Delação e denúncia: usos à direita e à esquerda[1]

Enviado por Raymundo de Lima


  1. Delação-denúncia à esquerda e à direita
  2. Bibliografia consultada
  3. Filmes recomendados sobre delação, denuncia, e traição

  "Escuta, Zé Ninguém: a miséria da existência humana é visível à luz de cada um destes pequenos horrores. Cada acto mesquinho teu faz retroceder de mil passos qualquer esperança que possa restar quanto ao teu futuro". Wilhem Reich[2]

"Não se ensinam os homens a serem honestos, mas ensina-se tudo o mais." Pascal

As democracias podem ser imperfeitas, mas as ditaduras são monstruosas. Como não suportam a pluralidade das opiniões e as críticas que clamam por liberdade, as ditaduras facilmente inventam bruxas para justificar o regime de exceção. Nelas, muita gente inocente foi queimada com brasas de constrangimentos e torturas até à morte, a partir de uma acusação ou delação anônima[3].

Cony observa que "durante o regime militar, tivemos uma excelente safra de dedos-duros. Alguns exerciam a função gratuitamente, não pretendiam prêmios nem vantagens, delatavam por amor à arte de delatar. Outros, certamente a maioria, delatavam para ganhar alguma coisa: penas menores em certos casos, dinheiro vivo em outros" (Cony, C. H. FSP, 18/08/2005) [grifo nosso].

Nessa época, o cantor Wilson Simonal, no auge de seu sucesso, foi "queimado" pelo meio artístico como dedo-duro, porque supostamente teria servido aos órgãos de repressão do regime militar. Embora tenha sido absolvido num julgamento simbólico da acusação de ter atuado como delator durante o Regime Militar, o referido cantor morreu com essa nódoa na sua imagem de cidadão e artista[4].

Há ainda o nebuloso Cabo Anselmo, considerado um "denunciador" pelos militares de direita e "delator" pelos militantes de esquerda. Essa diferença foi feita no nosso artigo anterior.  Podemos simplificar esta distinção da seguinte maneira: a delação é uma acusação condenatória contra alguém ou cúmplice,[5]  por vingança, interesse pessoal ou para aliviar o medo das pressões e ameaças de um grupo corporativo; já o que move a denúncia não é a vingança, nem o interesse pessoal, mas sim, o desejo de fazer o bem para um ser (humano ou animal) que sofre algum tipo de violência. Nesse sentido, a denúncia visa beneficiar a coletividade ameaçada ou refém de um criminoso ou grupo transgressor da lei. Delata-se um colega (como revela o conto de Machado de Assis), ou um companheiro de luta política, um cúmplice, mas denuncia-se um pedófilo, um torturador, um seqüestrador, um terrorista, um narcotraficante, etc. (Há controvérsias sobre a virtude e o vício da "denúncia premiada" ou "delação premiada". A esse respeito, o professor Marcos Amatucci faz uma reflexão no seu blog  http://marcosamatucci.blogspot.com/2005/08/delao-vcio-ou-virtude-aps-os-fatos-as.html).

A história do Brasil está marcada de anti-heróis como Silvério dos Reis, o delator dos conjurados que lutavam para libertar o Brasil de Portugal, dentre os quais, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes[6], que dignamente passou para nossa história como o mártir da independência.  Silvério dos Reis foi associado pelo imaginário popular à figura bíblica de Judas, e Tiradentes foi associado à imagem de Jesus.

Seria exagero considerar que a história da humanidade é uma história não contada sobre as delações e delatores que ficaram no anonimato? Assim como a tradição dos estudos de história despreza a investigação do cotidiano (Heller, 1992; 2002) privilegiando o papel das revoluções e dos heróis, somente uma história ‘nova’ poderia investigar os indícios e motivos que levaram alguns optarem pela delação e traição, influenciando desse modo o destino dos homens do poder, justificando seu gesto em nome de uma elite, ou de um povo ficcionado, ou, ainda, visando servir a "construção de uma realidade delirante" (Castoriadis, 1987: 207-224), onde é inevitável a difusão da paranóia social. (Os estudos sobre a "psicologia de massa do fascismo" [W. Reich], a "personalidade autoritária" [T. Adorno], e a "mentalidade fascista" [I. Carone] elucidam algumas das motivações da delação, bem como convida-nos a uma atitude preventiva sobre o "que fazer" para construir uma sociedade com menos infâmia).

Delação-denúncia à esquerda e à direita

A delação sempre foi um poderoso instrumento de sustentação dos regimes totalitários. O nazi-fascismo usou criminosos e mesmo pessoas de bem para criar um clima de medo e de paranóia. O totalitarismo soviético – principalmente no período do "homem de ferro" J. Stalin - fez da delação uma obrigação moral dos cidadãos que eram estimulados a colaborar para o "triunfo do socialismo". A famosa ditadura "do" proletariado passou a ser a ditadura "sobre" o proletariado, observou Karl Korsh [1886-1961]. No período stalinista os segredos não eram confiados a ninguém com medo de ser denunciado aos órgãos repressivos, com ou sem razão; as pessoas evitavam criticar a gestão socialista que gerava imensas filas, desabastecimento, maquiagens das estatísticas do governo, os privilégios dos burocratas do Partido Comunista, a arrogância e descaso dos funcionários públicos da nova ordem proletária. Talvez o caso mais emblemático foi o garoto Pavlik Morozov transformado símbolo exemplar do stalinismo, com estátuas erguidas pelo país por ter denunciado o próprio pai como traidor dos ideais socialistas e "inimigo do povo" (para maiores informações clique "Pavlik Morozov" no Google)

Também nos EUA, após a 2ª. Guerra, o período conhecido de "caça as bruxas", imposto pelo senador McCarth, levou o país a uma onda de delação de qualquer pessoa suspeita de atividades consideradas "anti-americanas" ou "comunistas".  O cineasta Elia Kazan, por exemplo, seria lembrado na história do cinema mais como delator dos artistas do que pelos filmes interessantes que realizou (ver, abaixo). Em 1999 quando o velho cineasta foi a Academia receber o Oscar pelo conjunto de sua obra, o público ainda demonstrava ressentimento pela sua atitude no passado, não se levantando e nem o aplaudindo.

Em 1951, o casal de cientistas judeus nova-iorquinos, Julius e Ethel Rosenberg, também foram vítimas do denuncismo macartista. O casal foi acusado, julgado e condenado à morte por ter supostamente roubado e entregue para a União Soviética segredos sobre a bomba atômica desenvolvida pelos cientistas norte-americanos. A execução fatal aconteceu em 1953, sob protestos no mundo todo. 

Na mesma época, por conta da Guerra Fria, o químico Linus Pauling (1901-1994), que fez campanha contra os testes nucleares, foi difamado tanto nos EUA como "insuficiente anticomunista", como também na União Soviética, com o pseudo-argumento de que as idéias do cientista foram consideradas incompatíveis com o materialismo dialético.

Após a reunificação das duas Alemanhas, um dos grandes problemas foi exatamente o serviço secreto da Alemanha Oriental ou Socialista[7] – o STASI. Por quê? Pelo fato de que virou instituição, com muitas informações e muitos informantes prontos para acabar com a vida social de qualquer cidadão. "Houve casos em que maridos relatavam para o serviço secreto todos os passos da esposa. Amigos contavam segredos de amigos. Para se ter idéia de como a coisa era nojenta, os arquivos ou dossiers (que não foram queimados) contando a vida das pessoas foram liberados para visitação. O que significava que a pessoa poderia descobrir quem  ‘dedou’ ela. Foi tanto casamento sendo desfeito por conta disso que passaram a avisar do perigo  ‘você pode se arrepender de descobrir a verdade’". (Cunha, D.R.R. http://www.inf.ufsc.br/barata / Email derneval[arroba]bigfoot.com ).

Ou seja, um Estado considerado "policial" acha que tem o direito de controlar tanto a vida pública dos indivíduos como suas próprias vidas íntimas por meio de uma rede de dedos-duros prontos, muitas vezes voluntários que se prestam para servir a "Pátria", o "povo" a "causa x", abolindo dessa força a própria distinção entre o que é domínio público e o que é privado. Por isso que H. Arendt conceitua o totalitarismo de "mal absoluto" e C. Castoriadis prefere chamar de "monstruoso", porque é um regime político que produz crimes "que o homem não pode punir nem perdoar" e em escala inimaginável"[8].

Por mais imperfeita que seja, a democracia – que alguns com vocação autoritária desqualificam de democracia "burguesa" – tem a virtude de garantir um mínimo de debate, de respeito para com a pluralidade das opiniões, e de investigação, para esclarecer denúncias, averiguar a motivação das acusações, que, quando provadas, cabe a justiça exercer o poder de punir os responsáveis.


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