdade constitui um processo muito mais amplo. "Talvez ainda mais importante do que os crescentes níveis de pobreza é a emergência e encrustamento (entrenchment) de novos padrões de pobreza em numerosos países. Mudanças dignas de nota incluem uma tendência crescente para a rotação das pessoas para dentro e para fora da pobreza, um aumento da pobreza urbana e a estagnação na pobreza rural, bem como aumento na proporção de trabalhadores informais entre os pobres urbanos e em grande número dos pobres desempregados.(...) De todas as desigualdades dentro e entre nações, a impossibilidade de uma parcela crescente da população do mundo que busca emprego de encontrá-lo constitui talvez o fato de implicações mais profundas".(Onu, Inequality...p. 54-55)
Não só precisamos olhar para as dinâmicas sociais de maneira mais ampla, como temos de voltar a dar uma importância central para a organização de processos decisórios participativos: "A agenda do trabalho decente visa enfrentar numerosos desafios que surgem da globalização, inclusive a perda de emprego, a distribuição inequitável dos benefícios, e a desorganização (disruption) que foi causada na vida de tantas pessoas. Responder a estes desafios exigirá a participação de atores em todos os níveis".(Onu, Inequality...p. 58)
Assim, a agenda nos leva para a elaboração de propostas políticas pro-ativas e a intervençao organizada dos diversos segmentos sociais, enfrentando as duas principais macrotendências do sistema que é a deterioração ambiental e a desigualdade, aliás fortemente articuladas.
A quem pertence o planeta?
A pesquisa do WIDER (World Institute for Development Economics Research), da Universidade das Nações Unidas, aponta para outro drama, que é o da concentração da riqueza acumulada. Na realidade, as duas metodologias estão vinculadas, pois a renda maior dos mais ricos permite que acumulem mais propriedades, mais aplicações financeiras, enquanto os pobres estagnam. Assim, a riqueza acumulada ("net worth: the value of physical and financial assets less debts", o que equivale ao que o relatório define como "a comprehensive concept of household wealth"), ou patrimônio familiar acumulado, tende a polarizar ainda mais a sociedade, e leva em particular à formação de gigantescas fortunas que pouco têm a ver com a contribuição que estas pessoas ou famílias deram para a produção da riqueza social.
A acumulação de riqueza dentro dos países reforça naturalmente a mesma tendência, pois familias mais ricas tendam a poder acumular mais patrimônio. O fosso interno dos países agrava-se portanto: "A parte dos 10% mais ricos varia de 40% na China a 70% e mais nos Estados Unidos e alguns outros países"..."Nossos resultados mostram que o decil superior de riqueza era dono de 85% da riqueza global no ano 2000. Os 2% de adultos mais ricos do mundo tinham mais da metade da riqueza global, e o 1% mais ricos detinha 40% de toda a riqueza familiar. Em contraste, a metade de baixo da população adulta mundial detinha meramente 1% da riqueza global. O valor Gini para a riqueza global foi estimado em 89, sendo que o mesmo valor Gini seria obtido se 100 dólares fossem distribuidos entre 100 pessoas de tal maneira que uma pessoa recebesse 90 dólares, e os 99 restantes 10 centávos cada".
A riqueza familiar acumulada é estimada em 125 trilhões de dólares para o ano 2000, equivalendo a 144 mil dólares por pessoa nos EUA, 181 mil no Japão, 1.100 dólares na Índia, 1.400 na Indonésia, o que dá uma dimensão deste outro tipo de polarização.
Curiosamente, quando se fala em distribuição de renda, em imposto sobre a fortuna, em imposto sobre herança, a mídia fala em populismo e demagogia. Não ver os dramas que se avolumam com as dinâmicas atuais é ser perigosamente cego.
Os deixados por conta da globalização
O IFC (International Finance Corporation) do Banco Mundial analisa a concentração da renda e da riqueza pelo prisma do potencial empresarial. Tradicionalmente, o Banco Mundial apresenta os dados que se referem aos pobres avaliando a dimensão do drama. São os dados que nos dizem por exemplo que na virada do século tínhamos 2,8 bilhões de pessoas com menos de 2 dólares por dia para viver, dos quais 1,2 bilhão menos de 1 dólar. No presente estudo, avalia-se a imensa massa dos "mal inseridos" no desenvolvimento econômico do planeta, e busca-se a forma de gerar oportunidades. Trata-se dos 4 bilhões de pessoas cuja renda per capita está abaixo de 3 mil dólares por ano, e que constituem um mercado de 5 trilhões de dólares. Não se fala mais em tragédia social, fala-se em oportunidades econômicas.
"Os 4 bilhões de pessoas na base da pirâmide econômica (Base Of the Pyramid – BOP), todos aqueles cuja renda é inferior a 3 mil dólares em poder de compra local, vivem em relativa pobreza. A sua renda em dólares correntes dos EUA é inferior a $3,35 por dia no Brasil, $2,11 na China, $1,89 no Ghana, e $1,56 na Índia. No entanto, juntos eles têm uma capacidade de compra significativa: a base da pirâmide constitui um mercado consumidor de $5 trilhões".
O enfoque já gerou um entusiasmo passageiro com os estudos de De Soto sobre a capitalização dos pobres dando-lhes títulos de propriedade, e navega hoje nas visões de Prahalad sobre a possibilidade de se transformar os pobres se não em empresários, pelo menos em consumidores.
Para nós que buscamos a inclusão produtiva desta imensa massa da população mundial, no entanto, os dados apresentados, com a força de penetração das visões do Banco, não deixam de ser interessantes, ao explicitarem a constatação de que a imensa maioria da população mundial está ficando fora do chamado progresso. Na realidade, o mundo corporativo está gerando muito mais do que pobreza, está reduzindo a capacidade desta população de se apropriar do seu desenvolvimento. Trata-se da exclusão econômica de mais de dois terços da população mundial. Segundo o relatório, "the BOP population segments for the most part are not integrated into the global market economy and do not benefit from it"(os segmentos de "base da pirâmide" da população na sua maior parte não estão integrados na economia de mercado global e dela não tiram proveito"). Aparentemente, a ironia do fato de se qualificar 4 bilhões de pessoas de "segmentos da população", quando se trata de quase dois terços da população mundial, escapou aos autores do relatório.
O estudo confirma também que há uma consciencia crescente da necessidade de se gerar um ambiente propício à inclusão produtiva deste "andar de baixo" da economia: "There is growing recognition of the importance of removing barriers to small and medium-size businesses and a growing toolbox for moving firms into the formal economy and creating more efficient markets".(Há um reconhecimento crescente da importância de se remover barrreiras à pequena e média empresa, e uma gama mais ampla de ferramentas para levar as empresas para a economia formal e para gerar mercados mais eficientes".)
A filosofia, portanto, consiste aqui em criar um "bottom-up market approach", literalmente um capitalismo vindo de baixo. O que é óbvio, na verdade, é que o "capitalismo de cima" gera as tendências inversas. A plantação de soja utiliza 1 só trabalhador por 200 hectares de plantio, a pesca industrial oceância está reduzindo à miséria mais de 300 milhões de pessoas que vêm desaparecer o peixe nas regiões costeiras que sustentavam a pesca tradicional, a especulação financeira está descapitalizando as comunidades, o abuso do registro de patentes para tudo e qualquer coisa (97% pertencem a países ricos) trava cada vez mais as iniciativas locais de criação de valor. A Coca-Cola na Índia lançou garrafas pequenas cujo preço corresponde ao valor de uma moeda: trocar as últimas moedas dos pobres por Coca-Cola foi apresentado como "inclusão comercial". Estamos aqui muito longe da sabedoria e eficiência do Grameen Bank de Yunus.
Mas o documento é importante, pois mostra indiretamente o grau de tensões que o sistema está gerando no planeta, e a necessidade de processos alternativos. A idéia de que "um outro mundo é possível" não se apoia apenas numa visão mais humana e em ideais sociais: trata-se cada vez mais de uma condição necessária da nossa viabilidade econômica.
Dinâmicas convergentes
Um último enfoque que vale a pena citar nesta nossa apreciação fria e realista das dificuldades em que nos metemos, é a análise de como os dramas ambientais e sociais se articulam. O estudo de Thomas Homer-Dixon, cientista político canadense, organiza os diversos relatórios e informes setoriais, e apresenta uma visão de conjunto muito bem documentada. A idéia forte que o autor demonstra com clareza, é que as grandes ameaças estruturais convergem e se tornam sinérgicas.
A prosperidade artificial e o consumo predatório que a concentração de renda e de riqueza familiar permite no polo rico do planeta gera uma pressão mundial por consumo e estilo de vida semelhantes. Homer-Dixon cruza os dados das polarizações econômicas com a evolução da pressão demográfica. Temos hoje 6,4 bilhões de pessoas no mundo, aumentando num ritmo de algo como 75 milhões a cada ano, e com um perfil de consumo crescentemente surrealista, nas duas pontas, na escassez e nos excessos, na desnutrição e na obesidade. Cerca de 2/3 do crescimento populacional se dão na área da miséria. Não estamos mais na era das populações pobres e isoladas. O planeta é um só, encolhendo dia-a-dia, e os pobres sabem que são pobres.
O modelo de consumo do planeta é o dos ricos. Por que razão não teriam todos os chineses e todos os indianos direito a ter também cada um o seu carro? A pressão coletiva que resulta é desastrosa, simplesmente porque os ricos se dotaram de um perfil de consumo cuja generalização é inviável. Esta política se traduz numa pressão sobre recursos não-renováveis que o planeta não pode suportar. Os dados sobre o esgotamento da vida nos mares, a erosão dos solos, a redução das reservas de água doce nos lençóis freáticos, a destruição acelarada da bio-diversidade, o desmatamento e outros processos estão hoje sendo acompanhados em detalhe, numa demonstração impressionante do que podemos chamar de capacidade técnica e impotência política, pois todos vemos as coisas acontecer, e ficamos passivos, pois não há correspondência entre os mecanismos políticos e a realidade que temos que enfrentar, entre a dimensão dos desafios e os mecanismos de gestão.
As dinâmicas atuais sobrevivem temporariamente apoiando-se numa matriz energética que sabemos ser insustentável. A nossa pequena espaço-nave terra veio com tanques de combustível, o petróleo, que se acumularam durante milhões de anos, e que teremos liquidado em menos de duzentos. Achamos normal mobilizarmos um carro de duas toneladas para levar o nosso corpo de 70 quilos para postar no correio uma carta de 20 gramas. O homo economicus do século XXI joga nas nossas cidades modernas cerca de um quilo de produtos no lixo por dia, e ainda paga por sua remoção. Não nos damos conta do desperdício. Todos sabemos que vivemos um sistema insustentável a prazo, conhecemos a dimensão dos impasses, e apenas esperamos que apareçam tecnologias milagrosas que abram novos caminhos na última hora. E que alternativa resta ao cidadão? Se não tiver carro, nas dinâmicas ditas modernas, como sobrevive? E alguém vai eleger um político que assume que vai aumentar o prêço dos combustíveis? Esta lógica vale também para as reservas de água doce, a vida nos mares e assim por diante.
Pessimismo? Não, apenas bom senso e informação organizada. Os desafios principais do planeta não consistem em inventar um chip mais veloz ou uma arma mais eficiente: consistem em nos dotarmos de formas de organização social que permitam ao cidadão ter impacto sobre o que realmente importa, em gerar processos de decisão mais racionais. Com a globalização, o processo se agravou. As decisões estratégicas sobre para onde caminhamos como sociedade passaram a pertencer a instâncias distantes. As reuniões dos que mandam, em Davos, lembram vagamente as reuniões de príncipes brilhantes e inconscientes na Viena do século XIX. A ONU carrega uma herança surrealista, onde qualquer ilhota do pacífico com status de nação tem um voto, tal como a India que tem um sexto da população mundial. As grandes empresas transnacionais tomam decisões financeiras, fazem opções tecnológicas ou provocam dinâmicas de consumo que afetam a humanidade, sem que ninguém tenha como influenciá-las. Democracia econômica ainda é uma noção distante. Somos cidadãos, mas a realidade nos escapa.
Pensar de maneira inovadora sobre os processos decisórios que regem o planeta e o nosso cotidiano não é mais uma questão de estar à esquerda e protestando, ou à direita e satisfeito: é uma questão de bom senso e de elementar inteligência humana.
O balanço de situação que fizemos acima é importante. Claramente, precisamos inovar, e as instituições que se adiantarem, demonstrando ousadia e capacidade de repensar os processos decisórios e as dinâmicas institucionais, colherão frutos. Não são dados gerais distantes das nossas realidades. Os dois dramas, o social e o ambiental, balizam precisamente as inovações sociais que temos de empreender, pois é em função delas que temos de trabalhar.
Partir da análise dos desperdícios e da sub-utilização de fatores, como sugere Ignacy Sachs, não constitui apenas uma visão crítica, pois aponta justamente para os reequilibramentos necessários.
O desperdício da capacidade de trabalho
A mão de obra constitui um primeiro fator óbvio de desperdício. Tomando o ano de 2004 como referência, temos 180 milhões de habitantes. Destes, 121 milhões estão em idade ativa, entre 15 e 64 anos de idade, pelo critério internacional. Na população economicamente ativa, temos 93 milhões de pessoas, o que já aponta para uma subutilização significativa. As estatísticas do emprego, por sua vez, mostram que temos neste ano apenas 27 milhões de pessoas formalmente empregadas no setor privado, com carteira assinada. Podemos acrescentar os 7 milhões de funcionários públicos do país, e chegamos a 34 milhões. Ainda assim, estamos longe da conta. O que fazem os outros? Temos empresários, sem dúvida, bem como uma massa classificada como "autônomos", cerca de 15 milhões de desempregados, e uma ampla massa classificada no conceito vago de "informais", avaliados pelo IPEA em 51% da PEA. O estudo sublinha que "a existência dessa parcela de trabalhadores à margem do sistema não pode em nenhuma hipótese ser encarada como uma solução para o mercado"(Ipea, p. 346). Essa "parcela" representa a metade do país.
O fato essencial para nós é que o modelo atual subutiliza a metada das capacidades produtivas do país. E imaginar que o crescimento centrado em empresas transnacionais, grandes extensões de soja (200 hectares para gerar um emprego), ou ainda numa hipotética expansão do emprego público, permitirá absorver esta mão de obra, não é realista. Evoluir para formas alternativas de organização torna-se simplesmente necessário.
Assim, o drama da desigualdade que vimos acima não constitui apenas um problema de distribuição mais justo da renda e da riqueza: envolve a inclusão produtiva decente da maioria da população desempregada, subempregada, ou encurralada nos diversos tipos de atividades informais.
O desperdício de recursos financeiros
Muitos dizem que não há recursos para empregar esta gente. Tomando um exemplo prático, as estimativas tanto da OMS como do SUS indicam que um real gasto em saneamento básico permite reduzir os gastos em entre 4 e 5 reais. Ou seja, são atividades que não absorvem recursos, pelo contrário os liberam e multiplicam. Dizer que não há dinheiro para ações que economizam dinheiro é real, mas absurdo. A ponte entre os dois momentos se faz através de crédito, mobilizando de forma produtiva as poupanças dos que têm excedentes em proveito de quem tem iniciativas a financiar.
A ANEFAC realiza periodicamente uma pesquisa de juros. As taxas de juros não são coisas de especialista. Basta comparar o quanto as instituições de intermediação financeira remuneram as nossas poupanças, e o quanto elas cobram quando precisamos de um crédito. O estudo é da Associação Nacional de Executivos em Finanças, Administração e Contabilidade, portanto trata-se de pessoas comedidas. Mas os dados não são nada comedidos.
A taxa de juros média geral para pessoa física em fevereiro de 2007 é de 7,38% ao mês, ou seja 135,1% ao ano. A taxa de juros média geral para pessoa jurídica no mesmo período é de 4,19% ao mês ou seja 63,65% ao ano. O estudo lembra que a taxa básica de juros Selic foi reduzida de 19,75% em setembro de 2005 para 13,00% em fevereiro de 2007. No mesmo período a taxa de juros média para pessoa física foi reduzida em 6,11 pontos percentuais (de 141,12% ao ano em setembro de 2005 para 135,01% ao ano em fevereiro de 2007). Para pessoa jurídica a redução foi de 4,58% percentuais (de 68,23% ao ano em setembro de 2005 para 63,65% ao ano em fevereiro de 2007).
Alguns dados mais: a taxa de juros do comércio em fevereiro de 2007 é de 6,02% ao mês (101,68% ao ano). No cartão de crédito, a taxa é de 10,25% ao mês (222,51% ao ano). No cheque especial, a taxa é de 7,88 ao mês (148,48% ao ano). O empréstimo pessoal nos bancos ficou em 88,40% ao ano, e nas financeiras 265,67% ao ano.
O documento da Anefac é elaborado com cuidado, apresentando em detalhe a metodologia, os diversos tipos de juros, os tipos de instituições de intermediação financeira, o tipo de tomador e assim por diante. No conjunto, o fato é que houve queda muito significativa da taxa básica fixada pelo governo, mas as variações nos juros para tomadores finais são ridículas. Ainda assim, o volume de crédito está se expandindo, mas com custos absolutamente indecentes para os tomadores.
O estudo lembra ainda que "As taxas de juros são livres e as mesmas são estipuladas pela própria instituição financeira não existindo assim qualquer controle de preços ou tetos pelos valores cobrados". (Anefac, p.13) O estudo recomenda que os tomadores pesquisem a taxa de juros e "demais acréscimos", pois haveria "expressivas variações" entre as diversas instituições financeiras. Na realidade, as "expressivas variações" referem-se a diferenças ridículas quando consideramos os números e os comparamos com as taxas praticadas no resto do mundo. Não há como não sentir que com a cartelização do setor, não temos escolha. E quando não há escolha, não estamos mais enfrentando intermediários financeiros, e sim atravessadores.
Nas recomendações, a situação real transparece: "Se possível adie suas compras para juntar o dinheiro e comprar o mesmo à vista, evitando os juros". O fecho é filosófico, e resume o que enfrentamos: "O crédito foi feito para você realizar seus sonhos, não para tirar seu sono". Na realidade, profissionais da área recomendarem que não utilizemos o crédito, constitui uma ironia, pois os intermediários financeiros trabalham com dinheiro que é do público, e precisam por isso uma carta patente do Banco Central para funcionar. A generalização da figura do pedágio financeiro reduz drasticamente a capacidade de todos os outros agentes dinamizarem atividades econômicas, gerando outra área de imensa subutilização de fatores.
Em outros termos, a desigualdade aqui não é apenas uma herança: trata-se de um processo em curso, em que o sistema de intermediação financeira permite a descapitalização das empresas, das comunidades e das famílias, gerando lucros absolutamente indecentes no restrito clube de intermediários financeiros e de grandes aplicadores, e reforçando os deequilíbrios que temos de corrigir.
O desperdício dos conhecimentos tecnológicos
Um terceiro eixo de subutilização de fatores está ligado às tecnologias. Sabemos que estamos em plena revolução tecnológica, que a economia do conhecimento está despontando, e que portanto o acesso à informação e à tecnologia tornou-se essencial para o desenvolvimento de qualquer atividade moderna.
Joseph Stiglitz é outro especialista insuspeito de qualquera extremismo. Mas frente à corrida histérica por trancar todo e qualquer conhecimento por meio de patentes, copyrights, regulamentações do TRIPs, e proteção de direitos intelectuais em geral ele constata que estamos dificultando o acesso a informações que são de utilidade geral. A importância da tomada de posição de Stiglitz vem do fato de sua condição de ex-economista chefe da Casa Branca e do Banco Mundial, de prêmio "Nobel" de Economia, e da visibilidade que o seu posicionamento tem neste debate. Numa era caracterizada pela centralidade do conhecimento nos processo econômicos, temos patentes que imobilizam áreas por 20 anos, copyrights que duram mais de 70 anos, prazos que, dado o ritmo das inovações, constituem autênticos monopólios, e geram outro tipo de pedágio.
"A inovação, escreve Stiglitz, está no coração do sucesso de uma economia moderna. A questão é de como melhor promovê-la. O mundo desenvolvido arquitetou cuidadosamente leis que dão aos inovadores um direito exclusivo às suas inovações e aos lucros que delas fluem. Mas a que prêço? Há uma sentimento crescente de que algo está errado com o sistema que governa a propriedade intelectual. O receio é que o foco nos lucros para as corporações ricas represente uma sentença de morte para os muito pobres no mundo em desenvolvimento."
Por exemplo, explica Stiglitz, "isto é particularmente verdadeiro quando patentes tomam o que era previamente de domínio público e o ‘privatizam’ – o que os juristas da Propriedade Intenectual têm chamado de novo ‘enclosure movement’. Patentes sobre o arroz Basmati (que os indianos pensavam conhecer havia centenas de anos) ou sobre as propriedades curativas do turmeric (gengibre) constituem bons exemplos".
Segundo o autor, "os países em desenvolvimento são mais pobres não só porque têm menos recursos, mas porque há um hiato em conhecimento. Por isto o acesso ao conhecimento é tão importante. Mas ao reforçar o controle (stranglehold) sobre a propriedade intelectual, as regras de PI (chamadas TRIPS), do acordo de Uruguay reduziram o acesso ao conhecimento por parte dos países em desenvolvimento. O TRIPS impôs um sistema que não foi desenhado de maneira ótima para um país industrial avançado, mas foi anda menos adequado para um país pobre. Eu era membro do Conselho Econômico do presidente Clinton na época em que a negociação do Uruguay Round se completava. Nós e o Office of Science and Technology Policy nos opunhamos ao TRIPS. Achávamos que era ruim para a ciência americana, ruim para o mundo da ciência, ruim para os países em desenvolvimento".
É uma tomada de posição importante, nesta época em que é bom tom respeitar a propriedade intelectual, quando estamos essencialmente respeitando a sua monopolização. Precisamos de regras mais flexíveis e mais inteligentes, e sobretudo reduzir os prazos absurdos de décadas que extrapolam radicalmente o tempo necessário para uma empresa recuperar os seus investimentos sobre novas tecnologias. Quanto a patentear bens naturais de países pobres para em seguir cobrar royalties sobre produções tradicionais, já é simplesmente pirataria. E os piratas, neste caso, são corporações que se pretendem respeitáveis.
O resultado prático é que perdemos a capacidade de aproveitar os imensos avanços do conhecimento que as novas tecnologias permitem, pagando pedágios desnecessários em cascata sobre avanços que em geral são obra de um processo social até que uma grande empresa compre os direitos. Trata-se aqui de mais um fator de concentração de renda e de riqueza, e de reprodução das dinâmicas diretamente ligadas à problemática ambiental: as pessoas esquecem, por exemplo, que por falta de outros recursos quase a metade da população mundial ainda cozinha com lenha. A curto prazo, os pedágios cobrados sobre o conhecimento geram lucros para as grandes empresas. A médio prazo, no entanto, estaremos todos em dificuldades.
Os desperdícios por má-gestão
Outro nível de subutilização dos fatores manifesta-se sob forma de desperdício organizacional. O FMI publica um estudo no sentido de se "cair na real" relativamente ao financiamento da saúde, e que constitui um bom exemplo para o nosso argumento. Às vezes é bastante útil acompanhar publicações do FMI, pois são insuspeitas de qualquer visão progressista.
Os dados são duros. Primeiro, o artigo lembra que já passamos de 25 milhões de mortes provocados pela AIDS. Como vão morrendo permanentemente, nenhuma manchete aparece. Mas as perdas de capacidade de trabalho, por simples redução da população ativa, bem como os sobrecustos de tratamentos e hospitalizações são imensas. Assim o desequilíbrio entre os avanços da produção comercial e os atrasos nas políticas sociais gera altos custos para a sociedade como um todo.
O artigo lembra que "globalmente, morrem 5 mil pessoas por dia de tuberculose, apesar dela ser passivel de tratamento e de prevenção... A realidade é que os paises em desenvolvimento continuam a fazer face a 90% da carga global das doenças, mas contam com apenas 12% do gasto global com saúde". Isto traduzido em gastos por pessoa nos dá o seguinte: "O gasto total per capita é de 22 dólares em países de baixa renda, e acima de 3.000 dólares nos países de alta renda". O quadro é impressionante:
Fonte: extraído da tabela 1 do artigo acima
Alguns comentários: para já, os 5.989 dólares de bens e serviços produzidos por pessoa no mundo seriam amplamente suficientes para uma vida confortável e digna para todos. Alguns claramente são mais dignos que os outros. A distribuição mundial que aparece na primeira coluna é patética. Na segunda coluna, vemos que há uma correlação inversa rigorosa entre quem mais precisa de apoio de saúde, pois é mais atingido, e quem com ela mais gasta. A terceira coluna mostra o peso impressionante que a saúde atingiu (trata-se aqui dos gastos totais com saúde, privados e públicos), 6% no nível mundial, e quase 11% do PIB dos países ricos.
Na última coluna, uma visão particularmente interessante: quanto mais ricos os países, maior a participação do setor público nos gastos totais de saúde. A progressão acompanha rigorosamente a renda. A recomendação que resulta é prática: "Countries should also build up their ability to raise money through taxes" (Os países deveriam incrementar a sua capacidade de levantar dinheiro por meio de impostos). Coloquei no original porque não é todo dia que lemos isto em fontes do FMI. A visão é correta: é preciso sim desenvolver o setor público, e lutar por maior eficiência nos gastos, modernizando e democratizando a gestão.
A tabela abaixo é igualmente interessante, pois mostra justamente que quanto mais pobre o país, mais fraca é a base financeira pública: nos países de renda baixa, a parte do PIB que cabe ao governo central é de 17,7% , elevando-se numa progressão regular à medida que chegamos aos países de alta renda. Os países ricos também falam mal do governo, mas não são bobos (note-se que se trata dos gastos do governo central apenas, os gastos públicos totais são bem mais amplos).
Fonte: extraído da tabela 2 do artigo acima
O estudo lembra ainda dois pontos importantes. Primeiro, o gasto direto com saúde, ou seja, a forma mais privada em que o cidadão paga diretamente os gastos no sistema "out-of-pocket"(literalmente tirando do bolso), constitui "uma das mais regressivas e ineficientes fontes de financiamento do setor da saúde para os pobres, pois lhes nega os benefícios de redistribuição de renda, repartição de riscos e proteção financeira". No entanto, nos países de baixa renda, 60% dos gastos totais com saúde se dão nesta forma, contra apenas 20% nos países ricos. Segundo, os diversos planos privados empresariais e outros são ineficientes em paíse onde a massa de trabalhadores informais é grande.
As áreas sociais, e não só a saúde, precisam de mecanismos públicos para funcionar, acrecentando-se forte controle e participação da comunidade. Fazer dinheiro com saúde na realidade equivale ao que conhecemos como indústria da doença, e não é eficiente em lugar nenhum, a não ser para minorias de alta renda. Fazer dinheiro com educação, na linha da indústria do diploma, tampouco resolve. Nas áreas sociais, precisamos recuperar a capacidade de desenvolver políticas públicas competentes, com forte apoio das organizações da sociedade civil. Como as políticas sociais com fins lucrativos só funcionam para quem tem capacidade de compra, o resultado é um imenso desperdício de recursos e o aprofundamento das desigualdades.
Focamos neste ponto quatro formas de desperdício social: o não aproveitamento de gigantescas reservas de mão de obra, que em vez de serem mobilizadas para melhorar o nível e a qualidade do desenvolvimento tornam-se um problema e um custo; o desperdício das nossas poupanças desviadas para atividades especulativas em vez de servir para financiar a inclusão produtiva e o desenvolvimento sustentável; a criação de um sistema de pedágios sobre o conhecimento tecnológico que dificulta o acesso às populações que mais precisariam de apoio, quando deveríamos pelo contrário fomentar a sua apropriação; e o desequilíbrio entre a economia comercial e as políticas sociais, que gera imensos sobrecustos estruturais. As bobagens simplificadores que reduziram a inovação social a um Estado mínimo e a uma economia baseada no vale-tudo que chamamos educadamente de "mercado", não chegam perto do sistema racional de tomada de decisão que um desenvolvimento sustentável e equilibrado exige. Precisamos ir além.
Felizmente, há cada vez menos gente que acredita em simplificações, sejam elas acadêmicas ou ideológicas. Há uma forte orientação para se buscar valores, bom senso e um pragmatismo voltado para resultados efetivos em termos de qualidade de vida das pessoas, e sustentabilidade do processo. E há um valor relativamente novo que está gradualmente ocupando espaço: a compreensão de que o avanço de uns em detrimento dos outros não resolve grande coisa. A maré tem de levantar todos os barcos. Estamos evoluindo do paradigma da competição para o paradigma da colaboração, da guerra burra de todos contra todos para políticas inteligentes. Não há como não lembrar que a fase mais próspera do capitalismo foi durante os "trinta anos de ouro" após a II Guerra Mundial, quando se seguiram políticas redistributivas de renda e de apoio social generalizado às populações. O bem-estar econômico e social de todos deixa todos melhor, e não só os pobres. Dos ricos, o que se está exigindo cada vez mais, não é bondade, é inteligência.
O que vimos na primeira parte deste pequeno estudo, é que se generalizam claramente dois grandes dramas planetários, que são a degradação do meio-ambiente e a desigualdade. Na segunda parte, identificamos os gigantecos desperdícios de recursos – de mão-de-obra, financeiros, de tecnologias, de gestão – que apontam para os imensos ganhos que podemos gerar com formas mais inteligentes e mais colaborativas de gestão. Nesta terceira parte, apontamos algumas alternativas. Trata-se de mobilizar os recursos subutilizados em função dos dois objetivos principais: o ambiental e o social.
Medir os resultados reais
Voltando ao estudo acima citado do FMI, é interessante constatar a que ponto os avanços dependem muito mais de formas de organização do que propriamente de grandes investimentos: "O mundo em desenvolvimento teve reduções significativas de mortalidade infantil nos últimos 50 anos. Estes ganhos se devem essencialmente à melhor nutrição, intervenções de saúde pública ligadas à água e ao saneamento, e avanços médicos tais como o uso de vacinas e antibióticos". Os grandes avanços constatados nesta área resultam portanto essencialmente de intervenções preventivas de baixo custo, como acesso aos cuidados primários de saúde, alimentação equilibrada, água limpa, vacinas. Com exceção talvez dos antibióticos, nada que envolva grandes inovações tecnológicas complexas ou equipamentos sofisticados, mas exigindo sim maior densidade organizacional na base da sociedade.
Transformado em cálculo econômico, na linha da metodologia tradicional de avaliação do Produto Interno Bruto (PIB), este tipo de medicina preventiva é péssimo: evitar doenças de forma barata não aumenta o Pib. Se temos muitos doentes, intervenções cirúrgicas, compra de muitos medicamentos, aí sim aumenta o Pib, que é calculado sobre o valor comercial dos produtos vendidos. Para uma empresa privada de prestação de serviços de saúde, privá-la de doentes significa, afinal, privá-la de clientes.
Isto significa simplesmente que na forma como avaliamos o sucesso dos nossos esforços econômicos, contabilizamos o valor dos meios despendidos, e chamamos isto de "produto". Na realidade, o produto que nos interessa não é gastar mais com medicamentos e hospitais, e sim não ficarmos doentes. Em outros termos, guiámo-nos pelos meios, e não pelos fins. Estamos calculando o valor comercial de bens e serviços (output), e não os resultados em termos de qualidade de vida (outcome).
O absurdo desta forma de contabilidade é cada vez mais patente, e estende-se a outras áreas. Liquidar a vida nos mares (o chamado overfishing, ou sobrepesca) aparece como aumento do Pib, quando só contabiliza o que se extrai, e não contabiliza a descapitalização planetária que resulta. Cortamos as nossas florestas, destruimos a camada orgânica do solo, liquidamos as reservas de petróleo, esgotamos os lençóis freáticos de água, e nada disto é contabilizado, a não ser como valor positivo no produto vendido, sem desconto dos custos ambientais. Em termos contábeis, o Pib é calculado de forma errada. Nenhuma empresa ou administração pública teria as suas contas aprovadas se não levasse em conta a redução de estoques.
Viveret apresenta como simbólico o caso paradoxal do naufrágio do petroleiro Erika, que gerou imensos esforços de despoluição, contribuindo para o Pib. Uma praia limpa não contribui para o Pib, inclusive porque o lazer gratuito é considerado sem valor em termos econômicos, enquanto uma praia poluída gera grandes contratos, e portanto preciosos pontos percentuais no Pib, que o político vai explorar devidamente como sucesso da sua gestão.
Como podemos avançar, se a nossa bússola, que orienta e avalia para onde vamos, aponta para uma direção errada? Hoje o bom-senso começa a ocupar algum espaço, com o IDH das Nações Unidas, os indicadores de vida Calvert-Henderson, a própria mudança de orientação do Banco Mundial, que antes contabilizava a exploração de petróleo como produto, e hoje a contabiliza como descapitalização.
O PIB não mede o bem-estar. Esta constatação de Jean Gadrey e de Jany-Catrice, autores de um excelente estudo sobre o estado da arte dos indicadores de riqueza, é hoje de suma importância. Na realidade, o PIB mede o valor dos bens e serviços comerciais produzidos durante um ano. Nada diz sobre a riqueza acumulada numa sociedade, nem se o PIB elevado está sendo atingido às custas da venda do capital natural (o petróleo dos paises produtores, por exemplo), nem sobre a queixa da dona de casa que constata que quem plantou e colheu um pé de alface contribuiu para o PIB do país, enquanto ela que comprou, lavou, picou e serviu a salada não contribuiu com nada. O PIB se interessa apenas pelo equivalente monetário de um grupo restrito de atividades.
O problema não consiste necessáriamente em refutar os conceitos adotados nos cálculos do PIB (existe imensa bibliografia a respeito) e sim, uma vez constatado o grupo limitado de atividades que esta metodologia contabiliza, buscar metodologias mais adequadas e completas. Gadrey e Jany-Catrice realizam um excelente trabalho de revisão das diferentes metodologias disponíveis, dos tipos de indicadores, do potencial que hoje se apresenta para quem quer saber não apenas se o PIB cresceu, mas se estamos vivendo melhor.
Encontramos aqui bem ordenados os indicadores objetivos e os subjetivos, os balanços detalhados e os indicadores sintéticos, as avaliações traduzidas em valores monetários e as que se expressam em volumes físicos, os indicadores de produção (outputs) e de resultados (outcomes), a diferenciação de números que apresentam "o que" cresceu na economia, e os que indicam "quem" se beneficiou do processo.
Retrospectivamente, as mudanças são extremamente fortes. Nos anos 1980, com Reagan nos EUA e Margareth Thatcher na Inglaterra, o social saiu do mapa, tudo foi concentrado nos resultados econômicos e financeiros. Na década de 1990, com o IDH do Pnud, assistimos a uma reviravolta, com a visão de que a economia deve servir o bem-estar humano, e não o contrário. A partir daí desenvolvem-se metodologias que avaliam o trabalho voluntário, o trabalho não remunerado doméstico, a destruição ou proteção do meio ambiente, o sentimento de insegurança gerado nos processos produtivos, a dilapidação dos recursos não renováveis (até o Banco Mundial, veja World Development Indicators 2003). O leque de metodologias, a sua sofisticação e confiabilidade, está se tornando bastante impressionante. Pela primeira vez, começamos a ter instrumentos que podem ser disponibilizados, e que deverão permitir ao cidadão saber se o que está sendo feito corresponde às suas opções econômicas, sociais e ambientais.
Os autores passam em revista o "Barómetro de desigualdade e de pobreza" da França, o "Index of Economic Well being", o "Index of Sustainable Economic Welfare", o "Genuine Progress Indicator", o "Personal Security Index", o "Index of Social Health", e outros (além evidentemente do IDH do Pnud), de maneira organizada, de forma que vemos claramente como as medidas de utilidade empresarial (PIB) evoluem para medidas que avaliam os resultados práticos em termos de bem-estar das populações. Ou seja, pela primeira vez, estamos realmente medindo a utilidade social das nossas atividades. Uma sociedade onde a economia vai bem, mas o povo vai mal e o planeta é dilapidado, é evidentemente uma sociedade sem rumos.
Na realidade, gerar instrumentos que permitam à população avaliar o "progresso genuino" e a sua qualidade de vida, o que Gadrey chama de "performance societal", tende a reequilibrar os critérios de decisão na sociedade. Uma população informada pode se tornar cidadã. A população desinformada, ou mal informada, como a que hoje temos, tende a ficar apenas angustiada.
Portanto, criar instrumentos de medida que nos permitam saber para onde vamos já constitui um passo importante, de certa forma é a luz que ilumina o processo decisório, pois define os objetivos. Em outro nível, no entanto, vale a pena dar uma olhada na discussão sobre as formas de organização.
Democratizar o governo
Adotar medidas que nos permitam acompanhar o progresso real da sociedade e do planeta é necessário, mas não suficiente. Temos de assegurar que a sociedade tenha mais possibilidade de cobrar os resultados. As críticas ao tamanho do setor público constituem no geral uma solene bobagem. Nas palavras de um diretor da Ecole Nationale d’Administration, a famosa ENA, melhorar a produtividade do setor público constitui a melhor maneira de melhorar a produtividade sistêmica de toda a sociedade. O Relatório Mundial sobre o Setor Público de 2005, das Nações Unidas, mostra a evolução que houve a partir da visão tradicional da "Administração Pública" baseada em obediência, controles rígidos e conceito de "autoridades", transitando por uma fase em que se buscou uma gestão mais empresarial, na linha do "public management" que nos deu por exemplo o conceito de "gestor da cidade" no lugar do prefeito, e desembocando agora na visão mais moderna que o relatório chama de "responsive governance".
O conceito é difícil de traduzir. A "governança" já foi incorporada ao nosso vocabulário, implicando que no espaço público a boa gestão se consegue por meio da articulação inteligente e equilibrada do conjunto dos atores interessados no desenvolvimento, os chamados "stakeholders". O adjetivo "responsive" já é mais complicado, pois implica de maneira ampla uma gestão sensível e que sabe "responder", ou "corresponder" aos interesses que diferentes grupos manifestam, e supõe sistemas amplamente participativos, e em todo caso mais democráticos. É uma gestão onde o prefeito não dita o seu programa para a cidade, mas ajuda os cidadãos a desenvolver os programas que eles desejam. Podemos chamar isto de "governança participativa".
O resultado é um quadro interessante:
(Onu, World Public Sector Report 2005, p. 7)
Achei melhor reproduzir o quadro em inglês, como vem no original. Os termos nem sempre têm o equivalente em português, e a visão é clara. Teríamos assim três modelos. A evolução da administração pública tradicional (Public Administration) para o New Public Management se baseou numa visão privatista da gestão, buscando chefias mais eficientes. A evolução mais recente para o responsive governance está baseada numa visão mais pública, onde as chefias escutam melhor o cidadão, e onde a participação cidadã, através de processos mais democráticos, é que assegura que os administradores serão mais eficientes, pois mais afinados com o que deles se deseja. É a diferença entre a eficiência autoritária por cima, e a eficiência democrática pela base. A eficiência é medida não só no resultado, mas no processo.
"O modelo de governança...enfatiza um governo aberto e que se relaciona com a sociedade civil, mais responsabilizada e melhor regulada por controles externos e a lei. Propõe-se que a sociedade tenha voz através de organizações não governamentais e participação comunitária. Portanto o modelo de governança tende a se concentrar mais na incorporação e inlcusão dos cidadãos em todos os seus papeis de atores interessados (stakeholders), não se limitando a satisfazer clientes, numa linha mais afinada com a noção de "criação de valor público"..."A teoria da governança olha para além da reforma da gestão e dos serviços, apontando para novos tipos de articulação Estado-sociedade, bem como para formas de governo com níveis mais diferenciados e descentrados"..."A abertura ("openness") e transparência constituem portanto parte deste modelo emergente" (Onu, World Public Sector Report 2005, p.13)
O novo modelo que emerge está essencialmente centrado numa visão mais democrática, com participação direta dos atores interessados, maior transparência, com forte abertura para as novas tecnologias da informação e omunicação, e soluções organizacionais para assegurar a interatividade entre governo e cidadania. A visão envolve "sistemas de gestão do conhecimento mais sofisticados", com um papel importante do aproveitamento das novas tecnologias de informação e comunicação.
Para a nossa discussão no Brasil, estes pontos são muito importantes. Têm a virtude de ultrapassar visões saudosistas autoritárias, e também a pseudo-modernização que colocava um "manager" onde antes tínhamos um político, resultando numa mudança cosmética por cima. É uma evolução que busca a construção de uma capacidade real de resolução de problemas através das pactuações necessárias com a sociedade realmente existente. Esta sistematização de tendências mundiais vem dar maior credibilidade aos que lutam pela reapropriação das políticas pela cidadania, na base da sociedade, em vez da troca de uma solução autoritária por outra.
Democratizar as corporações
Mas as transformações, evidentemente, não se limitam ao setor público. Está gradualmente se enraizando a idéia geral de que nenhuma corporação pode limitar-se a maximizar os lucros, de que toda iniciativa que tem impacto social e ambiental tem de responder de certa forma aos interesses da sociedade em geral. Ou seja, as dimensões sociais e ambientais da atividade empresarial deixam de ser consideradas "externalidades" que a sociedade irá custear através dos impostos e do setor público, para se tornar um fator intrínseco da atividade econômica. Temos notáveis avanços, nesta área, a partir das metodologias do Instituto Ethos de Responsabilidade Empresarial. Não entraremos aqui no detalhe destas mudanças, sobre as quais está se desenvolvendo uma literatura impressionante. Para nós aqui, o essencial é constatar que não basta uma empresa desenvolver algumas atividades sociais para melhorar a imagem: é o próprio "core business", o "negócio" da empresa, que deve ser desenvolvido de maneira responsável. E tornou-se hoje essencial, com o peso político de que dispõem hoje as corporações, que elas contribuam para a construção de um arcabouço jurídico que facilite a gestão da sociedade em geral, indo além dos sistemas de lobbies que buscam torcer as regras do jogo a favor de interesses setoriais.
Podemos duvidar a que ponto interesses setoriais poderiam se interessar pelos objetivos mais amplos da sociedade. No entanto, a tendência nos parece inevitável, pois os ganhos sistêmicos são grandes, e as políticas atuais não se sustentam. Em termos práticos, temos de evoluir para a avaliação da produtividade sistêmica do território, em cada município ou por micro-regiões. Esta outra contabilidade incompleta, que permite que a empresa contabilize os seus lucros, mas se desresponsabilize dos custos ambientais e sociais gerados pela mesma atividade, também precisa ser ultrapassada, e a visão sistêmica por território permite uma avaliação racional.
Assim, buscamos uma sociedade mais informada, para que possa participar, e com metodologias mais atualizadas e desagredadas do que as simples estatísticas do Pib. Mas também temos de trabalhar por instituições de Estado mais descentralizadas e transparentes, e abertas para mecanismos participativos da sociedade civil. E o mundo empresarial tem de trazer o seu quinhão, contribuindo de maneira equilibrada para o econômico, o social e o ambiental, indo além da "cosmética" da marca, avançando para um comportamente efetivamente responsável.
Reforçar a sociedade civil
Como fica a sociedade civil neste quadro? A realidade é que no Brasil temos a sociedade civil de cima, a que se organiza, apoia ONGs, protesta através do Idec, chama o Procon, escreve cartas aos jornais e assim por diante. Enfim, participa, ainda que frequentemente a ausência de sistemas racionais de informação leve a uma participação desencontrada. Estamos avançando rapidamente neste plano, o que nos abre para processos mais democráticos. Mas também temos um andar de baixo na sociedade civil, os que formam os 51% de "economia informal" vistos acima, as vítimas da concentração de renda, os perdidos na noite das imensas periferias urbanas, os acampados nas beiras das estradas, os sem terra, sem teto, sem internet, sem participação efetiva.
Eles estão abrindo caminhos, sem dúvida, e quem acompanha a sua realidade fica impressionado com a forma como conseguem tirar leite de pedra. Para esta massa que podemos considerar no Brasil como formando a base de cerca de 100 milhões de pessoas, muito pouco se faz. Houve avanços indiscutíveis, com o bolsa-familia, elevação do salário mínimo, aumento do Pronaf, disseminação do micro-crédito, abertura de universidades e outras iniciativas extremamente importantes para um país que na realidade nunca olhou para baixo.
Mas temos de ir além. Este é um desafio onde hoje existem numerosas propostas, e insuficientes realizações. Esta problemática constitui outro capítulo, que não abordamos aqui. No quadro do Instituto Cidadania, fizemos durante os anos 2005 e 2006 uma ampla pesquisa junto a esta população e às instituições que desenvolvem programas de apoio. O resultado está sintetizado num documento chamado "Política Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Local", onde são apresentadas dezenas de propostas práticas para ir além das políticas distributivas, e generalizar a inclusão produtiva.
A realidade é que avançamos muito na organização do andar de cima, da política para as classes alta e média, da participação do mundo empresarial, da estabilização da macroeconomia. Mas nenhum país se estabiliza quando deixa de lado uma imensa massa de pobres, e dilapida os seus recursos. Este é o desafio do momento. Apontamos brevemente aqui alguns rumos da mudança organizacional. Um outro mundo é sem dúvida possível, pois o que aprontamos até agora não é recomendável. É tempo de mostrarmos que uma outra gestão é viável.
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Ladislau Dowbor, é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor de "A Reprodução Social: propostas para uma gestão descentralizada", "O Mosaico Partido: a economia além das equações", "Tecnologias do Conhecimento: os Desafios da Educação", todos pela editora Vozes, além de "O que Acontece com o Trabalho?" (Ed. Senac) e co-organizador da coletânea "Economia Social no Brasil" (ed. Senac) Seus numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e social estão disponíveis no site http://dowbor.org – Contato ladislau[arroba]dowbor.org
Ladislau Dowbor
URL: http://dowbor.org
E-mail ladislau[arroba]dowbor.org
14 de Maio de 2007
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