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A tecnologia mal assimilada

A situação é paradoxal, pois nunca se dispós de tanta tecnologia de informação como hoje. Bancos de dados, redes, portais, sites, conferências on-line, educação à distância, grupos de discussão, conexões de banda larga, geoprocessamento, sensoreamento remoto, generalização do acesso à telefonia, – tudo indica uma autêntica explosão de capacidades técnicas de levantamento, organização e distribuição da informação. Também nunca estivemos tão confusos.

A confusão não resulta da insuficiência da informação. Resulta em parte do seu excesso, pois a informação útil, quando afogada num mar de informações que não nos interessam num momento determinado, simplesmente não pode ser utilizada. A informação tem de ser relevante para o que fazemos.

De certa forma, o mundo tecnológico da informação mudou radicalmente, mas continuamos a produzir a informação da maneira tradicional, segundo categorias, formas de organização e de acesso que obedecem a outra era. A luz mal direcionada apenas nos ofusca, não ilumina nosso caminho. O grande desafio que se coloca, é o da organização da informação segundo as necessidades práticas dos atores sociais que intervêm no processo de desenvolvimento social.

A informação existe: trata-se de organizá-la

A informação relevante, na sua imensa maioria, já existe. A metodologia Calvert-Henderson define um conjunto de indicadores nos Estados Unidos, sobre a base das estatísticas já regularmente produzidas no país. O Mapa da Exclusão Social, metodologia desenvolvida por Aldaiza Sposati, se baseia também em informações que são regularmente produzidas. Ao analisarmos fontes como o IBGE, SEADE, DIEESE, as informações produzidas pelas áreas de educação, da saúde, do meio-ambiente e tantas outras, constatamos que o universo de informação produzida já é extremamente amplo.

No plano da análise, existem igualmente iniciativas extremamente competentes, como as que encontramos nos estudos do Ipea, na síntese sobre a situação social do Brasil elaborada para a Cúpula Social de Copenhague, no Relatório sobre o Desenvolvimento Humano no Brasil de 1996, nas experiências pontuais de desenvolvimento de IDH municipal, nas tentativas de elaboração de indicadores sintéticos em Belo Horizonte e outras numerosas experiências pelo Brasil afora.

O desafio, claramente, está no ordenamento da informação, nas metodologias de sistematização, no desenvolvimento de capacidade gerencial que torne a informação relevante acessível aos atores que tomam as decisões, no momento em que dela precisem.

I - O universo de informações: que informação?

Qualquer pessoa que lida regularmente com informação sabe que praticamente não existem limites no seu volume e na sua diversidade. Wim Wenders, comentando o universo de informações que infrentamos, comentava com ironia: de que me adiantaria receber cem jornais ao dia? Ficaria mais informado?

Um bom ponto de partida, portanto, está nesta pergunta simples: que universo de informação nos interessa? Um caminhante na noite não procura iluminar tudo, procura iluminar o seu caminho, e mais precisamente o lugar onde vai pisar, a direção da sua caminhada. onde pisa. Trata-se, como escrevemos no título, de informação para a cidadania e o desenvolvimento sustentável.

Nosso objetivo aqui não é entrar no imenso debate sobre o que é cidadania, ou sobre o que é desenvolvimento sustentável. Esta compreensão, inclusive, será bastante diferente segundo as culturas, os estágios de desenvolvimento, os valores de determinados grupos ou nações, e deverá evoluir inclusive com a sucessão de gerações. Para o nosso objetivo, e nesta etapa, basta definir de maneira ampla que queremos melhorar a qualidade de vida, de maneira sustentável, e através de procedimentos democráticos.

A qualidade de vida tem sido resumida ao nível de renda per capita. É o referencial que nos fornece, por exemplo, o Banco Mundial através dos seus relatórios. Esta visão, é preciso dizê-lo, continua amplamente dominante no nível das instituições mais poderosas, onde o progresso é identificado essencialmente com o crescimento da economia. A partir de 1990, com a produção dos relatórios sobre o desenvolvimento humano, ampliou-se signficativamente esta visão, ao acrescentar o nível educacional e o nível de saúde ao indicador sobre renda. Esta nova visão constitui um progresso muito significativo. No entanto, ainda é demasiado simplificada como indicador de qualidade de vida, e deixa no escuro uma série de elementos chave da ação social. Como ponto de referência, e para servir de base de discussão, adotaremos aqui uma visão mais ampla, de doze indicadores básicos de qualidade de vida, tal como foi desenvolvido na metodologia dCalvert-Henderson:

  1. Educação
  2. Emprego
  3. Energia
  4. Meio Ambiente
  5. Saúde
  6. Direitos Humanos
  7. Renda
  8. Infraestrutura
  9. Segurança Nacional
  10. Segurança Pública
  11. Lazer
  12. Habitação

Estes doze objetivos de qualidade de vida constituem de certa maneira o nosso horizonte. Com o detalhamento dado em cada um dos doze pontos, desdobrados em indicadores mais pontuais, consegue-se cobrir o essencial do universo de informações necessárias para orientar a nossa caminhada.

Os objetivos devem ser construidos de maneira sustentável. O desenvolvimento sustentável, tal como a qualidade de vida, presta-se a inúmeras discussões, pesquisas, posicionamentos. Um vez mais, o nosso eixo de trabalho sendo aqui a organização da informação, buscaremos nos apoiar no imenso avanço que constitui a discussão mundial em torno à Agenda XXI, e aos princípios resumidos na Carta da Terra:

1. Respeitar a Terra e a vida em toda sua diversidade.

2. Cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor.

3. Construir sociedades democráticas que sejam justas, participativas, sustentáveis e pacíficas.

4. Garantir as dádivas e a beleza da Terra para as atuais e as futuras gerações.

5. Proteger e restaurar a integridade dos sistemas ecológicos da Terra, com especial preocupação pela diversidade biológica e pelos processos naturais que sustentam a vida.

6. Prevenir o dano ao ambiente como o melhor método de proteção ambiental e, quando o conhecimento for limitado, assumir uma postura de precaução.

7. Adotar padrões de produção, consumo e reprodução que protejam as capacidades regenerativas da Terra, os direitos humanos e o bem-estar comunitário.

8. Avançar o estudo da sustentabilidade ecológica e promover a troca aberta e a ampla aplicação do conhecimento adquirido.

9. Erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental.

10. Garantir que as atividades e instituições econômicas em todos os níveis promovam o desenvolvimeto humano de forma eqüitativa e sustentável.

11. Afirmar a igualdade e a eqüidade de gênero como pré-requisitos para o desenvolvimento sustentável e assegurar o acesso universal à educação, assistência de saúde e às oportunidades econômicas.

12. Defender, sem discriminação, os direitos de todas as pessoas a um ambiente natural e social, capaz de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e o bem-estar espiritual, concedendo especial atenção aos direitos dos povos indígenas e minorias.

13. Fortalecer as instituições democráticas em todos os níveis e proporcionar-lhes transparência e prestação de contas no exercício do governo, participação inclusiva na tomada de decisões, e acesso à justiça.

14. Integrar, na educação formal e na aprendizagem ao longo da vida, os conhecimentos, valores e habilidades necessárias para um modo de vida sustentável.

15. Tratar todos os seres vivos com respeito e consideração.

16. Promover uma cultura de tolerância, não violência e paz.

O detalhamento de cada um dos 16 princípios pode ser consultado em www.earthcharter.org .

A construção da qualidade de vida e do desenvolvimento sustentável deverá dar-se através de processos democráticos. O ponto 13 da Carta da Terra acima, nos dá inclusive uma boa referência do que buscamos: "Fortalecer as instituições democráticas em todos os níveis e proporcionar-lhes transparência e prestação de contas no exercício do governo, participação inclusiva na tomada de decisões, e acesso à justiça." O século XX nos legou grandes simplificações sociais. De um lado, propostas de uma estatização generalizada, com o planejamento central como princípio regulador, e uma classe redentora, o proletariado; de outro lado, a privatização exacerbada, a mão invisível como instrumento de regulação, e outra classe redentora, a burguesia. Em nome destas simplificações se fizeram, e se promovem ainda, barbaridades simplesmente inaceitáveis para um mundo civilizado. O fato de se deixar morrer de fome e de outras causas ridículas 11 milhões de crianças por ano, quando dispomos dos recursos técnicos, financeiros e organizacionais para resolver o problema, é um choque para a mais elementar decência humana. Em outros termos, a questão da democratização dos processos de tomada de decisão na sociedade tornou-se essencial para a própria construção da qualidade de vida e de uma ambiente sustentável.

Neste campo essencial, precisamos também de indicadores: indicadores de governança, sobre o nível de informação do cidadão, sobre a participação nas decisões, sobre o capital social em construção. É importante salientar que este tipo de indicadores não faz parte da metodologia Calvert-Henderson, e tampouco temos referências razoavelmente consensuais como a Carta da Terra, ou a Agenda 21. Trata-se, aqui, de um universo em construção. Um ponto de referência são os indicadores de capital social elaborados por Robert Putnam:

  1. Medidas do nível de organização da vida comunitária
  2. Medidas de engajamento em assuntos públicos
  3. Medidas de participação em ações de voluntariado
  4. Medidas de sociabilidade informal
  5. Medidas de confiança social

São indicadores elaborados para os Estados Unidos, e poderiam servir de base para a elaboração de indicadores de governança participativa no Brasil. De toda forma, é um eixo essencial, e em construção: faz parte da boa governança o cidadão saber como evolui a própria governança.

A informação está no centro deste processo, pois involve diretamente todos os outros direitos. Segundo o World Information Report da Unesco, "há uma grande diferença entre ter um direito e poder exercê-lo. Pessoas pouco informadas se vêm frequentemente privadas dos seus direitos porque lhes falta o poder para o seu exercício...O acesso à informação é um direito que temos, como o acesso à justiça, e deveria ser assegurado gratuitamente como outros serviços públicos".

A informação aparece portanto como uma condição chave da construção de processos democráticos de tomadas de decisão. Este universo de informação, ainda que amplo, é fortemente direcionado: envolve a construção de indicadores para que saibamos como anda a nossa busca de um melhor nível de qualidade de vida; envolve igualmente a informação sobre a sustentabilidade do processo; e envolve finalmente a transparência das nossas tomadas de decisão, sejam elas de governo, de empresas ou de uma organização social.

Mais do que da construção de novos universos de informação, trata-se aqui de desenvolver as metodologias e formas de organização que permitam a produção, sistematização e divulgação de informações normalmente já existentes, e que precisam ser disponibilizadas de forma a permitir a ação concreta dos diversos atores sociais. Não são ncessárias, aqui, grandes teorias: o que precisamos é de um choque de bom senso. Somos literalmente bombardeados, a cada momento, com informações sobre o desodorante da moda, mas não temos uma informação tão importante para a nossa cidadania, como, por exemplo, quanto tempo se espera o ônibus, em média, na nossa cidade. Podemos viver com muito menos informação do que o dilúvio a que somos diariamente submetidos. Mas temos de ter a informação que efetivamente nos interessa.

II - Os atores sociais: informação para quem?

O que nos interessa, portanto, é como transformar a informação em instrumento de promoção da qualidade de vida, de um desenvolvimento sustentável, e de um processo político transparente e participativo. O universo de informação a focar, portanto, é o que promove estes processos. A informação, no entanto, é uma construção social, e depende dos atores que a produzem, divulgam e utilizam.. Em outros termos, tão importante como definir o universo de informações, é identificar os atores-chave do processo.

De forma geral, buscamos hoje articular o Estado, o mundo empresarial e a sociedade civil, visando um desenvolvimento que seja socialmente justo, economicamente viável, e sustentável em termos ambientais. Nesta visão de articulações sociais, não podemos esquecer que a sociedade civil constitui o objetivo final das nossas atividades: quem terá, ou deixará de ter, qualidade de vida, é a sociedade, e as pessoas físicas que a constituem, e não o "Estado" ou uma pessoa jurídica como a "empresa". O Estado e a empresa, por importantes que sejam, constituem meios. Inclusive, é da participação informada da sociedade que depende em grande parte o bom funcionamento tanto do Estado como das empresas.

Em termos de informação, no entanto, o fato é que de forma geral todos visualisamos a produção da informação como um processo de baixo para cima. Organizamos informação para guiar as ações de governo, para melhorar as decisões de um banco de desenvolvimento, para organizar a política de investimentos de uma empresa, ou até para escrever uma tese de doutorado. Ou seja, a sociedade civil é vista de forma geral como fornecedora de informações, para que os centros de decisão que ficam mais acima possam levar os seus interesses em consideração, ou assegurar melhor os seus próprios interesses. Este tipo de filosofia da informação é coerente com uma ideologia política que vê a sociedade como usuária, ou até como "cliente", mas não como sujeito do processo decisório. O eixo central, portanto, consiste em entender que é a sociedade civil no seu conjunto que deve ser adequadamente informada, para que possa participar ativamente das decisões sobre os seus destinos.

O Estado constitui sem dúvida um ator chave do processo de geração de uma sociedade informada e participativa. No caso brasileiro, não faltam as instituições, os técnicos ou os equipamentos. Os problemas – e o potencial de progresso – situam-se na alteração do universo de informações a focar, na metodologia de trabalho, e nas formas de divulgação.

A pergunta a se colocar é simples: em que medida os procedimentos atuais ajudam a promover a participação cidadã para o desenvolvimento sustentável? Haverá aqui um conjunto de aportes possíveis.

Um ponto chave é a metodologia de elaboração das contas nacionais. Não se leva em conta a descapitalização gerada pelo consumo ou destruição dos recursos naturais, o que infla artificialmente o nosso Pib; a saúde e a educação são considerados gastos, quando constituem um dos investimentos mais produtivos, o investimento no ser humano; não se leva em conta de forma adequada o desenvolvimento das infraestruturas – isto para mencionar alguns elementos da transformação da metodologia de cálculo das contas. O que ocorre aqui, como em outras áreas de organização das informações sociais, é que as mudanças no mundo foram bem mais rápidas do que as instituições, e as informações produzidas já não iluminam adequadamente o caminho.

Outro ponto importante reside na ausência de foco das informações. As informações, como já dissemos existem, e em quantidades diluvianas, produzidas por instituições especializadas como IBGE, SEADE e outras, bem como por ministérios, pelo Banco Central, por governos de Estado, por administrações municipais. De forma geral, estas informações são geradas segundo uma filosofia da oferta, daquilo que a instituição considera que deveria produzir, com pouca consideração da demanda, ou seja, daquilo que a sociedade precisa saber para uma participação política informada.

Finalmente, as informações não se juntam, ou não se articulam, em função de usos práticos e diferenciados dos diferentes atores sociais. Da mesma forma como se publicam anualmente as contas nacionais, por exemplo, deveria ser publicado um tipo de balanço que apresente o "Estado da Nação", articulando os indicadores básicos necessários para o posicionamento dos atores sociais, e para que a sociedade possa acompanhar os progressos e as ameaças que surgem. Seriam, de certa maneira, as contas nacionais do ponto de vista do cidadão. Mas é igualmente essencial assegurar que um esforço simétrico seja realizado no nível dos Estados e sobretudo dos Municípios, construindo gradualmente um sistema nacional de informação cidadã.

O mundo empresarial constitui hoje o principal vetor de informações do planeta. Gasta cerca de 500 bilhões de dólares por ano em publicidade, e com isto assume uma presença dominante no próprio conteúdo das informações, pela influência que exerce nos meios de comunicação. O resultado prático é que somos literalmente inundados por mensagens repetitivas destinadas a influenciar comportamentos aquisitivos, mas muito pouco informados sobre os produtos, sobre as empresas, sobre a própria responsabilidade social e ambiental do mundo econômico.

Este ponto é sumamente importante, pois se trata de um volume gigantesco de recursos, e uma atitude pro-ativa das empresas, no sentido de manipular menos, e informar mais o consumidor, poderia ter um efeito poderoso no reequilibramento das relações entre empresa e cidadão. Tirando as consequências práticas dos recentes estudos de Stiglitz e outros sobre a assimetria de informações entre empresa e consumidor, e os consequentes desequilíbrios de poder de negociação, haveria uma imensa contribuição por parte das empresas na linha da transparência das práticas sociais e ambientais, mas também nos impactos práticos do core business sobre a sociedade. Intermediários financeiros que cobram juros de mais de 180%, mas ajudam algumas escolas, fariam sem dúvida melhor adaptando as suas políticas de crédito às necessidades das empresas produtivas, ou abrindo sistemas de micro-crédito para comunidades.

Nesta linha houve indiscutivelmente fortes avanços no Brasil, em particular na linha dos balanços sociais e ambientais, da metodologia desenvolvida pelo Instituto Ethos e outros. O que temos pela frente é a ampliação deste processo, e a generalização da transparência permitida, por exemplo, pelo princípio the right to know adotado nos Estados Unidos, que amplia os direitos de informação do cidadão sobre as empresas. Seria também legítimo e útil, por exemplo, que uma porcentagem dos gastos em publicidade revertesse para o financiamento de informação ao consumidor por organizações da sociedade civil, permitindo uma visão mais equilibrada por parte do cidadão.

Finalmente, é importante lembrar que o mundo dos gigantes transnacionais, o que as Nações Unidas tem chamado de galáxias econômicas, é profundamente diferente das micro e pequenas empresas enraizadas nos seus bairros, nas suas comunidades. O mundo da especulação financeira em grande escala, dos produtos mundiais, da imagem, das grifes, de Davos, tem pouco a ver com a oficina mecânica da nossa vizinhança, da padaria, da confecção, lavanderia e tantas outras iniciativas que asseguram o essencial das nossa necessidades cotidianas. O contrapeso informativo das transnacionais tem de ser assegurado por ONGs de escala diferente, de porte internacional, enquanto o reequilibramento relativamente à pequena e média empresa local depende muito mais de organizações de base comunitária e de redes locais de informação.

Todos têm a ganhar com isto. Ove Pedersen, da Dinamarca, trabalha com o conceito de negotiated economy, economia negociada, onde uma empresa que se instala num município vai consultar a prefeitura, os sindicatos, as organizações não governamentais, buscando um equilíbrio entre os seus interesses e os da comunidade. Resultam talvez, a curto prazo, lucros mais moderados para a empresa, mas no médio e longo prazo todos ganham com uma produtividade sistêmica maior. A construção deste tipo de lógica econômica, rigorosamente na linha do win-win¸ depende evidentemente de uma cidadania bem informada.

As organizações da sociedade civil constituem aqui o nosso terceiro personagem. São tanto produtoras, como divulgadoras e usuárias dos sistemas de informação. O seu papel é fundamental, talvez menos na produção de estatísticas sistemáticas, e mais na produção de informação organizada sobre problemas específicos, e sobre comunidades delimitadas. Desempenham igualmente um papel fundamental, junto com os meios universitários, na análise integrada das informações. Finalmente, tem um papel de validação da informação. Quando se quer saber o montante de danos causados pelo naufrágio do Valdez no Alasca, temos as informações da Exxon, que os minimiza, e as do governo do Alasca, que os maximiza, um para pagar menos, outro para cobrar mais. As informações mais confiáveis são de uma Ong que foi no local, avaliou os danos e apresentou uma visão equilibrada.

Até agora este universo trabalha no Brasil de maneira extremamene desconexa, gerando um grande volume de informação que é de difícil acesso. Trata-se de documentos, dados e estudos de grande valor, mas frequentemente distribuidos em papel nos mais diversos congressos e reuniões, ou disponíveis em inúmeros sites. Instrumentos integrados de navegação começaram a ser produzidos, como o site da RITS (Rede de Informações do Terceiro Setor), mas o que precisamos é de uma Web com pesquisa temática, de forma a que se possa saber com facilidade, por exemplo, que experiências de parceria de escolas com empresas existem e com que resultados. Como o Terceiro Setor trabalha, pela sua própria natureza, com um grande número de experiências pequenas, enraizadas na comunidade, articular estas experiências em rede tornou-se essencial, como forma de dinamizar o conjunto, gerar sinergias e evitar que se busque reinventar a roda em cada lugar. As novas tecnologias permitem isto, e associações como a Abong (Associação Brasileira de Ongs) poderiam articular o sistema.

Além dos tres grandes universos que representam o Estado, as empresas e a sociedade civil, deveremos trabalhar para articular dois atores cuja matéria prima e razão de existência é a informação: a mídia e a universidade.

A mídia no Brasil é extremamente concentrada, cabendo o seu controle no essencial a alguns grupos econômicos familiares. Com isto ficaram praticamente desarticulados os sistemas locais de informação, que poderiam desempenhar um papel importante ao dinamizar iniciativas locais de gestão participativa. Mais de 90% dos domicílios brasileiros têm televisão, e pode-se imaginar o poder desta rede de comunicação se fosse utilizada para comunicar iniciativas que dão certo, para dinamizar campanhas, para informar sobre problemas ambientais, sociais ou econômicos. A centralização e concentração dos meios de comunicação corresponde a uma era em que eram necessários gigantescos investimentos para assegurar a geração e distribuição de imagens. Hoje, as tecnologias permitem sistemas simples e baratos, acessíveis para a maioria das regiões do país, e os monopólios existentes só se mantêm pela capacidade de pressão política herdada de outros tempos. A descentralização e democratização dos meios de comunicação torna-se portanto essencial.

Mas isto não significa que não se possa avançar rapidamente dentro do quadro existente. Um exemplo inovador significativo é a ANDI, associação de jornalistas que organiza em rede os jornalistas interessados em divulgar a situação da criança no Brasil. Este tipo de informação permite que inúmeros segmentos de dados desarticulados se transformem em informação temática organizada, dando preciosos instrumentos de intervenção sobre a realidade a todos os que trabalham com a problemática da criança e do adolescente no país.

De forma geral, é espantosa a quantidade de informações que a população recebe nas televisões e nas rádios, e igualmente fantástica a gama de revistas penduradas em qualquer banca de jornal: no entanto, continuamos com uma população impressionantemente desinformada. Paga-se o preço de uma mídia centrada no negócio, e essencialmente dependente, no seu conteúdo, da publicidade. O próprio mundo empresarial teria toda vantagem em evoluir para o sistema de apoio a programas socialmente úteis, com créditos dados aos que apoiam a sua elaboração.

Estas e outras idéias poderão ser discutidas, mas o essencial é que o personagem mídia tem um papel central a desempenhar no processo de construção de uma cidadadania informada.

As Universidades constituem também neste plano um impressionante acervo de recursos subutilizados. Da mesma forma como o Estado fatia as políticas em setores – educação, saúde, segurança etc. – a universidade reproduz esta segmentação através das áreas científicas e disciplinas, dificultando a formação de pessoas com capacidade de gerar uma visão integrada dos problemas ligados à qualidade de vida e à cidadania ativa.

Por outro lado, há uma clara dificuldade do mundo universitário interagir com os diversos atores sociais, o que dificulta a geração de uma orientação mais forte do meio universitário para respostas às necessidades sociais. O que se sente como necessidade, em outros termos, é uma universidade que seja um pouco menos lecionadora, e um pouco mais organizadora dos conhecimentos na região onde está inserida. Um exemplo positivo é aqui a experiência de Aldaiza Sposati, que elaborou o Mapa da Exclusão Social de São Paulo, cruzando colaborações das mais variadas áreas científicas, e respondendo a problemas concretos de informação da sociedade. É significativo que este trabalho tenha sido possível cruzando fronteiras disciplinares, articulando várias instituições, e com forte apoio da mídia para a divulgação. Nas palavras de James Austin, "vivemos numa era em que nenhuma organização pode ter sucesso isoladamente".

O Universo da educação dispõe de grandes capacidades de organização do conhecimento, e tem uma vocação natural para formar cidadãos. Nada mais natural do que dinamizar o seu potencial científico e organizacional para gerar sistemas de informação para uma cidadania participativa. Na hipótese da criação de uma rede de Informações para a Cidadania, ou instituição do gênero, as universidades e as escolas seriam candidatas naturais a representarem as antenas, ou os nodos da rede. Isto por sua vez implicaria na busca de soluções organizacionais, como por exemplo a criação de conselhos consultivos, compostos de representantes dos diversos atores sociais, junto a cada instituição, para dinamizar a interação entre as necessidades das comunidades e o meio científico.

Não há dúvida que cada um dos atores sociais tem facilidades particulares para uma dimensão da informação cidadã. O Estado tem como melhor organizar estatísticas básicas regulares, as empresas podem melhor informar sobre os impactos sociais e ambientais das atividades econômicas, as ONGs têm mais capacidade de trabalhar em profundidade segmentos especializados de informação, a mídia tem peso essencial na divulgação, a universidade na pesquisa e na análise. O essencial, no entanto, é gerar uma capacidade de sinergia entre os diversos universos.

A pouco produtividade sistêmica dos diferentes atores resulta da falta de articulação, da segmentação das iniciativas, da ausência de um foco que articule as informações em torno a um resultado prático, que é a geração de uma cidadania informada e participativa.

É essencial também levar em conta, conforme vimos, que o cidadão busca informações que iluminem a sua ação. E a ação cidadã se dá em grande parte no univeso onde vive, essencialmente na sua cidade, no seu município. É onde as mais variadas informações, sobre quanto dinheiro existe para investir na prefeitura, sobre as necessidades essenciais da população, sobre o potencial sub-utilizado, sobre a qualidade de vida local, podem se transformar em iniciativas práticas e convergentes de líderes comunitários, sindicalistas, empresários, secretários municipais, igrejas, rádios comunitarias e outros atores sociais.

III - Os desafios da organização: os instrumentos

De forma geral, portanto, a organização da informação para a cidadania participativa e o desenvolvimento sustentável passa por algumas redefinições metodológicas referentes ao universo de informações, mas também pela construção de parcerias, pela organização de redes de informação, pela articulação dos subsistemas de informação existentes, e pela geração de um movimento social que motive os diversos atores sociais a participar de um esforço conjugado.

Envolve também uma filosofia, que é de se evitar a visão de um mega-banco de informações, privilegiando pelo contrário estruturas leves e interativas, com muita flexibilidade e capacidade de ajustes. Em outros termos, o problema da gestão da informação, numa cultura organizacional muito mais centrada na competição e no individualismo do que na colaboração e no partilhar (share), pode-se constituir num entrave central.

A dinamização de uma rede de informações para a cidadania envolve portanto a discussão de uma série de instrumentos que possam contribuir para a formação de um processo amplo e diversificado. Vamos listar aqui alguns dos que nos parecem mais significativos.

1 – metodologia das contas nacionais: trata-se essencialmente de retomar numerosas propostas existentes para que as contas nacionais reflitam efetivamente a situação do país e a evolução da qualidade de vida da população. Será necessário discutir as experiências internacionais neste campo, e estudar com o IBGE e outras instituições as formas de organizar a revisão metodológica das contas. Particular importância teria o desdobramento das contas em contas estaduais e municipais, para que o conjunto do sistema permita dinâmicas mais participativas da sociedade.

2 – Brasil: Balanço Anual de Qualidade de Vida: seria importante criar condições para a elaboração anual de um balanço de qualidade de vida do país. Esta poderia ser na realidade uma "tasrefa estruturadora", na medida em que levaria as mais diversas instâncias interessadas a se organizarem para produzir regulamente um conjunto de informações. O relatório "Calvert-Henderson Quality of Life Indicators" poderia constituir uma inspiração, na medida em que combina indicadores com análise concreta da situação.

3 – Sistemas municipais de informação econômica e social: grande parte da impressionante deficiência dos poderes locais em informação organizada deve-se ao fato que as informações são elaboradas para abastecer ministérios, o tribunal de contas e outras instâncias externas, não sendo cruzadas, oragnizadas e integradas no nível municipal, que é onde o cidadão comum e a sociedade organizada mais poderiam transformar informação em participação cidadã. Seria o caso de elaborar a metodologia básica de um sistema de informação integrada municipal, de maneira a permitir a geração de uma capacidade de informação na base da sociedade. É importante lembrar que a forma atual de transmissão de informação setorial para cima, para os respectivos ministérios, torna esta informação pouco confiável para as contas nacionais, e pouco útil para os atores sociais locais.

4 - Rede de Informação para a Cidadania: a gradual geração de um sistema de informação para a cidadania, diferentemente de um esforço pontual de elaboração de um relatório, envolve a criação de uma rede de informação que articule os principais atores envolvidos. O núcleo organizador poderia ser um Brasil-Watch, ou outra instituição semelhante, mas o essencial é discutir os desafios de gestão da informação que a iniciativa envolve. A solução que se sugere é a de um núcleo articulador que funcione em formato de consórcio (como a Web é hoje administrada) articulando uma rede extremamente autônoma, e com definição de protocolos de comunicação.

5 – Rede de documentação da sociedade civil – Amazong.org: A sociedade civil tem como característica a multiplicidade de pequenas iniciativas dispersas pelo país afora, com fragil capacidade de contatos. A Rits (Rede de Informação do Terceiro Setor) já constitui um instrumento importante de articulação, e há inúmeros pequenos sites. Tal como está constitutida, a rede não permite acessar por temas, região ou outras categorias, as informações dispersas. A proposta consiste em gerar um instrumento de circulação de documentos, estudos e idéias análogo ao que a Amazon.com faz comercialmente para livros.

6 Sistemas locais de comunicação: o pouco que existem em termos de comunicação local, como televisões locais e rádios comunitárias, tem sido objeto de ataques sistemáticos dos grandes monopólios da mídia. O direito de uma comunidade de ter os seus instrumentos de comunicação é um direito vital, e a sua ausência dificulta imensamente qualquer iniciativa participativa. O problema envolve tanto a dimensão jurídica (recuperação do direito), como soluções técnicas (soluções para pequenas emissoras) e de gestão (gestão em consórcio, soluções intermediárias entre a privatização e a estatização).

7 – O conhecimento local nas escolas: hoje as crianças aprendem de tudo nas escolas, mas não aprendem nada sobre a cidade onde moram, sobre os seus problemas econômicos e sociais, sobre o meio ambiente local e assim por diante. De certa forma, trata-se de organizar a participação das escolas na rede de informação cidadã, intoduzindo nos curriculos formais o estudo da cidade onde as crianças vivem. Com isto estaremos dinamizando a elaboração de manuais escolares sobre cada cidade ou região, de atlas locais como já sem tem vários exemplos, enriquecendo a base de conhecimento cidadão de toda uma geração.

8 – Problema das competências territoriais por setor de atividades: hoje a segurança divide o território de uma maneira, a educação de outra, a saúde de outra ainda, gerando um emaranhado de divisões territoriais que torna extremamente difícil a integração das informações para elaborar indicadores integrados de qualidade de vida. A confusão das delimitações territoriais torna igualmente difícil a criação de dinâmicas participativas, pois o conselho de educação que se reune representa uma população diferente da representada pelo conselho de outro setor. A metodologia do ordenamento territorial das divisões torna-se portanto uma necessidade, podendo-se aqui acompanhar o esforço da Cidade de São Paulo que procedeu a uma racionalização das divisões em conjunto com a organização das subprefeituras. Trata-se aqui de um ponto importante da gestão da informação cidadã, visando reduzir a fragmentação das informações e dos espaços de participação.

9 – Levantamento e discussão das experiências existentes: é preciso evitar de reinventar a roda. Precisamos orgasnizar e difundir as diversas experiências de informação ao cidadão existentes em diversos países, em diversas Ongs, em diversos meios empresariais, em diversas cidades. Trata-se aqui tanto de soluções jurídicas, como financeiras, organizacionais e técnicas. Uma das primeiras iniciativas da Rede de Informação Cidadã poderia ser a organização de um levantamento neste sentido, e a disponibilização das experiências em site específico ou numa rede de sites interessados. As universidades podem ter um papel importante neste esforço.

10 – Redes temáticas na mídia: Da mesma forma como a ANDI articula os meios de comunicação, jornalistas, Ongs e empresas que informam sobre problemas da criança e do adolescente, precisariam ser organizadas outras redes temáticas ligadas à construção da cidadania, informando sobre experiências inovadoras, alimentando a mídia com conteúdos que facilitam a dimensão partipativa do cidadão. Não é difícil conceber, tal como existe o "Pequenas empresas, grandes negócios", uma rede de "pequenas iniciativas, grandes resultados" na linha das iniciativas comunitárias, de experiências participativas. De toda forma, é importante lembrar que a informação só adquire qualidade quando é regulamente trazida à luz do dia, avaliada, criticada, utilizada, tornando-se portanto indispensável a parceria muito dinâmica com os meios de comunicação.

11 – apóio empresarial as iniciativas de informação cidadã: as iniciativas que têm surgindo no mundo empresarial, envolvendo um grende esforço de organização de informações referentes à responsabilidade social e ambiental, deveriam ser melhor articuladas com os outros subsistemas de informação, tanto das entidades do Estado como das organizações da sociedade civil, permitindo a visão integrada do progresso ou dificuldades em cada comunidade, cidade ou região.

Os pontos acima trazem idéias a serem discutidas para se dinamizar a Informação para a Cidadnia e o Desenvolvimento Sustentável. Envolvem a área jurídica (criação de um referencial jurídico de direito à informação), a área da administração (gestão da informação), da economia (metodologia de contas nacionais), da política (articulação de parcerias), além das áreas específicas que trabalham com dimensões específicas da qualidade de vida como a educação, saúde, segurança, lazer e outros.

O desafio é grande. Criar instituições especializadas que tratam de uma fatia da realidade é relativamente simples. Organizar a colaboração e as redes interinstitucionais é bastante mais complexo. No entanto, devemos lembrar sempre que para o cidadão concreto a realidade não é fatiada em setores: a qualidade de vida é um processo integral.

Da mesma forma, puxar informações específica para uma instituição de pesquisa, é relativamente simples. Organizar a devolução da informação produzida para a própria comunidade, para os cidadãos que são em última instância os donos do processo, é evidentmente mais complexo. Mas se trata, nesta era que evolui para a sociedade do conhecimento, de um desafio vital.

Ladislau Dowbor, é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor de "A Reprodução Social", "O Mosaico Partido", "Tecnologias do Conhecimento: os Desafios da Educação", todos pela editora Vozes, além de "O que Acontece com o Trabalho?" (Ed. Senac) e co-organizador da coletânea "Economia Social no Brasil" (ed. Senac) Seus numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e social estão disponíveis no site http://dowbor.org

 

Ladislau Dowbor

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