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Tomando por base o trabalho pioneiro de Warren e Brandeis, a concepção do right of privacy fomentou a doutrina do direito à privacidade e a possibilidade de se mover um processo pela sua violação. O mencionado artigo, a partir da idéia de que a invasão de privacidade normalmente causa danos espirituais e emocionais, propôs a relevância de tais danos merecedores de uma ação de indenização.
Com o advento das novas sociedades industriais modernas, a defesa autônoma do direito à vida privada surge assim independente em relação ao direito de propriedade, do direito à honra, à imagem, ao nome e de outros direitos de personalidade. Embora, num contexto prático-jurídico, não se pode negar a penunbra que envolve a identificação da maneira como que é atingida, se, como fim, ou como meio, para a lesão de outros direitos. O que, invariavelmente, nos remete para a casuística.
Importa assim deixar assentado, do quanto ficou escrito, que as mudanças sociais, tecnológicas e político-econômicas fomentaram o surgimento de diversos direitos, que até então eram inexpressivos ou tinham contornos diversos dos atuais, entre eles, o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada. Este direito é conseqüência direta do modelo da nossa sociedade atual, na qual a evolução tecnológica tornou os aspectos da personalidade humana imprescindível de proteção jurídica.
Nas primorosas palavras de Antonio Chaves "a honra – sentenciou Ariosto – está acima da vida. E a vida – pregou Vieira – é um bem imortal: a vida, por larga que seja, tem os dias contados; a fama, por mais que conte anos e séculos, nunca lhe dá de achar conto, nem fim, porque os seus são eternos: a vida conserva-se em um só corpo, que é próprio, o qual, por mais forte e robusto que seja, por fim se há de resolver em poucas cinzas: a fama vive nas almas, nos olhos e na boca de todos, lembrada nas memórias, falada nas línguas, escritas nos anais, esculpida nos mármores e repetida sonoramente sempre nos ecos e trombetas da mesma fama. Em suma, a morte mata, ou apressa o fim do que necessariamente há de morrer; a infâmia afronta, afeia, escurece e faz abominável a um ser mortal, menos cruel e mais piedosa se o puder matar".
Com tal magnitude a honra em tempos imemoriais foi concebida pelos seres humanos, e como a vida a ela equiparada, segundo brocardo latino – Honoris causa et vita aequiparantur-, passou a ser assegurada a todas as pessoas como condição indelével de convivência digna entre os homens e seus semelhantes.
A origem histórica da proteção legal da honra parece advir do direito romano, através de manifestações isoladas dos seus intérpretes, diretas ou indiretas, que protegiam os direitos individuais da personalidade, já que naquela época desconhecia-se a classe dos direitos de personalidade tal como é constituída hodiernamente.
A actio iniuriarum exerceu importante papel na construção dogmática da honra, apesar de seu alcance ser mais amplo do que apenas punir as ofensas à integridade moral, à honra das pessoas. Em Roma o termo iniuria tinha o significado genérico de ilicitude, de ação contrária ao direito e, tendo isso em vista, Von Ihering, em seu estudo De l’actio iniuriarum, demarca a injúria abstrata, onde o direito de ação era exercido pelo indivíduo lesado na sua esfera jurídica pessoal, naquilo que ele é, no seu corpo, na sua liberdade, na sua honra, e a injúria concreta, onde o direito de ação cabe à vítima de ofensa ao seu patrimônio, naquilo que ele tem.
Na sua função exclusiva de punição de condutas lesivas à integridade moral, à honra das pessoas, ou injúria abstrata, trata-se a actio iniuniarum de verdadeira tutela precursora da honra, e completa para a época, não sendo de estranhar, conforme assevera Maria Paula Gouveia de Andrade, "a idéia romana de honra como bem jurídico que se possui, apesar da sua imaterialidade e que – como tal – deve merecer o respeito de todos, e de bem jurídico da personalidade".
Na idade média e moderna, com a influência notória do cristianismo, assentaram-se os fundamentos morais dos direitos individuais da personalidade e o indivíduo passou a ser a preocupação central do direito.
Na medida em que ocorreu o desenvolvimento das civilizações, o sentimento de honra tornou-se cada vez mais apurado e mais elevado entre os povos, o que impôs ao direito uma maior preocupação no sentido de coibir condutas lesivas aos direitos morais de outrem.
A injúria acaba assim por ser restringida nas legislações modernas, passando a ser associada aos crimes contra a honra, o decoro ou reputação alheia, constituindo uma categoria a parte. E se, inicialmente, a proteção da honra mereceu maior destaque no campo penal, por meio da figura da injúria e da difamação, a necessidade de expansão da individualidade espiritual impôs a sua colocação completa sob a égide civilista, a salvaguardar, assim, a reputação, o bom nome, o decoro e o crédito de quem injustamente lesado.
A concretização da efetiva proteção deste direito em nível ordinário, através do procedimento criminal pela prática quer do crime de difamação, quer do crime de injúria, ou do instituto da responsabilidade civil, dependente da verificação do dano sofrido pelo lesado, deveu-se à sua consagração constitucional pelo direito contemporâneo. De notar que a inclusão do direito ao bom nome e reputação nos direitos e garantias individuais, em Portugal, foi tardia, tendo sido feita apenas na Constituição de 1933. Mas a punição daqueles que causam danos a outrem em virtude de uma utilização abusiva da liberdade de pensamento não é previsão recente, podendo ser já encontrada na Constituição de 1822, o que assegurava de certo modo a tutela daqueles direitos pessoais.
Por outro lado, a mesma previsão e, posteriormente, os textos constitucionais de 1838 e 1911, ao tratarem da liberdade de expressão do pensamento pela imprensa ou qualquer outro modo, teriam elegido um contrapeso ao direito ao bom nome e reputação, com a ressalva da responsabilização por eventuais abusos cometidos ao abrigo da mesma. É daí que se aufere hoje um caráter mais social e político da proteção civil e criminal da honra, já que o cidadão como ser social pode ter sua conduta como objeto de discussão e censura pública, constituindo assim motivo de interesse público.
O direito à imagem adquiriu uma posição de destaque no contexto dos direitos de personalidade, diante do extraordinário progresso tecnológico e da importância que a imagem assumiu no âmbito publicitário, o que tornou a sua exposição mais intensa, e vias de conseqüência, mais susceptível de violação.
A utilização indiscriminada da imagem das pessoas, principalmente daquelas que se destacam em suas atividades, e que, em função disso, são alvos da atenção do público, foi propiciada pelas múltiplas formas de reprodução e divulgação, fomentando a preocupação crescente das sociedades contemporâneas em proteger esse bem jurídico autonomamente em relação à privacidade e a honra.
A invenção da fotografia, em meados do século XIX, facilitou a captação e a difusão da imagem, antes apenas reproduzida através da pintura, da gravura e da escultura, ou seja, através da habilidade manual do artista, restringindo a questão e as suas possíveis consequências apenas entre este e o retratado.
É de longa data o interesse que, praticamente, todas as civilizações têm revelado pela imagem. A literatura e as artes plásticas sempre contribuíram para despertar a atenção secular sobre a imagem humana, e para reconhecer, de forma intuitiva e experimental, a sua força comunicativa.As inovações tecnológicas, inicialmente, a reprodução da fotografia na cinematografia, e mais tarde a televisão, a Internet, o vídeo, acabaram por reforçar o interesse sobre ela.
Entretanto, o estudo do direito à imagem é recente, remontando sua origem à metade do século XIX, a partir de decisões judiciais havidas na França. Os autores costumam designar o chamado caso Rachel, com sentença proferida pelo Tribunal Civil de Sena, no ano de 1858, como o primeiro pronunciamento judicial referente ao assunto. Nesta ocasião o Tribunal francês determinou a apreensão e destruição dos originais e de outras provas fotográficas referentes à atriz francesa Elisa Felix, considerada uma das maiores intérpretes do teatro clássico daquela época, e conhecida pelo nome Rachel. A sua imagem reproduzida no leito de morte por dois fotógrafos, contratados para este fim, deveria ser de propriedade da família, e não poderia ser colocada à venda, reproduzida em forma de desenho, como fizera certa pintora de nome O’ Connell, a qual adquirira as fotografias indevidamente. A referida decisão estabeleceu a necessidade de autorização da família para que se reproduzam ou publiquem o retrato de alguém em seu leito de morte, e constituiu o marco inicial ao que se convencionou chamar de direito à proteção da imagem.
Na segunda metade do século XIX outras decisões jurisprudenciais, que embasaram a doutrina sobre o assunto, foram proferidas pelo Tribunal Civil de Sena, as quais, contudo, denotam uma oscilação entre a concepção pessoal e a patrimonialista do direito à imagem, dando mostras da já presente complexidade inerente ao direito à imagem. Apesar da superação da acepção do direito à imagem como um direito patrimonial, o que não lhe retira a sua susceptibilidade de circular amiúde no comércio, assevera Ana Azurmendi Adarraga que "en estos años se dan dos hechos que determinan la orientación del derecho a la propia imagen tanto en el âmbito doctrinal – a corto y largo plazo, como veremos – y en el jurisprudencial".
Relativamente à doutrina européia, tocante ao direito à imagem, a Alemanha é apontada como país pioneiro a ocupar-se sobre o Recht am eigenen Bild (direito à própria imagem). Primeiro, com a lei da fotografia de 10/01/1876, e em seguida com a monografia "Das Recht am eigenen Bild", atribuída a Keissne, de 1896.
Ana Marina Nicolodi
marinanicolodi[arroba]hotmail.com
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