Freud, a psicanálise e a felicidade
"Esse homem encontrou a felicidade ao descobrir o tesouro de Príamo, o que prova que a realização de um desejo infantil é o único capaz de proporcionar a felicidade" S. Freud. [1]
"não escapa a Freud que a felicidade é (…) o que deve ser proposto como termo a toda a busca, por mais ética que seja". J. Lacan
"Ninguém pode me obrigar a ser feliz a sua maneira". I. Kant
Das clássicas proposições filosóficas aos atuais manuais de auto-ajuda, passando pelos trabalhos científicos e as construções utópico-ideológicas predominantes no século 20, a verdade é que o ser humano ainda não conseguiu dar uma resposta definitiva e satisfatória sobre o que é ser feliz e como conseguir sê-lo.
Seguindo o caminho das certezas, as "religiões prometem felicidade eterna, tendo como condição a fé", observa o sociólogo Pedro Demo, professor da Universidade de Brasília e autor de três volumes "A Dialética da Felicidade" (Ed. Vozes, 2001).
A psicanálise que, junto com Freud, é reconhecida como um saber teórico, uma técnica de interpretação e uma clínica psicanalítica, voltada para diminuir o sofrimento humano, é cética quanto ao sujeito[2] humano ser feliz. O próprio Freud teria dito que a psicanálise até pode resolver os problemas da miséria neurótica, mas ela nada pode fazer contra as misérias da vida como ela é.
Ainda, segundo Freud (1974), não sendo a psicanálise uma Weltanschauung, isto é, não sendo uma "cosmovisão", uma construção intelectual que visa solucionar todos os problemas de nossa conturbada existência, com base em uma hipótese filosófica ou supostamente científica universal, é praticamente impossível conceber um ser humano plenamente feliz.
Herdeira do estilo socrático porque ousa buscar mas nada conclui, a psicanálise sustenta o compromisso de, por um lado, não deixar nenhuma pergunta sem resposta e, por outro, é avessa as Weltanschauungs de todo o tipo, que acreditam terem encontrado a chave para explicar e resolver todos os males da humanidade, por meio do indivíduo, do grupo ou da coletividade[3].
Para entender a relação psicanálise e felicidade, precisamos resgatar alguns de seus conceitos e categorias. O primeiro deles é o desejo. O desejo é humano, demasiadamente humano. O desejo (D.: Wunsch), tal como é entendido pela psicanálise, não é a mesma coisa que a necessidade. Enquanto a necessidade é um conceito biológico, natural, implica uma tensão interna que impele o organismo numa determinada direção no sentido de busca de redução dessa tensão ou satisfação, logo, a autoconservação (ex.; necessidade de fome, então buscamos comida), o desejo, sendo de ordem puramente psíquica, é desnaturado e como tal pertence à ordem simbólica. Enquanto a necessidade é biológica, instintiva e busca objetos específicos (comida, água, etc) para reduzir a tensão interna do organismo, o desejo não implica uma relação com esses objetos concretos, mas sim, com o fantasma ou fantasia. Ou seja, "o fantasma é, ao mesmo tempo, efeito do desejo arcaico inconsciente e matriz dos desejos atuais, conscientes e inconscientes" [4] (CHEMAMA, 1995: 71).
Diferente dos animais, no mundo demasiadamente humano, as necessidades são atravessadas pelo fenômeno da linguagem, porta-voz das demandas. A criança demanda [pede, solicita] à mãe que lhe forneça o objeto de sua necessidade para ela eliminar sua "falta-para ter". Só que a demanda é sempre demanda por outra coisa, funcionando como pretexto para conseguir "algo" de que o sujeito sente falta e que pressupõe que o outro disponha a fornecê-lo reconhecimento e amor. Portanto, não somente existe nela (criança ou adulto) a necessidade do objeto "alimento x", mas sobretudo sempre existe uma "demanda para ser reconhecida e amada". No fundo, queremos ser preenchidos, plenos, ou seja, almejamos uma impossibilidade. Porque, a demanda é a solicitação de uma presença ou de uma ausência, e é sempre é dirigida ao Outro, como um pedido de amor e uma expectativa de preenchimento absoluto, de fusão das almas, de plenitude.
A demanda e o desejo fazem aparecer outro registro da falta - "a falta-a-ser". Acontece que, a satisfação do desejo é sempre adiada e nunca atingida, portanto, no fundo, o desejo busca o impossível. Seria o incesto? Restando-lhe sempre insatisfação, o desejo se vê obrigado a buscar outro caminho, a realização. Através de meios-objetos como a fantasia do seio, o sintoma, um beijo, o gozo da droga, o gozo do poder político, o gozo do discurso teórico da fé, o gozo do rico que priva o outro de também ter, o gozo de quem imputa sofrimento a outrem etc. Todas essas formas de realização são marcadas por insatisfações primitivas que se atualizam. O sujeito vive em estado de excitação contínua: prazer e desprazer ao mesmo tempo. A pulsão e o desejo nos diferenciam dos animais estes são seres de puro instinto, seres de necessidade. Os seres humanos por serem desejantes, seres de linguagem são condenados a sentir, primeiro mal-estar e angústia, depois por serem impulsionados para algo que se supõe trazer a felicidade, um estado de completude de não falta.
O que nos sustenta é uma ficção construída e dependente da memória de que um dia fomos para o desejo do Outro primordial (mãe), que nos acolheu em nosso desamparo de recém nato. E neste núcleo de nada, de ter sido o desejo do Outro que nos sustentamos, buscando incessantemente o reconhecimento nos olhares dos outros nossos semelhantes.
Por vezes isso se faz às custas de fazermo-nos sofrer em demasia. "O sofrimento dos neuróticos provém da angústia de não desejar em conformidade com o super-eu" (Nasio, 1993); pois para advir como sujeito, a que renunciar a essa plenitude (de ter sido o tudo para o outro) se adequando em conformidade com as exigências do social.
Continuando. O desejo, no fundo, sempre procura realizar a nostalgia do objeto perdido, que habita no inconsciente, isto é, no lugar do "não-sabido". (Em alemão, a língua de Freud, Unbewusste quer dizer: não-sabido). Então, o objeto não-sabido e recalcado do desejo está condenado a repetir na atualidade o que no passado remoto possivelmente foi prazer e depois virou gozo[5]. Portanto, tal como entende a psicanálise, o desejo implica num desvio ou perversão da ordem natural ou biológica. Deixando de ser instintivos, os humanos se orientam pela ‘ordem’ pulsional e desejante, ou seja, não somos mais movidos pela força instintiva, que é apenas matriz do comportamento dos animais ditos irracionais. Somos seres simbólicos, marcados pela desnaturalização empreendida pela cultura. Somo movidos sempre por ‘outra coisa’. Se fôssemos somente instinto e necessidade, seríamos como os animais, que parecem felizes quando cumprem com seu ciclo biológico de fome e sexo. O animal satisfeito deve ser feliz. Mas, o mesmo não acontece com os seres humanos. Podemos ter ‘tudo’ e ao mesmo tempo sentir vazio existencial; podemos sentir prazer[6] e ao mesmo tempo colher desprazer em nossos atos demasiadamente humanos. Se estivéssemos presos ao instinto, ainda teríamos cio, faríamos sexo somente em determinada época do ano apenas para procriar; comeríamos apenas para matar a fome e não para degustar para comida de um famoso restaurante e beber um vinho de uma safra ‘x’, servido em um copo especial, etc, etc. Entretanto, a condição humana de ser desnaturalizado, desejante, cultural, complica a sua conquista para ser feliz, embora possamos eventualmente experimentar alguns momentos de felicidade[7], como o gozo sexual, o recebimento de uma promoção no trabalho, ganhar um prêmio, ver nascer um filho, etc.
Essa distinção é importante porque, além de distinguir a categorias da "satisfação" e da "realização", tem importantes conseqüências na condução da clínica psicanalítica, na política e na concepção sobre a construção da civilização. Uma psicoterapia baseada na satisfação das necessidades dos pacientes constitui um grave equívoco, é enganação, e pode abrir caminho para a perversão da relação profissional, chamada por Freud (1974: v. XI) de ‘psicanálise selvagem’. No centro da teoria e da prática psicanalíticas está o desejo, diz Freud. Não é a necessidade, mas o desejo. E, no final de um processo de psicanálise onde estava o ‘isso’ [id] o ‘eu’ [ego] deve advir. Esse princípio tem correspondência no campo político. Uma ideologia política movida apenas para proporcionar a ‘satisfação da necessidade coletiva’ começa por confundir o que é necessidade, desejo e demanda. Ela poderia proporcionar bem-estar coletivo, saúde física, boa educação, mas poderia ser um fracasso quanto à realização das potencialidades subjetivas. As experiências do socialismo real demonstram o quanto às pessoas podem ser gratas ao sistema sustentar uma boa saúde e boa educação, mas, com medo, reclamam sobre a falta de liberdade para ser.
É certo que a necessidade quando preenchida leva o sujeito a obter a sensação de satisfação. Mas, não o leva o leva sentir-se feliz. Isto acontece porque "o desejo, jamais é satisfeito" (GARCIA-ROZA: 144). Por que, então, o desejo humano jamais é satisfeito?
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