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Não se confunde, é claro, o Poder Constituinte, com os Poderes Constituídos. Estes são criados pelo próprio Poder Constituinte, no ato da criação do Estado, da elaboração de seu texto básico, a Constituição, como "Estatuto do Poder". Há aqui uma distinção semelhante, de criador e criatura, à famosa distinção de Spinoza entre "natura naturans" e "natura naturata". Deveremos, assim, caracterizar o Poder Constituinte, embora abandonando, desde logo, a discussão doutrinária inicial, mas observando que, para aqueles que conceituam o Poder Constituinte como o poder de criar e revisar a Constituição, resultando desse conceito dois tipos, digamos, o Poder Constituinte originário e o Poder Constituinte derivado, é evidente que o Poder Constituinte derivado, sofrendo limitações jurídicas, não participará da natureza do Poder Constituinte originário.
Autores como Nelson de Souza Sampaio, v.g., (ótima monografia a respeito - O Poder de Reforma Constitucional), não classificam, simplesmente, o Poder Constituinte em originário e derivado. Para Nelson Sampaio, o que existe é o Poder Constituinte, originário, criador da Constituição, poder extraordinário e supremo, e o Poder de Reforma Constitucional, que ele assim denomina, e que dependerá da maior ou menor liberalidade do constituinte originário. Aliás, com base no sistema adotado para a reforma constitucional, na sua maior ou menor consistência, os autores costumam classificar esquematicamente as Constituições.
Assim, Lord Bryce classificou-as em rígidas e flexíveis, dependendo do processo estabelecido pelo Poder Constituinte originário para sua reforma. O professor Nelson Sampaio, na monografia citada, classifica as constituições em: imutáveis, fixas, rígidas, flexíveis e semi-rígidas ou semi-flexíveis.
Imutàveis seriam aquelas Constituições que não admitem sua reforma, ou seja, não existiria o Poder Constituinte derivado. É claro que isso é um anseio normal, e as próprias leis antigas pretendiam durar eternamente, conforme confessado no próprio Código de Hamurabi, v.g.
Mas é claro, também, que essa seria uma Constituição suicida, de vez que, não sendo estática a sociedade, evolvendo com extraordinária rapidez, especialmente nos tempos modernos, em suas conotações políticas, econômicas, sociológicas, enfim, não poderia também ser a Constituição, o estatuto básico do ordenamento jurídico dessa sociedade, imutável. Essa seria uma Constituição suicida, porque resultaria enfim como uma "folha de papel", no dizer de Ferdinand Lassalle, e não correspondendo aos fatores reais do Poder, à realidade social, ao substrato sociológico, não podendo evolver coerentemente com essa realidade social, acabaria sendo violentamente substituída.
Fixas seriam, para Nelson Sampaio, aquelas constituições que, admitindo sua reforma, exigiriam, porém, que fosse feita por um órgão igual, ou da mesma categoria daquele que elaborara a Constituição. Da mesma forma, podemos afirmar que aqui não haveria, propriamente, Poder Constituinte derivado, de vez que, havendo necessidade de reformar a Constituição, deveria ser chamado o mesmo órgão, ou seja, deveria ser incumbido dessa reforma o próprio Poder Constituinte.
Os outros três tipos, a Constituição rígida, a flexível e a semi.rígida (ou semi-flexível) admitem, porém, sua reforma pelo Poder Legislativo (ou seja, admitem sua reforma por um Poder Constituído, ordinário, que estará, porém, quando no desempenho da função reformadora, sujeito a esta ou aquela exigência que poderá ter sido feita pelo Constituinte originário). Vejamos:
A Constituição rígida (mais comum. Veremos que a nossa Constituição é rígida, basicamente, embora possamos considerá-la como um tipo híbrido, de vez que é, de certa forma, imutável) seria, portanto, aquela que, admitindo sua reforma através do Poder Legislativo, exige, porém, que essa reforma somente possa ser aprovada através de um processo especial, diverso e mais difícil do que aquele utilizado na legiferação ordinária, ou comum. Estudaremos nosso processo de elaboração de emendas constitucionais, e apontaremos essas exigências, quanto à iniciativa, à discussão, à votação e aprovação do projeto de emenda (dois terços), etc.
Constituição flexível seria aquela que, admitindo sua reforma pelo Poder Legislativo (ordinário), permite que seja feita pelo mesmo processo da legislação (de elaboração da) ordinária. A Constituição Britânica, pode-se dizer, v.g., que é flexível. Cabe aqui, porém, uma observação: não se deve identificar a característica constitucional, de ser rígida ou flexível, em seu processo de reforma, com a estabilidade ou instabilidade das instituições.
Vários exemplos poderiam ser apontados, de Estados que, possuindo Constituições rígidas, são extraordinariamente instáveis politicamente, e, conversamente, de Estados que, possuindo Constituições flexíveis, não estão sujeitos a essa instabilidade.
Finalmente, a Constituição semi-rígida ou semi-flexível (portanto, um tipo que participa das características da Constituição rígida e das características da Constituição flexível), de que é exemplo, entre nós, a Constituição do Império, seria aquela que, admitindo sua reforma pelo Poder Legislativo ordinário, distingue, porém, entre matérias constitucionais e não constitucionais, exigindo, para as da primeira categoria, um processo especial de reforma, diverso do adotado na legiferação ordinária e permitindo, para as da segunda categoria, sua reforma pelo mesmo processo da elaboração das leis. O artigo 178 de nossa Constituição de 25 de março de 1824 adotou essa distinção:
"É só constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos poderes políticos e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos. Tudo o que não é constitucional, pode ser alterado sem as formalidades referidas (formalidades que foram tratadas nos artigos precedentes), pelas legislaturas ordinárias".
Essa distinção reflete, como sabemos, o conceito do constitucionalismo histórico ou ideológico, consagrado política e doutrinariamente na Revolução Francesa de 1789 e no artigo 16 da Declaração Francesa de Direitos do Homem e do Cidadão: "Toute société dans laquelle la garantie des droits n'est pas assurée, ni la séparation des pouvoirs déterminée, n'a point de constitution".
Passaremos logo, como dissemos, abandonando a discussão doutrinária a respeito da conceituação do Poder Constituinte, à caracterização desse Poder.
Como já vimos, o Poder Constituinte é um Poder extraordinário, isso porque não é normal, digamos assim, o seu funcionamento. Enquanto os Poderes Constituídos, denominados também ordinários, atuam cotidianamente, no desempenho de suas funções referentes ao governo, à administração do Estado já criado pelo Poder Constituinte, este, tendo atuado ao ensejo da organização desse Estado, retrai-se (digamos assim, porque o Poder Constituinte não deixa de existir em seu titular - já veremos) após essa atuação. É, assim, um Poder extraordinário e, como é curial, pode-se também afirmar que é de sua natureza ser um poder originário. Originário, porque ele é o poder criador, o poder primeiro - antes dele não há Constituição, não há Estado, apenas o substrato sociológico, as bases para o surgimento do Estado, latentes na sociedade ou evolvendo em direção ao sentimento nacional, a uma Nação.
Pode-se ainda afirmar que o Poder Constituinte é um poder supremo e dotado de soberania - não poderia deixar de ser dessa maneira,, ou não criaria um Estado, pois não pode ser compreendido o Estado sem soberania. Não há outro Poder maior do que o Poder Constituinte, e este criará o Estado como manifestação de seu titular, tradicionalmente, como veremos, o povo (ou a Nação), dotado de soberania, como veremos com Sieyès – sua vontade (do povo) é sempre a lei suprema.
Pela mesma razão, é da natureza do Poder Constituinte ser unitário e indivisível. A não ser assim, criar-se-iam dois ou mais Estados. Citemos aqui o artigo 3.° da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, antecipando, de certa forma, as idéias de Sieyès : "Le principe de toute souveraineté réside essentiellement dans la Nation. Nul corps, nul individu ne peut exercer d'autorité qui n'en émane expressément".
Sendo um poder supremo, tem capacidade de decisão em última instância, não podendo suas decisões (quanto aos fundamentos do ordenamento jurídico do Estado, é claro) ser objeto de modificação por outro Poder qualquer. É claro, dissemos, que o Poder Constituinte não se extingue, após a criação da Constituição e do Estado e, embora tenha sido estabelecida na Constituição a possibilidade de sua revisão pelo Poder Reformador, aquele Poder Constituinte segue existindo em seu titular. Evolvendo, porém, a realidade social, e alterando-se os fatores reais do Poder, como diria Lassalle, essa Constituição poderá, evidentemente, ser substituída, quer por processos lentos, de uma gradual evolução, quer por processos violentos e instantâneos, correspondentes a uma revolução.
A questão do titular do Poder Constituinte pode ser esquematizada da seguinte maneira : o titular representado por uma só pessoa (que poderia ser o Monarca, ou como representante da Divindade, ou a própria Divindade – v.g., os faraós egípcios), ou um grupo como titular do Poder Constituinte, gerando, como v.g. para Aristóteles, a Aristocracia (forma pura do governo de um grupo) ou a Oligarquia (forma impura do governo de um grupo), ou, tradicionalmente, desde as idéias liberais consagradas na Revolução Francesa, e com a obra de Sieyès (Emmanuel Sieyès - "Qu'est-ce que le tiers État?), o povo (mais corretamente, a Nação, ou os jurisdicionados - que serão, após a institucionalização).
Para Sieyès (que nasceu no ano da publicação do Espírito das Leis, 1748, e faleceu em 1836), o terceiro estado, o povo, em oposição ao clero e à nobreza, seria o verdadeiro titular do Poder Constituinte. O terceiro estado é uma nação completa, e em toda nação livre, dizia ele, só existe um modo de resolver os problemas referentes à organização constitucional - recorrer á Nação. Somente a Nação tem o direito de fazer uma Constituição, e sua vontade é sempre a lei suprema. Para Sieyès, a França não tinha Constituição, (é o conceito, como vimos, ideológico de Constituição, em oposição ao conceito neutro ou moderno, para o qual todo Estado tem Constituição, e nós diremos que é Autocrático ou Democrático, mas tem Constituição). Erigidas a Separação de Poderes (já definitivamente sistematizada por Montesquieu, como vimos, em 1748 - Charles Louis de Secondat, Baron de la Brede et de Montesquieu - Presidente do Conselho de Bordéus, tendo vendido o cargo e se retirado ao ócio com dignidade, já era célebre por suas obras da juventude, as cartas Persas e Grandeza e Decadência dos Romanos) e a assecuração dos direitos individuais (diríamos hoje, fundamentais) em elementos caracterizadores de uma Constituição, essas idéias foram consagradas pela Revolução Francesa, pela Declaração Francesa de Direitos do Homem e do Cidadão, e, logo, pela Constituição Francesa de 1791, determinando ainda, nas colônias americanas, a criação do Presidencialismo, com uma interpretação rígida da Teoria da Separação de Poderes.
Mas o que nos interessa precipuamente é a observação de que se considera, modernamente, o povo, ou a Nação, como titular do Poder Constituinte. Mesmo quando se faz uma Revolução, ela é feita em nome desse titular (vide preâmbulos do Atos Institucionais, no Brasil, especialmente o AI-2 e o AI-5/68).
Deveremos passar logo ao estudo dos tipos de Poder Constituinte, retornando aos conceitos iniciais desta dissertação.
Adotada a corrente de Kelsen e Pinto Ferreira, podemos afirmar que há dois tipos de Poder Constituinte: o originário e o derivado. Também nestas denominações não há unidade, pois o Poder Constituinte originário é também denominado Poder Constituinte de 1.° grau, enquanto o Poder Constituinte derivado é também denominado Poder Constituinte de 2.° grau, Poder Constituinte instituído, Poder Reformador, ou, conforme Nelson Sampaio, Poder de Reforma Constitucional.
O Poder Constituinte originário não sofre limitações jurídicas, como é lógico, de vez que sua natureza, como vimos, é a de um Poder originário, supremo e dotado de soberania. Apenas está sujeito a certas limitações sociológicas, latentes na infraestrutura, devendo elaborar uma Constituição coerente com essas determinantes (ou ela será apenas, no dizer de Lassalle, já citado, uma folha de papel).
Quanto ao Poder Constituinte derivado, além dessas mesmas limitações sociológicas, há os limites jurídicos, impostos pelo próprio Poder Constituinte originário, ao ensejo da elaboração constitucional (e que ensejam a classificação já apresentada, das Constituições, dependendo de sua consistência), e que podem ser assim esquematizados : limites materiais, limites temporais e limites processuais.
Trata-se aqui do processo de elaboração da emenda constitucional, ao qual deveremos retornar a respeito do entendimento dos artigos 47 a 49 da nossa vigente Constituição. É a reforma constitucional.
A mudança constitucional é a simples substituição da interpretação. Não se toca no texto constitucional, mas a Constituição passa a ter outro sentido, é mudada, substitui-se a interpretação deste ou daquele dispositivo constitucional. A mudança constitucional (constitutional change) é comum, v.g., nos Estados Unidos, de vez que sua Constituição, não racionalizada, enseja, juntamente com a extraordinária missão dada ao Judiciário (ao contrário do sistema francês, v.g., onde, até hoje, o juiz é apenas a boca que pronuncia as palavras da lei), esse constante afeiçoamento das instituições. E somente assim se compreende a permanência, com quase 190 anos, dessa Constituição (de 1787, em vigor em 1789, após sua ratificação por 2/3 dos Estados), que sofreu apenas 25 emendas (reformas, emendas solenes, substituição do texto), e se destina, como dizia Marshall, na célebre decisão do caso Mc Culloch contra Maryland, a reger todas as crises dos negócios humanos.
No Brasil, que possui uma Constituição escrita racionalizada, é da maior importância a reforma constitucional, que é feita através de emendas solenes, elaboradas através de um rito próprio, pelo Congresso Nacional (Poder Legislativo, um Poder ordinário, porém no exercício da função constituinte reformadora), como veremos a seguir.
Esquematicamente, podemos abordar nosso processo de elaboração das emendas constitucionais (entendimento dos artigos 47 a 49 da vigente Constituição) debaixo de três tópicos:
iniciativa;
discussão, votação e aprovação;
promulgação e vigência.
Quanto à iniciativa, é atribuída a um terço dos membros da Câmara dos Deputados, no mínimo, ou a um terço dos membros do Senado Federal, ou ao Presidente da República (artigo 47, I, II e § 3.°). São limites processuais, como veremos outros, a seguir. Caberia aqui, talvez, uma elocubração. Se o Supremo Federal tem decidido, como é esdrúxulo, que a sanção do projeto supre a falta de iniciativa do Poder Executivo (nos casos em que a competência é privativa do Presidente, para a apresentação de projetos de lei), não se poderia, também, achar que, não tendo sido cumpridas as normas citadas, referentes à Iniciativa, à apresentação da proposta de emenda constitucional, mas tendo sido ela aprovada pelos 2/3, etc., isso também supriria, igualmente, a falha anterior?
Apresentada a proposta, quer pelo Presidente, quer com a assinatura do terço dos deputados ou dos senadores, passaremos à fase seguinte : discussão e votação em reunião do Congresso Nacional (sessão conjunta, utilizado o Regimento do Congresso, e não os da Câmara ou do Senado), em duas sessões (pela importância que certamente deverá ter a matéria), dentro de sessenta dias, a contar da sua apresentação ou recebimento, e havida por aprovada quando obtiver, em ambas as votações, dois terços dos votos dos membros de suas Casas (artigo 48). Observe-se que, em ambas as sessões, é necessária a aprovação da proposta por dois terços da totalidade dos membros da Câmara, e por dois terços da totalidade dos votos dos membros do Senado. Não se trata dos presentes, apenas, mas da totalidade, exigindo a Constituição, nessa maioria qualificada, a votação em separado- Câmara e Senado. Embora se trate de uma sessão conjunta, os votos são computados separadamente.
Observa-se a exigência da maioria qualificada, abandonada aqui a regra do artigo 31 (deliberações por maioria de votos, presente a maioria dos membros - maioria relativa), ou a maioria absoluta, conforme exigida para a Lei Complementar.
Tendo sido alcançada a maioria exigida (2/3), nas duas sessões, a proposta estará transformada em Emenda. Observe-se, agora, que se prescindiu da sanção presidencial. A Emenda Constitucional já está perfeita e acabada, já é Lei (sentido amplo), faltando apenas sua promulgação e publicação.
Aqui encontraremos, portanto, a promulgação, (declaração solene da existência de uma Lei) como um ato isolado, à semelhança do que ocorre com o Decreto Legislativo, ou com o projeto vetado e transformado em lei por haver alcançado os 2/3 no Congresso (rejeição do veto). Essa promulgação será feita (artigo 49) pelas Mesas da Câmara e do Senado, com o respectivo número de ordem. Será, então, a Emenda Constitucional (e não o projeto) remetida ao Presidente da República, para que seja publicada, após o que, normalmente, entrará em vigor na data de sua publicação, ou em determinada data solene, como poderia, também, na ausência de disposição expressa, ser aplicada a norma constante da Lei de introdução ao Código Civil.
Deixamos para esta oportunidade outros limites, ternporais, não podendo a Constituição ser emendada durante o estado de sítio (pelo próprio cerceamento de direitos vigente, que poderia viciar essa deliberação da maior relevância), conforme o § 2.° do artigo 47, e os limites materiais, previstos no § 1.° do mesmo artigo: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a Federação ou a República". Nesse ponto, portanto, nossa Constituição é imutável, como vimos (salvo por uma Revolução, é lógico, porque aí já estará havendo a manifestação do Poder Constituinte originário), sendo proibidas as propostas de emenda tendentes, mesmo, a abolir esses dois fundamentos, essas bases, de nosso ordenamento constitucional. Não é preciso que a proposta diga - "Fica abolida...", basta que seja tendente a isso.
Este o trabalho que nos foi possível apresentar, contando com a benevolência da Banca e com a desculpa da exigüidade do prazo de que dispusemos.
Fernando Lima
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