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Historicamente falando, Dioniso conta com suposições informuladas, hipóteses controversas e um conjunto arqueológico-documental esparso; as várias construções lógicas tentam buscar uma possível coerência baseada nos estudos antropológico-culturais aliados aos dados até então descobertos por variadas e diversas pesquisas. Grande parte do conteúdo é apenas suposto, a etimologia, por exemplo, conta com um "filho do céu" baseado no nome Dio(s), céu em origem trácia, e Nysa significando filho, até um "filho de Zeus" ou "o Zeus de Nisa". Quanto a seu outro nome Baco e seus vários derivados, também não se dão esclarecidas a sua origem, tentando-se uma analogia semântica com o verbo bakkheúein, que significaria "ser tomado por um delírio sagrado".
Vale lembrar que essa suposta etimologia teria origem trácia, e que toda a posteriror assimilição por Dioniso de outras divindades de representações similares põe uma linear e absoluta evolução lingüística perdida nos recônditos da história.
Toda essa profusão de nomes e verbos entrelaçados remonta a todo o sincretismo e reformulação a que a entidade Dioniso foi submetida, sendo o nome "Dioniso" ou "Baco" apenas uma denominação majoritariamente conhecida para o deus do entusiasmo, do êxtase, do vinho, entre outros. Outros epítetos foram atribuídos a essa divindade, e três foram identificados pelas relações e características similares a Dioniso, sendo eles Iaco, Brômio e Zagreu:
"IACO é um avatar de Dioniso. Via-se nele o deus que conduzia a procissão dos iniciados nos Mistérios de Elêusis e que era identificado misticamente com Baco. Etimologicamente, Iaco provém de iakkhé, ‘grande grito’. Trata-se, em princípio, de uma exclamação ritual, de que nasceu a idéia da presença, no cortejo dos Iniciados, de um
daímon (gênio), o místico Iaco (o Iaco dos Mistérios), que projetava, de certa forma, a alma coletiva e a expressão do entusiasmo de que era tomada, como antegozo da iniciação, a multidão dos peregrinos em marcha para Elêusis.
BRÔMIO é um dos epítetos mais freqüente de Dioniso nos hinos que imitam os cantos litúrgicos, entoados em seu culto. Do ponto de vista etimológico Brómios se prende a bromos, ‘estremecimento, frêmito, ruído surdo e prolongado’, cuja fonte é o verbo brémein, ‘fremir, agitar-se’, donde Brômio é o ‘ruidoso, o fremente, o palpitante’, significação que se harmoniza perfeitamente com a agitação e o tremor, acompanhados de estertores e surdos rugidos, que assinalavam o estado de transe com a presença do deus que se apossou de seus adoradores.
ZAGREU é um dos nomes pelos quais é chamado o deus do êxtase do entusiasmo no mundo mediterrâneo e particularmente, ao que parece, na ilha de Creta. Talvez o deus designe uma divindade, que, por força de analogias de seu culto com o de Dioniso, com este se tenha confundido, em épocas difícil de se precisar." (BRANDÃO, 1999, p.144).
O nome Zagreu, que teria sido uma divindade próxima de Dioniso, nos parece lembrar de sua origem pré-helênica, em que se contrapõe a crença anterior à década de 50, de que Dioniso seria um deus de origem trácia, e suas aparições nas epopéias foram feitas através de uma tradição mais recente do deus. Já no século XIV se encontram indícios da presença do deus em terra micênica, e que possivelmente em um território análogo à ilha de Creta, existia uma divindade tauromórfica, acólito de uma "Grande-mãe", representativa na própria natureza, força da vegetação, em que aparecem os ícones que nos remetem ao filho de Sêmele helênico. A manifestação do espírito dionisíaco e a estreita relação com a vegetação e a fertilidade são o que nos faz já remeter a aparição de um deus provocante e orgíaco como Dioniso, além da decifração de hieróglifos cretomicênicos por Michael Ventris atestar a sua presença na Hélade desde o século XIV ou XIII a. C.
Essas reconstruções históricas nos fazem pensar que o caminho cultual e teológico de Dioniso de Tebas até Argos seria um regresso de um deus que já cultivava há séculos com o mundo pré-helênico uma relação que teria tido suas raízes arrancadas pela invasão dórica. Esse deus paciente viajante teria encontrado então com um outro Dioniso criação aristocrática helênica, que contrariando suas mais verídicas origens populares, quais sejam as datas cultuais relacionadas às colheitas, sua menção de divindade das potências geradoras, ou o êxtase da multidão, que quebrava as regras políticos e sociais, gerou uma dupla tradição a respeito do Deus do vinho. Esse deus de raízes populares foi então usado em Atenas, por governantes, para o contentamento geral e para petição de favores ao povo, e, principalmente a partir de Pisístrato, passaram a ser comemoradas grandes festas em honra a Dioniso.
As Dionísias rurais celebravam-se no mês Posídeon, que corresponde à segunda metade de dezembro. São as mais antigas festas áticas de Dioniso, realizavam-se nos demos e tinham como cerimônia central uma alegre e barulhenta procissão com danças e cantos, em que se carregava um grande falo, sendo que os participantes vestiam-se com máscaras ou disfarçavam-se de animais intentando provocar fertilidade no campo (BRANDÃO, 1999).
Sobre as Lenéias apenas sabe-se que se celebravam no Lénaion, e que Dioniso era invocado pelo condutor de tochas, denominado caduco. Trata-se também de uma cerimônia para invocar a fertilidade e a hierofania de Dioniso, para presidir às solenidades, que se iniciavam com uma procissão de caráter orgiástico, a que se seguia um duplo concurso de tragédia e comédia (Ibid).
As Dionísias Urbanas celebravam-se na primavera, no mês Elafebólion, fins de março, e duravam seis dias. No primeiro era realizava uma procissão em que se transportava o deus do Teatro; nos dois dias seguintes realizavam-se concursos de dez Coros Ditirâmbicos; e nos três últimos dias os concursos dramáticos dominavam a cena (Ibid).
E as mais antigas festas dionisíacas, as Antestérias, ou "festa das flores", eram celebradas no mês Antestérion, fins de fevereiro, inícios de março. Nessa festa Dioniso se manifestava por inteiro, com todo seu orgiasmo e quebra de protocolos, sendo, no entanto, tolerada pelo estado pela sua menção à fecundidade e à fertilidade. No primeiro dos três dias das comemorações eram abertos os tonéis de vinho correspondentes à colheita do outono, e dessacralizando-se o vinho novo iniciava-se a bebedeira. Possivelmente também os escravos participavam deste evento. O segundo dia era consagrado a um concurso que premiava quem bebesse mais rapidamente um cântaro de vinho. Logo depois organizava-se uma procissão que comemorava a chegada do deus à polis, e quando esse cortejo chegava ao santuário do deus era feita uma cerimônia em que a rainha era desposada por Dioniso representado por um sacerdote, encenando a união do deus com a Pólis. No terceiro e último dia eram colhidos ramos com espinhos, e eram feitas variadas ornamentações representativas contra a influência maléfica dos mortos, que deveriam surgir nessa data com toda influência sobre a terra e à fertilidade, já que estes governam as forças ctônicas priorizadas por um deus da vegetação como Dioniso (Ibid).
Cumpre observar a importância do vinho na festa, e sua relação com o êxtase que provocava nos populares, levando-os a cair fora de si, lembrando um estado que vai além do cotidiano, alcançando um estado que ultrapassava a simples condição humana. Esse estado extático interage fortemente com a embriaguez, a quebra de condições, a fuga das convenções políticas e sociais, o que explica a adesão em massa das mulheres, sufocadas pelo machismo humilhante que lhes restringia as condições de vida.
Dioniso foi sempre alcunhado de deus das metamorfoses, e, por suas inúmeras formas de aparições, suas representações em bodes e touros, seus rituais sempre freqüentados por seres trajando máscaras, se confunde com todas suas situações teológicas e históricas, em que o sincretismo parece determinar um deus que não usa forma única, que parece a cada momento usar um rosto para se proteger de determinações e rótulos. Porém esse deus que se torna difícil de categorizar e organizar toma sentido quando é relacionado a representações humanas sentimentais, que insurgem para a cultura e toda estrutura de uma civilização, ou melhor dizendo, de várias civilizações.
Sua maldição sobre os que não lhe bem receberam, ou que lhe negaram o culto, como as três irmãs Miníades, filhas do rei Mínias, mostra toda imposição do deus à comunidade pela própria comunidade, que alegoricamente joga ao inconsciente coletivo uma imagem que mostra como é aterrorizante o castigo dos que lhe negam homenagens, algo como a mãe Miníade que mata o próprio filho enlouquecida pela influência perturbadora de Dioniso que a faz confundir o filho com um bicho qualquer. E então depois tudo volta à paz quanto lhe é prestada a cultuação que um deus que manifesta desejos necessários merece.
As faloforias são um outro aspecto interessante do deus das potências geradoras, e suas maldições itifálicas sobre os homens de uma região provocam uma suposta relação estreita do deus com um apetite sexual devorador. Ao que parece, Dioniso mesmo nunca se apresenta como o deus da perversão, e por trás das multidões carregando falos em sua homenagem e todas esculturas fálicas, ele se manifesta como o causador do desejo, o motivo ou pretexto pelo qual todos dão liberação a suas necessidades estarrecedoras. As tantas figuras fálicas parecem mostrar já nas civilizações pré-helênicas e helênicas a consciência da geração da vida, da fertilidade, a fetichização irrepreensível de um instrumento que manifesta tão importante papel no pequeno mundo humano e que pode ser transposto para categorias divinas refletindo toda a necessidade humana frente a sua própria vida.
As já citadas convergências teológicas e culturais dos povos dão origem a várias metamorfoses mitológicas, sendo o casamento de Dioniso com Ariadne, que nos dá indícios da presença do deus no mundo grego ainda antes da invasão dórica, uma suplantação da antiga deusa da vegetação egéia por uma outra divindade de maior poder que também se relaciona com as potências geradoras da terra e da fertilidade. Assim então a antiga deusa da vegetação Ariadne é mitologicamente rebaixada a uma mera princesa mortal que é desposada por Dioniso após um desencontro passional[1], podendo assim ter sua conversão dentro do mito de uma forma que lhe garanta participação, continuando a se relacionar com seus crédulos através de uma presença transmudada.
A complexidade das transformações mitológicas forçadas pelas interações culturais demonstra uma riqueza de impulsos e necessidades das nações e sua conseqüente representação em alegoria que mostre em um setor comunicativo o que uma comunidade, livre de sua individuação, quer e deseja de si mesmo. Um mito que comprova os recônditos fundamentalmente significativos (em relações de imanência, e não apenas de transcendência) das construções teológicas, este com relação direta com os rituais dionisíacos, conta que Dioniso, ao nascer, foi entregue aos cuidados de Apolo e dos Curetes na Floresta do Parnaso, para com isso evitar a perseguição implacável de Hera. Hera, por sua vez, manda os Titãs com os rostos pintados de gesso lhe perseguirem, e estes alcançam Dioniso esquartejando-o e cozendo-o em chamas. Dioniso então é morto e renasce apenas por seu coração, que, engolido por Zeus ou Sêmele (as versões divergem) dá origem novamente a ele.
Quanto à significação ritual do mito, é sabido que existiam vários rituais iniciáticos relacionados a Zagreu que punham cozimento em prática, e em algumas festas comemorativas a Dioniso, eram mortos animais (touros ou caprinos) para depois parti-los para comer sua carne crua, como sinal de junção com o deus e êxtase orgíaco, penetrando a própria divindade no ser do indivíduo. Além disso, os neófitos, em um rito arcaico de iniciação, cobriam o rosto de cinza, o que mostra as raízes festivas da construção simbólica da coloração do rosto.
Um outro mito grego (relacionado ao acima mencionado) narra o episódio em que Zeus, fertilizando Sêmele, a torna fecunda de Dioniso, e Hera, a ciumenta esposa de Zeus, disfarça-se em sua criada, sugerindo a ela que peça a Zeus que se mostre em todo o seu esplendor. Sêmele, então, desejosa de mostrar seu amor divino e irritada com a falta de confiança sobre seu relacionamento que suas amigas lhe dão nesse assunto, pede a Zeus que se mostre plenamente. Zeus a adverte sobre a falta de estrutura dos mortais quantoà grandeza dos seres divinos, mas, como havia prometido nunca negar-lhe os desejos mostra-se em toda sua potência. Sêmele morre fulminada por um raio, fazendo Dioniso nascer precocemente de seu ventre. Zeus então recolhe Dioniso e o coloca amarrado à sua coxa, gerando-o e lhe dando a vida desse modo.
A forma como Zeus amarra o pobre Dioniso à coxa, aparentemente estranha, anula uma contradição estrutural da teologia grega, pois, se Dioniso nasce filho de Zeus, um deus imortal, unido a Sêmele, mera mortal, teria este características de semi-deus, longe de todo seu poder divino. A geração na coxa de Zeus remete assim a um segundo ventre que explicaria seu status de deus, sendo o local considerado pelos helênicos como base, suporte, com toda uma categorização especial e que por isso justificava sua escolha.
Pela descrição desses dois mitos nota-se um fato: a oposição de Hera para com Dioniso, o que pode ter também influências mundanas, pelas constatações da falta de cordialidade entre as sacerdotisas dos dois deuses e pela distância a que se mantinha os apetrechos dos dois rituais correspondentes. Esse antagonismo explica-se teologicamente, vislumbrando-se toda a falta de arbitrariedade e riqueza de idéias de uma construção da cultura antiga: Hera, como deusa do casamento e opositora freqüente da infidelidade do marido mostra-se uma deusa dos costumes, da tradição adaptada e estigmatizada. Dioniso é o deus do êxtase, das regras sendo quebradas, da loucura (a manìa divina) que se espalha pelos ritos absorvendo todos os presentes. Graças a esta oposição, entende-se também a diferenciação de Dioniso dos demais deuses olímpicos, parecendo mesmo um intruso furando o bloqueio aristocratizado pelos deuses do Olimpo e adentrando na Hélade.
A razão dessa diferenciação de Dioniso, o deus campônio, o deus da vegetação, pode explicar sua aparição demasiada tardia na literatura grega, dificultada pelo atual estado da Pólis grega, dominada pelos Eupátridas, que buscavam um domínio político e militar além do absoluto controle das terras. Um deus popular, predominantemente agrário e que expressava grande embriaguez de espírito e êxtase desmedido não podia mesmo trazer agrado aos poderosos que buscavam um equilíbrio apolíneo, regrado e conservador. Dioniso, nesse ambiente, passou por grande período de barragem às suas epifanias, chegando ao ponto de tornar-se um tabu pronunciar-se seu nome na Pólis grega. Mas é sabido que logo suas festas se propagaram e que sua divindade se popularizou e nos deixou dessa maneira relatos e referências várias. O assunto torna-se esclarecido pelo contexto social e político: a semente da democracia germinava na Grécia, o comércio se desenvolvia juntamente com o descontentamento do povo, não demorando para a revolução se dar e Sólon colocar seus primeiros projetos em prática. Foi então que o povo, apossado do espírito dionisíaco, pôde tornar suas vontades e anseios atividades por todo o calendário da cidade, e Dioniso, então, tornou-se cada vez mais comemorado em razão das reformas democráticas de Pisístrato, seguido por Clístenes, Efialtes e Péricles.
As teorizações antropológicas ou teológicas sobre as religiões têm, nas suas pretensas metas mais objetivas, a relação no sentido homem-deuses, versando sobre os mais íntimos desejos e sentimentos de uma nação ou comunidade que possam ser refletidos em crenças, elaboradas por uma tradição quase inconscientemente construída, revelando quais os impulsos básicos, o que se determinou para todos ou o que se teme. Essa construção gradativa afastada de projetos articulados e calculados tendo em vista o futuro, afastada também de uma transcendência imposta pelos céus que foi descoberta por revelação mística, mostra sim quais os valores que se podiam esperar de um conjunto de imaginações se relacionando, ou, pelo poder que se mantinha pela força sob as formas mais variadas, a imposição de valores de uma parte imperial da sociedade para todos os convivas, em forma de mitologia.
Com Dioniso, os anseios básicos de todas as culturas que lhe denominaram com nomes diferentes parecem ser identificáveis e relacionáveis, por toda a historiografia documental e artística, embora parecendo inexprimível em parcas palavras, sendo esse impulso comum, talvez, um conjunto de palavras que enuncie um sentimento e não um sentimento já enunciado por uma palavra. Lembra-se de Dioniso ao pensar-se sobre o vinho, ou, mais claramente, sobre seu efeito, sua ação sobre a psique humana, sua embriaguez de espírito e explosão causada ao mais alegre bebedor.
A essência dionisíaca parece confundir-se com o vinho, com seu poder característico sobre os homens, sua manipulação para longe do cotidiano, seu afastamento libertador da convenção, em que se salta todos os cálculos visados pelo bem estar comum e mergulha-se no incontrolável, liberando toda aquela energia erótica acumulada pelo regrado mundo social e formal. Suas epifanias, suas máscaras como touros ou bodes, seu louvor como deus da vegetação parecem girar em torno de um impulso humano ansioso por representação, e, como ornamentos necessários, dar coerência alegórica a uma divindade que proporcionará comemorações culturais que o elevem a uma das mais importantes divindades do mundo helênico, antagonizando e dividindo com Apolo dois valores mitológicos que parecem interagir com o mundo social e psicológico, que dão a entender uma oposição necessária, uma condição do entendimento.
O apolíneo é o individual, regrado, o estabelecido em equilíbrio por vias moderadamente medidas, que traz a tranqüilidade e o sereno olhar dos deuses para a conformidade do mundo humano. O dionisíaco é o além-mundo, o estado extático que quebra a individualidade apolínea e conduz a um estado único, de união com o grande ser que constrói tudo e é o substrato de tudo, chamado por Nietzsche de Uno-primordial (1992), a própria natureza metafísica. Não é de surpreender que esse estado de entusiasmo e êxtase ligado ao efeito do vinho e às orgias tenha sido associado a um mundo supremo pelas culturas arcaicas, o tão incompreensível e louvado altar dos deuses que fora prometido e ritualizado como uma potência rebaixadora da pequenez mortal, que faz o dia-a-dia em busca da sobrevivência parecer sinal de fraqueza perante todo o esplendoroso êxtase divino.
Esse estado irregrado, que conduz à liberação, algumas vezes relacionado à palpitante ruborescência da carne sangrenta que espalha a vida em todo corpo animal e humano[2] e à efervescência da embriaguez do vinho explica também todo o receio da Pólis que busca o equilíbrio apolíneo diante da desmedida de Dioniso seguido por suas Mênades e Sátiros, conduzindo uma multidão carregando tonéis de vinho em entusiasmo anárquico. O culto do vinho, por hipótese, talvez tenha surgido antes de uma divindade como Dioniso, e este poderá ser filho do efeito de uma bebida que maravilhava um povo, e que logo passou a impressionar vários povos, que possuíam na imaginação mitológica o mais eficiente modo de explicação de seu mundo e suas circunstâncias. O mito do adolescente Dioniso que descobre uma bebida fantástica e põe as Ninfas e os Sátiros dançando em torno de si em conseqüência do estado deixado pelo vinho nestes teria sido, de acordo com esta visão, uma ostentação mitológica do poderio divino do líquido dionisíaco, tornando as direções sentimento-fantasia e homem-deuses didaticamente presentes.
Esse êxtase dionisíaco parece sempre nortear suas apresentações mais claras na civilização antiga, e suas faloforias explicam-se por outros entendimentos, além da ligação estreita de Dioniso com o orgiasmo erótico ressaltada por seus Sátiros sempre de falo ereto atentando as Mênades e fornicando animais. Em mitologias que parecem ser sólidas construções de nuances, em que qualquer construção semântica encontra fundo em relações práticas associadas ao mundo empírico antigo, sejam as colheitas, a fertilidade da terra ou à política da cidade, Dioniso sempre esteve ligado a uma origem popular, ao êxtase coletivo em que todos celebram em conjunto a própria embriaguez espiritual que domina a todos e os leva para longe da legislação social.
O povo, sempre a massa necessitada da terra e das vias agrícolas, via em Dioniso uma divindade da vegetação e das potências geradoras que desde sempre estiveram associadas à seiva bruta, ao humor vital que faz as plantas crescerem e o solo fertilizar cada vez mais as colheitas (que depois em seus ciclos vieram a determinar as datas das festas dionisíacas) tão fundamentais nas primeiras civilizações conhecidas. O orgiasmo dionisíaco tão ligado ao erotismo que se expande em ocasiões que se dão a liberdade, tornou a potência geradora do sexo cada vez mais próxima das forças de geração da natureza e da mãe geratriz terra, tendo Dioniso sido coroado com estátuas de falos que indicam como sua estreita ligação com a fertilidade vital pode ser explicada pelo órgão, que em relação a Dioniso era visto como um símbolo carregado de representações que vão além de uma possível quebra de tabu sexual e social que lembrariam o despojamento e diferencial de um deus incomum.
Fica, pois, a impressão de um Dioniso saltitante, o deus da liberação em momentos especiais, e ainda, o espírito dionisíaco quase proibido, o êxtase que é apenas prazer sem razão, essa fruição espontânea da vida que nos é dada gratuitamente pela condição humana, que longe de ser calculada e logicizada, nos leva a tudo que começa nos sentidos e acaba em êxtase passível de atribuições divinas.
O filho de Sêmele e Zeus, esse polêmico deus, permanece fruto originado das primeiras comunidades civilizadas conhecidas, e fiel ainda mais a um estado demasiado humano que é comemorado por grandes contingentes de pessoas, traçando uma relação inter-cultural e supra-geográfica das necessidades humanas. Por escassas e esparsas que sejam suas evidências e dados históricos, traça-se uma analogia inevitável entre suas manifestações arcaicas e o que hoje é comemorado nas realizações contemporâneas, sustentada pelo que se conhece das características humanas em sua essencialidade e das convergências culturais e sociais, que deixam à mostra um ser humano muito ligado ao sexo, a oposição política entre povo e elite, as fornecedoras de subsistência louvadas por sua importância, e o natural instinto comemorativo em rebanho, que constrói motivos que são instigados pela convivência comunitária.
Por mais prováveis (ou supostas) que pareçam sua origem minóica, sua identidade como filho de Zeus, seu antigo relacionamento com uma Grande-mãe cretense que, por adaptação mitológica, depois viria a se tornar Sêmele, além de sua problemática etimologia trácia, os fatos parecem perdidos para sempre, e o tesouro arqueológico só encontra utilidade e significação embebido em suposições teóricas antropológicas, esclarecimento das pulsões teológicas do homem antigo e entendimento das necessidades mais primordiais da natureza humana.
A tradução do sentimento Dionisíaco, quais sejam o "jorrar e saltar" (DETIENNE, 1988, p. 110), a junção com a natureza em seu Uno-primordial (NIETZSCHE, 1992), as "forças obscuras que emergem do inconsciente" (BRANDÃO, 1999), ou o ditirambo originário da tragédia, que com a melodia de seu coro lembrava um êxtase próximo do prazer irracional e inexplicável, e que aproxima até hoje a música do espírito dionisíaco, que talvez só encontrasse explicação num poder além do visível, como a embriaguez que Dioniso incitava aos gregos.
Dioniso permanece então deus do vinho, das faloforias, das potências geradoras e do êxtase numa caminhada antropológica que proporcionou uma interpretação dos instintos de um povo em sua totalidade, da compreensão de um povo em comunidade, como em união que exprimisse o que tais culturas mantinham em suas manifestações essenciais, compreendendo assim mais do que fragmentos de filosofias ou personalidades individuais, mas o que exprimiam quantidades de povos que passaram a formar um caldeirão de idéias e hábitos sempre relacionados chamado civilização humana.
Dioniso fica assim entendido até o fim como um deus apolítico, que teve suas atuações construídas por e para o povo, de mitologia majoritariamente helênica com uma origem duvidosa pelas suas máscaras passando por várias culturas e nomes, escondendo e exprimindo idéias diversas através de seus símbolos e figuras, sendo sempre assustadoramente antagônico aos olimpianos em toda sua organização e pompa. E por trás de toda potência do falo, do desejo do vinho e de suas várias outras correlações, encontra-se um substrato que faz Dioniso, dentro de seu contexto helênico e pré-helênico, transmissor de um sentimento de difícil unificação e expressão, tornando o sentimento dionisíaco sempre entendido, e só metaforicamente expressado.
DETIENNE, Marcel. Dioniso a céu aberto. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1988. 152 p
SOUZA, Eudoro de. Dioniso em Creta e outros ensaios. São Paulo: Duas cidades, 1973. 333 p
SISSA, Giulia; DETIENNE Marcel. Os deuses gregos. São Paulo: Companhia das letras, 1989. 317 p
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. 3 v.
ROBERT, Fernand. Religião grega. 1. ed. São Paulo: M. Fontes, 1981. 119 p
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das letras, 1992. 177 p
[1] Ariadne, após ajudar o herói ático Teseu a escapar do Labirinto de Cnossos, se apaixona e foge com o filho de Egeu. Já depois, quando o navio de Teseu faz escala na ilha de Naxos ele a abandona adormecida na praia, apaixonado por outra mulher, ou, dizem outros, por obediência aos deuses, que lhe proibiam o amor. Solitária em prantos na praia, Ariadne se consola com a chegada de Dioniso com seu cortejo de Sátiros e Mênades, sendo desposada pelo deus que se fascina com sua beleza. Dioniso leva-a para o Olimpo e lhe presenteia com um diadema de ouro, que, na chegada à mansão dos imortais, transforma-se em constelação (BRANDÃO, 1999).
[2] Perseguir um touro através dos campos, capturá-lo, degolá-lo, beber-lhe o sangue, cortar-lhe as carnes (rito do diasparagmos) e devorá-las cruas (ômophagies), tal é o rito essencial do culto dionisíaco, a razão de ser do seu nome, que se aplica aos boieiros adoradores do deus. Rito de comunhão por excelência, pois o touro é então o deus, e não o animal sagrado do lugar, e o fiel é penetrado por todo o divino que nele reside consumindo-o no estado mais próximo de sua onipotência viva, fogosa e fecunda (ROBERT, 1981).
Gustavo Vargas de Paulo
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