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Alceu Amoroso Lima o "Tristão de Athayde" e a missão da universidade (página 2)

Raymundo de Lima

O modelo "amorosiano" de universidade, portanto, ia contra o tradicionalismo do ensino brasileiro, considerado verboso, diletante, superficial, pedante, e despreparado para o que exigia a nova ordem de produção industrial, no Brasil, desde os anos 30. Fernando Azevedo, de pensamento liberal e marcadamente cientificista também criticava esse tipo de ensino, porém, sem dúvida pensava uma universidade tecnicista e elitista, que Amoroso Lima criticava como um modelo desumano, anti-holístico, e anti-humanista de universidade.

O modelo "amorosiano", com efeito, pode estar defasado com a universidade de que opera na realidade atual, mas, essencialmente sua crítica e proposta continuam sendo pertinentes. Os investimentos em cursos de especialização, de mestrado e doutorado, certamente, não têm feito pessoas melhores, ou encaminhadas na trilha da sabedoria, mas sim apenas experts numa determinada área do conhecimento. É apequenada a "pessoa" do novo doutor.  Por vezes, sua "alma pequena" (F. Pessoa), deixa transbordar um excesso de vaidade, a arrogância do título o cega a ir além do seu tema de tese com o que mais-goza[1] nas aulas diante dos alunos, a busca ansiosa por prestigio acadêmico, a falta de disposição de lutar para melhorar as relações humanas a começar no seu próprio espaço de trabalho, sem falar nos seus discursos e práticas hoje reconhecidas como cínicas.  Ou seja, o meio universitário contemporâneo é mais um lugar cheio de contradições; sua cultura específica, cotidianamente, demonstra irracionalidade nas relações humanas e falta de bom senso na escolha do melhor caminho da instituição, que às vezes parece ser um ‘suicídio institucional’. O corporativismo de classe e os grupelhos patopolíticos – verdadeiras seitas[2] sem Deus - disseminam a pior forma de fazer política: o boato, o fuxiquismo, o dedurismo, a medieval prática da fogueira inquisitorial da imagem daqueles que preferem ficar fora dos grupelhos, todos esses sintomas concorrem para fazer da instituição universitária um espaço ainda preso ao êthos pré-moderno, quando ela deveria estar investida do éthos[3] atemporal.

Para quem está fora, imagina a universidade investida em Sabedoria, mas para quem convive o cotidiano de suas contradições e mesquinharias patopolíticas, a universidade é um ambiente em decadência, canônica e excessivamente tecnoburocratizada, que se não for seriamente discutida e urgentemente reformada, com a velocidade das transformações globais, logo estará morta, infelizmente.

Os ossos do ofício de "ser professor"

Foi no discurso de paraninfo eleito da turma de formandos da Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil, dez/ 1941. (Cf.: 1944, Cap. 15) que Alceu Amoroso Lima resumiu a o que pensava sobre a função do professor  universitário numa universidade "humanista e integral".

"Toda vida do professor gira em torno do conhecimento". Ser professor é antes de tudo, cumprir antes com a função de ser bom estudante. O professor se situa numa posição especial daquele que aprende para ensinar. Sua função é, sobretudo, ética ou moral, que consiste em estudar para os outros e não para si. A disposição interna de comunicar o que ele conhece, de levar a ciência aos outros e não guardar egoisticamente para si mesmo. O autêntico professor é atravessado por uma "euforia comunicativa" (sic!).

"Por vezes ele abusa desta e pensa que todo mundo é estudante. Torna-se sentencioso e dogmático. Gosta de falar com o dedo em riste e toma a palavra, sozinho, nas reuniões, fazendo de qualquer auditório alheio uma aula própria. Os que assim procedem, esquecidos de que quanto mais o homem sabe, mais sabe que não sabe e mais deve, portanto, silenciar discretamente" [4](p. 230) [grifo nosso].

Alceu, ainda nesse discurso, sinaliza como "perigo" para o espírito docente universitário: o orgulho intelectual, o pedantismo, a exibição erudita, o tom suficiente, o desprezo pelos ignorantes ou pelos menos instruídos (1961: 42).

Além de aprender e de ensinar, o professor precisa criar e renovar seus conhecimentos. O bom mestre é sempre o insatisfeito, o inquieto, o curioso, o que vive à busca de mais luz, não apenas para servir de transmissor da ciência alheia, mas ainda para fazer ciência própria. A pesquisa pessoal é, pois, uma condição imprescindível para que o Mestre não seja apenas um simples pombo correio do conhecimento. Todavia, para Alceu sua idéia de pesquisa nada têm a ver com o sentido empreendido nas universidades nos dias de hoje. Pesquisa, para ele, têm o sentido de melhoria da dimensão da cultura geral ou de sintonia com a sabedoria humana, do que  investigar estreitamente um determinado assunto para reforçar o paradigma estabelecido. ( Será que já havia um embrião khuniano no filósofo da educação Alceu Amoroso Lima?).

A pesquisa e o ensino carregam um sentido de missão, termo que Alceu pede emprestado do catolicismo, mas também usado pelo liberal Fernando de Azevedo[5]. A missão do intelectual se completa com a missão eminentemente social da universidade[6] , ou seja, do universo dos saberes. Em Alceu, o professor deve ser um agente civilizador do mais alto nível cultural. "Ensinar é civilizar e civilizar é espiritualizar, portanto humanizar, pois é pelo espírito que o homem afirma a sua eminência sobre os seres que o circulam". Ensinar é também um compromisso de aprimorar esta arte. Observamos-se, hoje, os professores universitários tão ocupados com suas pesquisas, que viraram as costas para a arte de ensinar. A grande maioria deles jamais leu um clássico da arte retórica (Demóstenes, Aristóteles, Comênio) ou mesmo levou a sério à didática contemporânea.

Por seu lado, o aluno é a razão de ser do professor. O professor é o artista que, até certo ponto, cria o aluno. Tal como um artista (poietés),o professor tal como o escultor  trabalha a pessoa do aluno concebendo-o como uma alma vida e dinâmica. Mas, o bom professor não visa moldar o aluno, mas "revelar o aluno a si mesmo, trazer à luz o que, sem ele, poderia ficar dormindo no fundo de uma consciência amorfa e infecunda" (1961: 211). Mesmo assim, devido ao seu idealismo, o professor tende a sofrer [pathos] quando cai na realidade ter criado um aluno "ideal", portanto, inexistente. Enfim, o professor na concepção amorosiana é um artista por demais fundado no otimismo idealista, de ser um ofício imprescindível para não somente proporcionar uma formação integral e humanista ao futuro profissional, mas, sobretudo, têm um compromisso de melhorar a alma humana.

Finalmente...

Alceu Amoroso Lima, ainda recomenda aos professores, em geral, principalmente aqueles que não estão se saindo muito bem na arte de ensinar, junto aos seus alunos, e por isso sofrem pensando estarem fracassando:

"Ao sofreres a grosseria de algum aluno, a impaciência de algum diretor, a impolidez de algum colega, a tentação do desânimo e do abandono, lembrai-vos sempre de que a beleza de uma tarefa nunca se mede pelo seu êxito mundano, nem pelas recompensas públicas que dela acaso nos venham, e sim pela sua própria e desinteressada beleza (...) E que a adversidade não tem poder algum sobre nós, quanto a vencemos pelo espírito de sacrifício e de renúncia. Esse heroísmo secreto e invencível será a guarda perene de vossa mocidade de espírito (...) Bem aventurados os caminheiros sem mácula, pois deles serão um dia os caminhos sem poeira"(1944:  214).

[1] Mais-gozar é usado aqui no sentido da psicanálise lacaniana, termo emprestado originalmente de Marx, "mais-valia’.

[2] Cf. P. BURKE, P. Seitas e igrejas na história do conhecimento. Folha de S. Paulo, cad. Mais! , 27/08/ 2000.

[3] Em Aristóteles, no Livro II da Ética a Nicômaco, existe uma sutil e fundamental diferença entre "êthos" , maneiras de ser habituais, caráter, e "éthos" ou  hábito moral. É a antiga discussão entre "ética" e "moral". Enquanto que a "ética" [éthos] aponta para uma ciência das virtudes, que não dirige, mas inspira a formação de hábitos saudáveis, a "moral" [êthos] unifica, padroniza, canaliza hábitos enrijecidos, e impõe a todos o que deve ser cumprido. Conforme diz Imbert, se a moral desenha "boas formas", impondo, vigiando, controlando e regendo a conduta do outro, partindo do pressuposto que existe uma moral universal (Kant), "diremos que a ética desfaz as formas, arranca o sujeito ao fascínio que elas exercem e à segurança que inspiram; por isso mesmo, a ética permanece estranha à inquietação imaginária e à busca do Um(...). A ética só é verdadeiramente assumida quando, à afirmação para si da liberdade, acrescenta-se a vontade de que exista a liberdade do outro. Eu quero que exista tua liberdade" (Imbert, 2001 : 14-17)

[5] A "missão da universidade" é o título de sua conferência pronunciada em 4 de janeiro de 1935, na sessão de encerramento dos cursos do Instituto de Educação, da Universidade de São Paulo. (Cf: Rev. da Fac. Educação da USP, v. 20, n. ½-jan-dez, 1994,  p. 5-29). Não pretendemos analisar, comparar ou confrontar os escritos sobre a universidade de "católico" Alceu Amoroso Lima e do "liberal" Fernando de Azevedo. 

[6] Tendo em vista a profunda formação católica de Alceu Amoroso Lima, a idéia de "missão" presente nos seus escritos e falas, têm um sentido especialmente espiritual. Existe ainda muita gente que pensa a atividade de ensino como um "sacerdócio", donde está embutida a idéia que o espírito deve prevalecer sobre a matéria, à frugalidade sobre o viver bem. Muitos professores, na escola e na universidade, principalmente as mulheres que atuam nesse meio profissional (nas escolas, são as que não se importam de serem chamadas "tias"), lamentavelmente ainda recebem o seu salário como algo complementar ao salário do marido. Podemos dizer que existe no meio educacional o preconceito quanto ao professor que têm um ganho digno. A instituição de ensino é a única que pune quem trabalha para além do previsto "em lei".  O sujeito, nesse caso, já é punido com estresse enquanto efeito do worhalolismo, e também será punido pela inquisição acadêmico queimando a imagem do colega como sujeito que transgride a moral  ou lei acadêmica da dedicação exclusiva à instituição, como se ele tivesse um padrão salarial de jogador de futebol de primeira linha. Por outro lado, existe o enceguecimento histérico quanto ao patrão – o governo –  que descumpre o contrato de trabalho, que altera a expectativa de aposentadoria digna, etc. Apesar da defasagem salarial, a falta de reajuste a mais de 6 anos, os colegas mais punidos são os que, uma vez hospitalizados ou um membro de sua família, sentem-se obrigados a rever sua posição de fidelidade as causas tradicionais idealistas. Como disse a economista Maria da Conceição Tavares "a necessidade obriga a gente mudar de posição" (Mesa-redonda transmitida pela TV Senado- jun-2003?).

Referências bibliográficas.

CAUVILLA,W. Alceu Amoroso Lima e a democracia: em busca da proporção.SP: Tese Doutoramento - USP, 2000.

IMBERT, F. A questão da ética no campo educativo. Petópolis: 2001.

LIMA, A.A. O espírito universitário. Rio: Agir,1961.

_____. O humanismo pedagógico. Rio: Stella, 1944.

 

Raymundo de Lima

Psicanalista, mestre em Psicologia Escolar (UGF) e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). professor do Depto. Fundamentos da Educação (DFE) da Universidade Estadual de Maringá (Pr), e voluntário do CVV-Samaritanos de Maringá (PR).

ray_lima[arroba]uol.com.br

Revista Espaço Acadêmico http://www.espacoacademico.com.br


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