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O delator é vítima do sistema ou é responsável por sua escolha pessoal?
A delação em si mesma não é um ato moral porque não visa o bem coletivo, como já foi dito anteriormente. Também não faz parte da natureza humana ser delator, embora certas ‘condições’ possam pressionar estruturas psíquicas mais frágeis de encontrarem saída nesse tipo de ato, como forma de sobrevivência.
Jean-Paul Sartre (1978) observa que qualquer sujeito humano é livre para escolher ser covarde ou herói. Usando a mesma linha de raciocínio podemos também dizer que somos livres para escolher delatar ou não, denunciar ou não. Assim como o covarde se faz covarde e o herói se faz herói, também o delator se faz delator, isto é, se o sujeito escolheu ser delator por motivo de vingança, inveja, ou para se safar de uma pressão do grupo ou agradar um chefe, somente ele é responsável pela sua escolha. Nos campos de concentração nazista os que escolheram, eticamente, resistir até o limite de suas forças físicas e psicológicas preferiram pagar com sua vida para não entregar os companheiros. É verdade que a violência – a tortura – tem poder para forçar alguém a dizer coisas contra a sua vontade, ou seja, depende da estrutura psíquica e da formação moral da vítima. Nietzsche dizia que, nesses casos, o veneno que não chega a matar pode fortalecer o caráter.
Muitos delatores não são más pessoas, mas personalidades que fraquejam diante de pressões, ameaças e promessas disso ou daquilo. Muitas delações foram e continuam sendo praticadas em nome de causas justas e injustas como a "liberdade democrática", a "causa proletária", a "revolução cultural’, a "supremacia da raça ariana", os "valores corretos", a "moral e os bons costumes", a "guerra santa", e até de "Deus"[9]. "O futuro de uma ilusão" (Freud), o auto-engano e a "razão cínica" são mecanismos psíquicos recorrentes pelos sujeitos convictos de que seu ato é legitimo ou moral.
Parece que o pior delator é o delator moralista e cínico, porque faz desse seu ato infame um fundamento de moral coletiva. O delator cínico se assemelha ao fundamentalista religioso ou laico, porque interpreta a moral literalmente[10]; ele confunde moral e ética, e, entende que "vale tudo" para fazer impor a "sua" idéia de moralidade para todos, custe o que custar.
Tal como a Fênix, a onda denuncista ou dedurista sempre renasce das cinzas, numa espécie de transe[11] coletivo[12], causando efeitos danosos nos inocentes, destruindo famílias, amizades e empreendimentos (ver caso da Escola Base, no nosso próximo artigo), banindo o acusado do grupo antes do julgamento, obrigando a suportar a tortura psicológica e os assédios morais do cotidiano. Como nem todos conseguem suportar o "jogo" de forças de um julgamento de um tribunal, não raro o inocente opta pelo suicídio como forma última de libertar do sofrimento e recuperar a dignidade social.
Nesse sentido, vale a pena assistir preventivamente alguns filmes que discutem algumas conseqüências do ato delatório: As bruxas de Salen, Sindicato dos ladrões, A onda, Todos os homens do presidente – o Caso Watergate, Testa de ferro por acaso – de W. Allen, Dogville, Acusação...(veja lista no final). Os filmes sobre a máfia são interessantes para se refletir – e criar uma consciência preventiva – sobre as conseqüências psíquicas e sociais do dedurismo e da traição. O livro "O veneno da madrugada" de Gabriel Garcia Márquez, e filme, previsto para ser lançado em setembro/2005, de Ruy Guerra, embora seja ficção ajuda a refletirmos sobre o assunto. A trama envolve os moradores de uma pequena cidade ameaçados com bilhetes anônimos. Cada cidadão pode ser a próxima vítima. E cada um pode ser o autor dos bilhetes. Seria um alívio se tudo isso fosse apenas ficção...mas não é.
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[1] Este artigo faz parte de uma série de três, dos quais um já publicado. São modestos pré-estudos sobre o assunto delação-denúncia e sua possível relação com a educação. Trabalhamos com o seguinte pressuposto: quanto mais autoritária é a educação familiar e escolar, mais existe o incentivo velado ou manifesto à delação. AOS LEITORES E AMIGOS, meus agradecimentos por terem colaborado com idéias, sugestões, críticas, e até mesmo revelando seu sofrimento pessoal "ao vivo" ou por e-mail. Peço que continuem me enviando sua colaboração.
[2] Reich, W. Escuta, Zé Ninguém. Santos: Martins Fontes, 1974: 37.
[3] Historinha pessoal. No período da ditadura militar, tínhamos um professor de português que foi delatado por um pai de aluno ao DOPs, por ter escolhido para discussão da turma uma crônica de Stanislaw Ponte Preta. O texto fazia alusão ao regime autoritário "infernal", mas demorou a cair nossa ficha. Já o referido professor teve que passar pelo constrangimento duplo: viajar com seus pobres recursos de professor do interior até a capital, São Paulo, umas dez horas e prestar depoimento junto ao temido DOPS, órgão de repressão política da época.
Depois, quando cursava psicologia numa universidade do Rio de Janeiro, ainda em meados de 1970, suspeitávamos de um colega "esquisito", embora todos vivíamos um estilo de vestir, falar, usar o cabelo etc mais ou menos hippie. Lembro-me que numa reunião ‘clandestina’ de nosso movimento estudantil, numa sala da universidade, ficamos muito apreensivos com alguns falsos alunos muito esquisitos propondo coisas como jogar uma bomba no prédio do governo ou coisa parecida. Um deles tinha uma cicatriz no rosto que parecia maquiagem para filme de horror. Por falar de horror, alguns professores entravam na conta de prováveis dedos-duros dos alunos ligados ao movimento estudantil contra a ditadura. Um professor que deixava escapar um elogio aos militares no poder, ou que tivesse servido a um governo tão repressor como foi o período Médici, potencialmente podia ser dedo-duro. Já na democracia, quando fazíamos pós-graduação, um desses professores, certa vez, pareceu estar a gozar à medida que falava como funcionavam os instrumentos de tortura da Idade Média.
[4] [A] "OAB inocenta Wilson Simonal de delação" (notícia do site: www.presidencia.gov.br/). "O cantor Wilson Simonal – falecido em junho de 2000 – foi absolvido num julgamento simbólico da acusação de ter atuado como delator durante o Regime Militar. O caso foi analisado pela Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, a pedido da família de Wilson Simonal. Foram ouvidas pessoas do meio artístico como Chico Anísio e Jair Rodrigues, que testemunharam pela inocência do acusado. Também serviu de evidência pesquisa realizada em arquivos de órgãos federais, feita em 1999, por determinação do Governo Federal".
[B] Entrevistado por Tom Carsono, Geraldo Vandré, disse ter sido uma grande injustiça cometida contra Simonal. "Não fizeram essa acusação porque ele era preto e rico. Senão, tinham feito o mesmo com o Jair (Rodrigues). Era porque ele era um cara petulante, tinha aquele jeitão, mas nunca dedurou ninguém. Tenho certeza disso" (www.cliquemusic.com.br em 2000) .
[5] A delação é uma das formas de fazer mal a alguém e ficar invisível. A delação e a traição são as duas formas mais usadas entre cúmplices, nunca entre amigos. No "Dicionário Filosófico", Voltaire distingue os amigos dos cúmplices: "os malvados só conhecem cúmplices... mas os homens virtuosos e só eles tem amigos. Portanto, a ilação que se faz é que os delatores não constituem verdadeiras amizades, nem antes e nem depois do seu ato vil.
[6] SILVEIRA, A. em "Grandes julgamentos da história" (S. Paulo: Cultrix, 1969), numa seção cujo título é "A delação", denomina "delator" Joaquim Silvério dos Reis, por gozar da amizade com Alvarenga Peixoto, Cláudio Manuel da Costa, entre outros que faziam parte do movimento de libertação do Brasil de Portugal.
[7] O nome oficial da Alemanha Oriental era Deutsche Demokratische Republik ou DDR (República Democrática Alemã ou RDA).
[8] Castoriadis (1987) se referindo ao estudo de Arendt – "As origens do totalitarismo" – assim resume: o estado totalitário vive em guerra permanente contra aqueles que ousam pensar "diferente". H. Arendt em Origens do totalitarismo, ousou denominar o totalitarismo de "mal absoluto" e C. Castoriadis de "monstruoso", porque tal regime político produz crimes "que o homem não pode punir nem perdoar" e em escala inimaginável.
[9] Carone analisa a propaganda das idéias fascistas a partir dos estudos de Adorno, como uma "psicanálise às avessas", na medida em que os seus agentes visam apelar ao inconsciente por meio de técnicas capazes de promover tanto a idealização dos seus líderes como a suspeita paranóica sobre os out-groups por parte dos destinatários. A repetição de mentiras, acusações com intenção de discriminação ou desqualificação de um alvo deliberadamente escolhido elege como principais alvos: os "inimigos do povo norte-americano", "parasitas da economia", "homens sem pátria e sem patriotismo", conspiradores, etc. (Carone, I., 2003).
[10] Um antigo filme, [1936], em preto e branco, "Pimpinela escarlate" retrata bem essa situação: um delegado fundamentalista da moral e da lei comete mais injustiças do que os criminosos da cidade.
[11] J. K. Wood (1985), ao estudar "o efeito de grupo" relata que "Nos estados de transe o ‘impossível torna-se possível’ e as pessoas são capazes de traírem-se a si próprias ou aos seus colegas, capazes de violência de massa, ou de insights refinados e criatividade, de curar, de reformas políticas, e até mesmo de produzirem uma fonte de profundo conhecimento que transcende a individualidade (...)". No transe coletivo, o sujeito abdica de sua autonomia, seu ponto de vista crítico perde o valor ou é silenciado, abre mão de suas percepções e se submete voluntariamente ao sistema de crença do grupo, massa ou líder carismático que convence a todos que "sua" verdade é mais potente e "absoluta".
[12] A esse respeito, observa Carone: "Os liderados [do regime nazi-fascista], por sua vez, receberam os estímulos porque tinham necessidade psicológica de encontrar bodes expiatórios para descarregar a ira e a frustração diante das misérias de suas vidas, não importando a verdade ou falsidade de se atribuir aos judeus a inteira responsabilidade pelo status quo social."
As bruxas de Salen,
Sindicato dos ladrões,
A onda,
Todos os homens do presidente – o Caso Watergate,
Testa de ferro por acaso (de W. Allen)
Dogville,
Acusação
O poderoso Chefão
Sem perdão
O informante
Cidadão Cohn
Donie Brasco
Parceiro da Noite (Cruising)
A confissão (de Costa Gravas)
O veneno da madrugada (Ruy Guerra e Gabriel Garcia Márquez)
Raymundo de Lima
Psicanalista, mestre em Psicologia Escolar (UGF) e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). professor do Depto. Fundamentos da Educação (DFE) da Universidade Estadual de Maringá (Pr), e voluntário do CVV-Samaritanos de Maringá (PR).
Revista Espaço Acadêmico http://www.espacoacademico.com.br
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