Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
O modelo "amorosiano" de universidade, portanto, ia contra o tradicionalismo do ensino brasileiro, considerado verboso, diletante, superficial, pedante, e despreparado para o que exigia a nova ordem de produção industrial, no Brasil, desde os anos 30. Fernando Azevedo, de pensamento liberal e marcadamente cientificista também criticava esse tipo de ensino, porém, sem dúvida pensava uma universidade tecnicista e elitista, que Amoroso Lima criticava como um modelo desumano, anti-holístico, e anti-humanista de universidade.
O modelo "amorosiano", com efeito, pode estar defasado com a universidade de que opera na realidade atual, mas, essencialmente sua crítica e proposta continuam sendo pertinentes. Os investimentos em cursos de especialização, de mestrado e doutorado, certamente, não têm feito pessoas melhores, ou encaminhadas na trilha da sabedoria, mas sim apenas experts numa determinada área do conhecimento. É apequenada a "pessoa" do novo doutor. Por vezes, sua "alma pequena" (F. Pessoa), deixa transbordar um excesso de vaidade, a arrogância do título o cega a ir além do seu tema de tese com o que mais-goza[1] nas aulas diante dos alunos, a busca ansiosa por prestigio acadêmico, a falta de disposição de lutar para melhorar as relações humanas a começar no seu próprio espaço de trabalho, sem falar nos seus discursos e práticas hoje reconhecidas como cínicas. Ou seja, o meio universitário contemporâneo é mais um lugar cheio de contradições; sua cultura específica, cotidianamente, demonstra irracionalidade nas relações humanas e falta de bom senso na escolha do melhor caminho da instituição, que às vezes parece ser um ‘suicídio institucional’. O corporativismo de classe e os grupelhos patopolíticos – verdadeiras seitas[2] sem Deus - disseminam a pior forma de fazer política: o boato, o fuxiquismo, o dedurismo, a medieval prática da fogueira inquisitorial da imagem daqueles que preferem ficar fora dos grupelhos, todos esses sintomas concorrem para fazer da instituição universitária um espaço ainda preso ao êthos pré-moderno, quando ela deveria estar investida do éthos[3] atemporal.
Para quem está fora, imagina a universidade investida em Sabedoria, mas para quem convive o cotidiano de suas contradições e mesquinharias patopolíticas, a universidade é um ambiente em decadência, canônica e excessivamente tecnoburocratizada, que se não for seriamente discutida e urgentemente reformada, com a velocidade das transformações globais, logo estará morta, infelizmente.
Foi no discurso de paraninfo eleito da turma de formandos da Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil, dez/ 1941. (Cf.: 1944, Cap. 15) que Alceu Amoroso Lima resumiu a o que pensava sobre a função do professor universitário numa universidade "humanista e integral".
"Toda vida do professor gira em torno do conhecimento". Ser professor é antes de tudo, cumprir antes com a função de ser bom estudante. O professor se situa numa posição especial daquele que aprende para ensinar. Sua função é, sobretudo, ética ou moral, que consiste em estudar para os outros e não para si. A disposição interna de comunicar o que ele conhece, de levar a ciência aos outros e não guardar egoisticamente para si mesmo. O autêntico professor é atravessado por uma "euforia comunicativa" (sic!).
"Por vezes ele abusa desta e pensa que todo mundo é estudante. Torna-se sentencioso e dogmático. Gosta de falar com o dedo em riste e toma a palavra, sozinho, nas reuniões, fazendo de qualquer auditório alheio uma aula própria. Os que assim procedem, esquecidos de que quanto mais o homem sabe, mais sabe que não sabe e mais deve, portanto, silenciar discretamente" [4](p. 230) [grifo nosso].
Alceu, ainda nesse discurso, sinaliza como "perigo" para o espírito docente universitário: o orgulho intelectual, o pedantismo, a exibição erudita, o tom suficiente, o desprezo pelos ignorantes ou pelos menos instruídos (1961: 42).
Além de aprender e de ensinar, o professor precisa criar e renovar seus conhecimentos. O bom mestre é sempre o insatisfeito, o inquieto, o curioso, o que vive à busca de mais luz, não apenas para servir de transmissor da ciência alheia, mas ainda para fazer ciência própria. A pesquisa pessoal é, pois, uma condição imprescindível para que o Mestre não seja apenas um simples pombo correio do conhecimento. Todavia, para Alceu sua idéia de pesquisa nada têm a ver com o sentido empreendido nas universidades nos dias de hoje. Pesquisa, para ele, têm o sentido de melhoria da dimensão da cultura geral ou de sintonia com a sabedoria humana, do que investigar estreitamente um determinado assunto para reforçar o paradigma estabelecido. ( Será que já havia um embrião khuniano no filósofo da educação Alceu Amoroso Lima?).
A pesquisa e o ensino carregam um sentido de missão, termo que Alceu pede emprestado do catolicismo, mas também usado pelo liberal Fernando de Azevedo[5]. A missão do intelectual se completa com a missão eminentemente social da universidade[6] , ou seja, do universo dos saberes. Em Alceu, o professor deve ser um agente civilizador do mais alto nível cultural. "Ensinar é civilizar e civilizar é espiritualizar, portanto humanizar, pois é pelo espírito que o homem afirma a sua eminência sobre os seres que o circulam". Ensinar é também um compromisso de aprimorar esta arte. Observamos-se, hoje, os professores universitários tão ocupados com suas pesquisas, que viraram as costas para a arte de ensinar. A grande maioria deles jamais leu um clássico da arte retórica (Demóstenes, Aristóteles, Comênio) ou mesmo levou a sério à didática contemporânea.
Por seu lado, o aluno é a razão de ser do professor. O professor é o artista que, até certo ponto, cria o aluno. Tal como um artista (poietés),o professor tal como o escultor trabalha a pessoa do aluno concebendo-o como uma alma vida e dinâmica. Mas, o bom professor não visa moldar o aluno, mas "revelar o aluno a si mesmo, trazer à luz o que, sem ele, poderia ficar dormindo no fundo de uma consciência amorfa e infecunda" (1961: 211). Mesmo assim, devido ao seu idealismo, o professor tende a sofrer [pathos] quando cai na realidade ter criado um aluno "ideal", portanto, inexistente. Enfim, o professor na concepção amorosiana é um artista por demais fundado no otimismo idealista, de ser um ofício imprescindível para não somente proporcionar uma formação integral e humanista ao futuro profissional, mas, sobretudo, têm um compromisso de melhorar a alma humana.
Alceu Amoroso Lima, ainda recomenda aos professores, em geral, principalmente aqueles que não estão se saindo muito bem na arte de ensinar, junto aos seus alunos, e por isso sofrem pensando estarem fracassando:
"Ao sofreres a grosseria de algum aluno, a impaciência de algum diretor, a impolidez de algum colega, a tentação do desânimo e do abandono, lembrai-vos sempre de que a beleza de uma tarefa nunca se mede pelo seu êxito mundano, nem pelas recompensas públicas que dela acaso nos venham, e sim pela sua própria e desinteressada beleza (...) E que a adversidade não tem poder algum sobre nós, quanto a vencemos pelo espírito de sacrifício e de renúncia. Esse heroísmo secreto e invencível será a guarda perene de vossa mocidade de espírito (...) Bem aventurados os caminheiros sem mácula, pois deles serão um dia os caminhos sem poeira"(1944: 214).
[1] Mais-gozar é usado aqui no sentido da psicanálise lacaniana, termo emprestado originalmente de Marx, "mais-valia’.
[2] Cf. P. BURKE, P. Seitas e igrejas na história do conhecimento. Folha de S. Paulo, cad. Mais! , 27/08/ 2000.
[3] Em Aristóteles, no Livro II da Ética a Nicômaco, existe uma sutil e fundamental diferença entre "êthos" , maneiras de ser habituais, caráter, e "éthos" ou hábito moral. É a antiga discussão entre "ética" e "moral". Enquanto que a "ética" [éthos] aponta para uma ciência das virtudes, que não dirige, mas inspira a formação de hábitos saudáveis, a "moral" [êthos] unifica, padroniza, canaliza hábitos enrijecidos, e impõe a todos o que deve ser cumprido. Conforme diz Imbert, se a moral desenha "boas formas", impondo, vigiando, controlando e regendo a conduta do outro, partindo do pressuposto que existe uma moral universal (Kant), "diremos que a ética desfaz as formas, arranca o sujeito ao fascínio que elas exercem e à segurança que inspiram; por isso mesmo, a ética permanece estranha à inquietação imaginária e à busca do Um(...). A ética só é verdadeiramente assumida quando, à afirmação para si da liberdade, acrescenta-se a vontade de que exista a liberdade do outro. Eu quero que exista tua liberdade" (Imbert, 2001 : 14-17)
[5] A "missão da universidade" é o título de sua conferência pronunciada em 4 de janeiro de 1935, na sessão de encerramento dos cursos do Instituto de Educação, da Universidade de São Paulo. (Cf: Rev. da Fac. Educação da USP, v. 20, n. ½-jan-dez, 1994, p. 5-29). Não pretendemos analisar, comparar ou confrontar os escritos sobre a universidade de "católico" Alceu Amoroso Lima e do "liberal" Fernando de Azevedo.
[6] Tendo em vista a profunda formação católica de Alceu Amoroso Lima, a idéia de "missão" presente nos seus escritos e falas, têm um sentido especialmente espiritual. Existe ainda muita gente que pensa a atividade de ensino como um "sacerdócio", donde está embutida a idéia que o espírito deve prevalecer sobre a matéria, à frugalidade sobre o viver bem. Muitos professores, na escola e na universidade, principalmente as mulheres que atuam nesse meio profissional (nas escolas, são as que não se importam de serem chamadas "tias"), lamentavelmente ainda recebem o seu salário como algo complementar ao salário do marido. Podemos dizer que existe no meio educacional o preconceito quanto ao professor que têm um ganho digno. A instituição de ensino é a única que pune quem trabalha para além do previsto "em lei". O sujeito, nesse caso, já é punido com estresse enquanto efeito do worhalolismo, e também será punido pela inquisição acadêmico queimando a imagem do colega como sujeito que transgride a moral ou lei acadêmica da dedicação exclusiva à instituição, como se ele tivesse um padrão salarial de jogador de futebol de primeira linha. Por outro lado, existe o enceguecimento histérico quanto ao patrão – o governo – que descumpre o contrato de trabalho, que altera a expectativa de aposentadoria digna, etc. Apesar da defasagem salarial, a falta de reajuste a mais de 6 anos, os colegas mais punidos são os que, uma vez hospitalizados ou um membro de sua família, sentem-se obrigados a rever sua posição de fidelidade as causas tradicionais idealistas. Como disse a economista Maria da Conceição Tavares "a necessidade obriga a gente mudar de posição" (Mesa-redonda transmitida pela TV Senado- jun-2003?).
CAUVILLA,W. Alceu Amoroso Lima e a democracia: em busca da proporção.SP: Tese Doutoramento - USP, 2000.
IMBERT, F. A questão da ética no campo educativo. Petópolis: 2001.
LIMA, A.A. O espírito universitário. Rio: Agir,1961.
_____. O humanismo pedagógico. Rio: Stella, 1944.
Raymundo de Lima
Psicanalista, mestre em Psicologia Escolar (UGF) e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). professor do Depto. Fundamentos da Educação (DFE) da Universidade Estadual de Maringá (Pr), e voluntário do CVV-Samaritanos de Maringá (PR).
Revista Espaço Acadêmico http://www.espacoacademico.com.br
Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
|
|