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Um dos maiores problemas atuais da humanidade é o desemprego. É um drama que afeta tanto os países ricos, quanto os "em desenvolvimento" e os francamente retardatários, onde campeia a fome ou a desnutrição, tão dramaticamente retratadas em fotos e filmes de crianças africanas esqueléticas, cobertas de moscas e dotadas de imensos ventres de vermes. As soluções, porém, até agora, para tais cenas de horror são paliativas, provisórias, dependentes de surtos de caridade de países mais ricos ou do esforço da ONU. Esta faz o que pode mas não tem condições de resolver o problema em definitivo e muito menos em caráter preventivo. Um mundo realmente organizado não deveria resolver seus problemas de miséria coletiva extrema contando apenas com a episódica caridade, dependentes de impulsos momentâneos. Logo após a Segunda Guerra Mundial o inquérito Kefauver, nos EUA, constatou que grande parte do dinheiro americano, enviado para socorrer a reconstrução do sul da Itália, voltava para os bancos americanos, numa viagem de ida e volta, rendendo juros para seus novos depositantes. E, freqüentemente, apenas proporção mínima do montante da caridade privada internacional chega às mãos de seus destinatários. Quando a caridade é particular, não há como policiar devidamente o trajeto do dinheiro, que flui através de canos cheios de furos.
Os países, ricos ou pobres isoladamente considerados , não têm como solucionar o problema do desemprego, fruto, paradoxalmente, da própria engenhosidade humana em termos de tecnologia. Com a mecanização da agricultura, imensos contingentes de trabalhadores deixaram o campo para trabalhar nas cidades. As fábricas, porém, foram aperfeiçoando, cada vez mais, a automação, eliminando postos de trabalho, de forma a só restar o trabalho burocrático nos escritórios. Aí surgiram os "carrascos" finais do trabalho, o computador e a Internet, que dispensaram milhões de funcionários e ainda prometem dispensar muito mais porque são infinitas as inovações que dispensam mãos e cérebros. Até os profissionais da informática se sentem hoje inseguros, ou abertamente dispensáveis, desempregados, mesmo quando bem qualificados. Já é uma ilusão o jovem pensar que o simples fato de haver penetrado no mundo da computação é uma garantia de emprego permanente.
Quase todos sentem uma espada sobre suas cabeças. Será, mesmo,
necessário, inevitável e útil, que o homem, para manter-se
produtivo, se sinta constantemente na corda bamba, temeroso da velhice ou
mesmo da simples maturidade e do desemprego, atormentado pela contínua
necessidade de ultrapassar seus semelhantes? O "capitalista selvagem"
quando por cima, bem de vida pensa que sim, mas a maioria discorda, insistindo
que a solidariedade deve temperar a competição incessante. Como
resolver o problema do desemprego nos países ricos? Proibindo ou penalizando
o uso da automação e da informática? Impossível
e insensato. É um avanço, um "progresso" que não
tem retorno. Por que contratar milhares de funcionários para um trabalho
que pode ser feito por uns poucos programadores de sistema e operadores?
A única solução viável não há outra
, para se evitar o desemprego nos países "ricos" usemos
este termo simplista para brevidade de exposição estaria na
diminuição da carga de trabalho semanal, obviamente sem redução
do salário, o que forçaria a contratação de novos
funcionários. Mas não é possível a qualquer país
fazer isso isoladamente. Se, por exemplo, o governo dos EUA obrigasse as empresas
a reduzir o horário de trabalho, forçando-as indiretamente a contratar
novos trabalhadores, as empresas transfeririam suas instalações
para países em que não houvesse tal restrição. Um
vasto mundo subdesenvolvido, com mão de obra desocupada, barata a abundante,
estaria ansioso para receber tais investimentos não especulativos. Seria
bom para eles, mas economicamente péssimo para os EUA, pois aumentaria
ainda mais o desemprego local. Seria um tiro no próprio pé. Com
o aumento do desemprego nenhum presidente se reelegeria. Eleitores, de qualquer
país, querem um "bom governo", claro, mas subentendido que
o adjetivo se refere, primeiramente, ao próprio país, não
a uma genérica e vaga "humanidade".
Esta elogia sinceramente a concomitância na satisfação
dos dois interesses, o próprio e o geral, mas quando ocorre o conflito
entre ambos, desnecessário indagar qual deles prevalecerá. Os
países, isoladamente considerados, podem aliviar, momentânea e
parcialmente, o desemprego incentivando, por exemplo, a indústria de
construção civil, ou outros setores que utilizem o trabalho não
qualificado , mas tais meritórios esforços não podem ser
senão esporádicos, não solucionam de vez o problema global
do desemprego. Nem todos os desempregados podem se converter em pedreiros e
encanadores, e há limites para a expansão do número de
habitações porque estas custam um dinheiro de que nem todos dispõem.
O problema é mundial, agravado pela globalização. Até
as telefonistas estão sendo dispensadas porque atualmente dialogamos
com máquinas que, para desespero nosso, respondem, com "tecle x",
depois "y", depois "z", e assim sucessivamente, constituindo
um alívio indizível quando encontramos, finalmente nem sempre
merecemos isso uma voz humana na outra extremidade da linha. Finalmente, como
obstáculo à redução geral do horário de trabalho,
resta a consideração incontornável do lucro, base do eficiente
mas duro sistema capitalista. Executivos de empresas, por mais compreensivos
que sejam, não podem manter seus empregos contratando mão de obra
dispensável, com isso aumentando as despesas. Se o fizerem, terão
que elevar os preços de seus produtos, que ficarão encalhados
em razão da concorrência, levando seus patrões à
bancarrota. Os acionistas, mesmo pretendendo o céu após a morte,
dos CEOs esperam lucros, não demonstrações de caridade.
Pergunta-se: por que, com um governo mundial, as coisas funcionariam melhor,
no item desemprego? Porque a redução da carga semanal de trabalho
inevitável, a longo prazo seria imposta de forma geral, algo que
só um governo mundial teria condições de fazer. Não
adiantaria aos executivos das multinacionais moverem as fábricas de um
país para outro, porque não haveria para onde correr, todos eles
teriam a mesma restrição básica. E poderia haver um salário-mínimo
mundial, desestimulador da "dança" das multinacionais. Nos
países subdesenvolvidos, onde o desemprego tem conseqüências
ainda mais graves por estimular a difusa criminalidade de rua carga horária
menor também permitiria um maior número de contratações.
É preciso insistir que o grande e involuntário "vilão"
da humanidade que em um governo mundial se converteria em "amigo"
, no item emprego, é a tecnologia. A inegável "ociosidade"
que nos proporcionam a máquina e a informática terá que
ser compartilhada por todos, se quisermos viver com relativa tranqüilidade.
Quem pensar o contrário mudará, provavelmente, de idéia
se ainda houver tempo quando algum desempregado, movido pelo desespero,
lhe encostar uma faca na garganta exigindo aquele dinheiro que deveria ter vindo
de um emprego. Ou o ameaçar de lançar uma bomba em seu belo escritório,
com muitos computadores e poucos funcionários.
Tratemos agora de um outro problema, que será melhor solucionado se
houver um governo mundial. Trata-se da superpopulação. Há
um certo consenso científico de que não é conveniente,
para o planeta, a manutenção da atual taxa de crescimento, considerando
que a área da Terra é finita e o clima precisa das atuais florestas,
fornecedoras de oxigênio. Mesmo se Marte for um dia habitável
consideração aqui risível, por não cuidarmos de
ficção científica o custo dessa adaptação
será tão alto que jamais aquele planeta será utilizado
como um "galpão" para os excessos populacionais de uma Terra
desnecessariamente super-povoada.
Como, porém, induzir todos os países, se totalmente soberanos,
a adotar medidas de contenção à natalidade? A China conseguiu
isso, por ser uma ditadura e sentir na carne as conseqüências imediatas
de abrigar bem mais de um bilhão e trezentos milhões de habitantes.
Outros países, soberanos, influenciados ou praticamente dominados por
dogmas religiosos, dificilmente penalizarão, de uma forma ou outra, os
casais que tenham mais de dois filhos. Se a AIDS, ou o medo dela, restringem
agora, via preservativos, a fertilização das mulheres, chegará
um momento em que o progresso da medicina vencerá a doença, impulsionando
novamente o nível de natalidade. Um excesso de nascimento, conjugado
com a crescente substituição do homem pelas máquinas é
receita infalível para a miséria, sofrimento, criminalidade, terrorismo
e todos os males que atormentam ricos e pobres.
Por mais que o governo Bush insista no interesse apenas de seu país
, que não ficou plenamente provada a relação de causa
e efeito entre a emissão de gases por indústrias e veículos
e o aquecimento global de efeitos devastadores nas próximas décadas
, há um quase consenso dos especialistas, reconhecendo esse liame, o
que se percebe com o aumento do "buraco" na camada de ozônio,
redução das calotas polares e desaparecimento das neves "eternas"
das altas montanhas. Isso sem falar nas espantosas mudanças climáticas
que redundam em verões excessivamente quentes, invernos anormalmente
frios, secas ou enchentes por toda parte.
Como obrigar todos os países se mantida sua inviolável soberania
a cumprir um determinado programa de controle ambiental? Os EUA, que emitem
36% do dióxido de carbono, com uma população que representa
apenas 4% da população do planeta, recusou-se a assinar o Protocolo
de Kyoto, atraindo, com razão, a ira dos ambientalistas. Segundo artigo
de Pedro Jacobi ("Política ambiental norte-americana"), professor
da USP, no excelente livro que reúne ensaios de autores diversos "Estados
Unidos: A Supremacia Contestada", Editora Cortez , "o argumento do
governo americano é que reduzir a emissão, como exige o Protocolo,
levaria a uma queda do PIB de 3% a 4,3% em 2010, sendo preferível que
se "dê tempo à tecnologia e às instituições
para desenvolver estratégias de combate aos gases estufa que possam,
ao mesmo tempo, proteger a economia, e evitar o desemprego e recessão"(pág.
142).
Como forçar, hoje, os EUA violando sua soberania a aceitar o "prejuízo"
de uma grande queda do PIB, com desemprego e recessão? Declarar uma guerra
contra eles? Mesmo se o governo federal americano estivesse em mãos do
Partido Democrático, dificilmente veríamos o sacrifício
do interesse próprio em favor do mundial. Os desempregados americanos
decorrentes do cumprimento do Protocolo de Kyoto não perdoariam um
presidente "que não cuidou, primeiramente, dos seus; o resto é
coisa vaga, distante, utópica, ou algo semelhante..." E o mesmo
diriam os desempregados de outros países contra seus próprios
governos, em situação semelhante. Voltamos, aqui, às anteriores
considerações do eterno conflito entre o bem geral e o particular.
Se, com um governo mundial, o geral e o particular se fundirem numa só
entidade, os interesses ficam mais conciliáveis, tendo em vista a maior
liberdade de um órgão central para estabelecer compensações
globais em favor de quem mais se sacrificou com restrições ambientais.
Uma grande fonte poluidora é a queima dos derivados do petróleo. A humanidade quer respirar melhor, confiar no clima e tomar sol na praia, com menor risco de câncer da pele mas também quer andar de carro.
Para conciliar tais confortos seria preciso substituir o petróleo como
fonte energética, a menos que um químico genial descubra como
queimar seus derivados sem a emissão de gases poluentes o que parece
ser altamente improvável, pois do contrário já teríamos
alguma notícia a respeito. Ocorre que se conseguirmos uma energia "limpa",
desprezando o petróleo, decretaríamos a miséria do mundo
árabe e dos demais países que têm, no petróleo, sua
fonte principal de riqueza. Quem cuidaria, nesse caso, das empobrecidas populações
árabes? A utilização do petróleo apenas na fabricação
de plásticos não gera riqueza suficiente para sustentar carentes
populações cercadas de pedra e areia. E nem menciono, aqui, à
reação virulenta das multinacionais do petróleo que tudo
fariam para minar qualquer governo individual que encarasse de frente, com determinação,
o fato de ser o combustível fóssil, a longo prazo, um inimigo
da humanidade, devendo ser substituído. Já um governo mundial
por isso mesmo mais forte que o individual teria maior poder e margem de
manobra para ir modificando, aos poucos e por igual, entre os países,
a substituição da principal fonte de energia que, também
finita, um dia, se esgotará. E por falar em plástico, quem disse
que ele também, quando não biodegradável, é algo
com que não nos devamos preocupar?
Problemas globais resolvem-se mais facilmente com soluções globais.
Com soluções regionais, parciais, choros e rangeres de dentes,
a solução é difícil, demorada, enredada, com avanços
e retrocessos. Dependem de uma "compreensão", sempre problemática,
de políticos que dependem de votos para subsistir, porque, afinal, a
democracia liberal veio para ficar é o que nos diz Francis Fukuyama
com seu discutível "Fim da História". Uma única
e universal democracia liberal ou alguma "prima" sua, de desenho
ainda desconhecido seria menos conflituosa que uma reunião confusa
de democracias e remanescentes ditaduras, com contrastantes orgulhos e interesses.
Voltaremos ao tema.
São outros itens que aconselham mais eficaz e unificada fiscalização
planetária. Sem a necessidade atual de vencer complexas e lentas burocracias
"soberanas" para saber quem comprovadamente suspeito da chefia de
narcotráfico, ou de vultosos desvios financeiros possui, ou não,
contas no Exterior, qual a origem misteriosa desse dinheiro, etc. Países
têm diferentes legislações, diferentes regramentos administrativos
escritos obviamente em diferentes idiomas e diferentes sistemas judiciários.
Tais variáveis embaraçam e retardam a missão dos agentes
da lei, legitimamente interessados não só em punir criminalmente
o infrator, mas principalmente em trazer de volta o dinheiro produto do crime.
O infrator tem, no caso, hoje, a grande vantagem do sigilo e da velocidade,
pois transfere, em segundos, enormes somas de um país para outro. É
uma luta de gato contra rato, em que os roedores levam imensa vantagem porque
dispõem de sorridentes tocas paradisíacas fiscais em todo canto
o que é comercialmente compreensível porque se uma "toca"
bancária recusa o atraente queijo outras, protegidas por outras soberanias,
o receberão. A unificação no controle das transferências
eletrônicas criaria enorme dificuldade na movimentação do
dinheiro ilícito. Considerando o volume imenso dessas quantias seria
uma temeridade "ladrão que rouba ladrão tem cem anos de
perdão" carregar, de um lado para outro, malas cheias de dinheiro
pelas ruas e corredores de aeroportos, estes igualmente adaptados para ua mais
unificada fiscalização.
As poupanças honestas, investidas em ações, sentem-se inseguras,
hoje, com a sucessão de escândalos e desfalques nas grandes multinacionais.
E os abalos em uma Bolsa se refletem nas demais, em razão da globalização.
A Parmalat é um exemplo. Engenhosos CEOs, acolitados por "mágicos"
da contabilidade, podem, durante anos, disfarçar desvios de recursos,
favorecidos com a dispersão de suas filiais pelo mundo. Estas remetem
às sedes balanços corretos no papel mas sem apoio na realidade.
Os acionistas não têm como verificar o que está por trás
dos documentos, e os dirigentes da empresa que montaram o desvio , obviamente
não vão facilitar qualquer investigação, oferecendo
o pescoço à guilhotina. Se, hoje, uma fiscalização
governamental quiser conhecer a situação financeira real de determinada
corporação, em benefício dos inocentes acionistas aqueles
que o são, realmente , encontrará dificuldade porque terá
que pedir, a cada país soberano onde se encontram as filiais , licença
para fiscalizar, gerando complexas e lentas disputas judiciais. Com um governo
unificado a fiscalização seria extremamente agilizada.
Mesmo em atividades estritamente privadas, a globalização aconselha
crescente unificação de rotinas de auditoria das grandes empresas.
O presidente mundial da KPMG International uma respeitada empresa de auditoria
, Michael Rake, em entrevista à revista "CartaCapital", edição
de 3 de março de 2004, pág. 54, diz que "Na Europa, ficou
estabelecido que, a partir de 2005, todas as companhias devem usar os critérios
internacionais. O mais eficiente, em nossa opinião, seria convergir todos
esses protocolos em apenas um, senão não é possível
estabelecer termos de comparação, o que pode dar margem a fraudes.
Precisamos de algo mais consistente, claro, simples e padronizado em que o mercado
de capitais possa confiar."
Quanto ao crime organizado, principalmente aquele relacionado com o tráfico
de entorpecentes, seu combate tem sido estudado com extensão e competência
por juristas de todo o mundo, sendo dispensável repetir o que dizem os
especialistas da matéria. Basta lembrar que a unificação
da repressão seria facilitada com um governo mundial.
Outro ponto que torna quase inoperante, hoje, a boa intenção genérica de evitar discórdia comercial entre as nações conflitos que, poucas décadas, atrás degeneravam em guerras bem reais está no protecionismo comercial por parte de alguns países contra outros. Em linguagem mais explícita, dos ricos contra os pobres, porque estes dificilmente podem se dar ao luxo de retaliar sem novos prejuízos. Se mantido o atual sistema com necessidade dos mais fracos correrem, caso por caso, para a proteção da asa da Organização Mundial do Comércio , a lentidão dessa sistemática continuará gerando prejuízo, com segmentos da produção e do comércio em compasso de espera até que se solucione cada incidente. Solucionado, o perdedor não de conforma e revida com outra forma, direta ou indireta, de protecionismo, gerando nova reclamação, defesa e julgamento, e assim por diante. Uma "justiça comercial" morosa merece tanta censura quanto a justiça estatal de feição estritamente jurídica.
Sem querer proteger tal ou qual país, em termos de guerra comercial, cabe aqui recordar o que já foi dito a respeito do combate à poluição ambiental, efeito estufa, etc. Se o governo francês, por exemplo, subsidia seus agricultores, com isso prejudicando exportações de produtos agrícolas brasileiros, será extremamente difícil para o cidadão francês principalmente se for agricultor aceitar o seu empobrecimento, imposto pelo próprio governo francês, preocupado mais a seu ver indevidamente , com a sorte de outro povo do que com o bem estar de seus governados. E todo governo quer receber aprovação, primordialmente nunca esquecer isso de seus governados, que lhe conferiram um "mandato". Homens públicos não se consideram "mandatários de uma genérica humanidade. Dirá o homem médio francês que a agricultura, uma atividade essencialmente nobre, não parasitária, "sempre deu prejuízo" o que não está muito longe da verdade e que se o Brasil quiser proteger seus agricultores que faça o mesmo, subsidiando-os. Dirá, jocosamente, que há três formas seguras de se perder dinheiro: com mulheres, jogo e agricultura. A primeira, a forma a mais agradável de se empobrecer e a última a mais segura. E ingrata atividade, porque quase todos sabem como é dura a labuta diária do agricultor quando não de paletó e gravata. E ainda dirá o trabalhador francês que é justo proteger seu agricultor pois ele não pode aceitar, sem perda da dignidade, a remuneração injusta que recebe o trabalhador brasileiro. Se a remuneração do trabalho é muito baixa, é evidente que o produto fica mais barato. E assemelhados raciocínios certamente brotarão da cabeça dos norte-americanos, quando protegem seus trabalhadores em detrimento da importação de alguns produtos brasileiros. Uma chefia mundial ou "coordenação", palavra mais simpática, porque quem gosta de "chief" é comanche resolverá mais facilmente tais conflitos, porque aí se trataria de uma questão "interna", sem as habituais dificuldades de lidar com várias soberanias, impregnadas de valentia, patriotismo e discursos para a platéia.
O presente item é dos mais polêmicos, mas não será
sua dificuldade que aconselhará seja posto de lado. Pelo contrário.
Até o advento das armas nucleares, e outras não convencionais,
químicas e biológicas, era consenso, no Direito Internacional
Público, a proibição de um ataque preventivo sem a total
certeza de que o país "vilão" estava efetivamente atacando
um outro país. Isso porque a qualquer tempo o suposto agressor poderia
se controlar e voltar atrás, e o Direito, de modo geral internacional
ou não , não pune pensamentos e intenções. Ninguém
sustentou seriamente, se não estamos mal informados, a necessidade de
um ataque preventivo fulminante, em 1939, contra a Alemanha antes que ela
invadisse países vizinhos , mesmo pressagiando sinistras intenções
na montagem, por Hitler, da gigantesca máquina de guerra. Sem um ataque
concreto, ou pelo menos iminente, acompanhado de declaração de
guerra, não havia como, legitimamente, contra-atacar. O simples perigo
não autorizava isso.
Essa maneira cautelosa de pensar tinha uma justificativa fática, porque
se tanques e infantaria ultrapassam fronteiras de um país vizinho, isso
ocorre com relativa lentidão, possibilitando a reação do
agredido e movimentações diplomáticas que redundariam em
possível punição do país agressor por parte dos
aliados do agredido, ou por um órgão internacional. Por outras
palavras, se a agressão era praticada com o relativamente inocente chumbo,
lento e pesado, a mortandade não seria tão devastadora, sendo
estancável no seu início.
Todavia, com as inovações guerreiras criadas pela tecnologia essa vilã involuntária, porque dependente do escasso juízo humano já é admissível, racional e até mesmo um dever governamental o ataque preventivo, quando houver certeza de que o país ameaçador dispõe de intenções e armas tais que, acionadas contra o agredido e toda a vizinhança, porque a radiação não respeita fronteiras , seria tardia qualquer providência defensiva. Artefatos nucleares transportados por mísseis ou aviões, após detonados, pouco se há de fazer a respeito. Resta apenas revidar com iguais armas quando há , contar os mortos, aliviar as dores dos queimados pela radiação, e esperar a morte por câncer algum tempo depois. Com tais conseqüências, não há mais porque manter antigos e restritivos padrões jurídicos relacionados com a guerra preventiva. Uma guerra verdadeiramente preventiva honestamente preventiva, veja-se bem... é hoje eticamente sustentável e até mesmo recomendável. Ocorre que é sempre difícil saber e provar, com segurança , se tal ou qual país, com governante belicoso, detém, ou não, armas de destruição em massa e qual sua funcionalidade e quantidade. E caso as tenha, se pretende fazer uso imediato delas, algo bastante subjetivo. Tais armas não são tão facilmente visíveis quanto as enormes fábricas de aviões, canhões, tanques de guerra, metralhadoras e demais armas convencionais. E sendo difíceis de localizar porque se há espionagem, vulgo "inteligência", há também a contra-inteligência essa incerteza alegada ou real é um campo fértil para a eventual má-fé de chefes de governo militarmente poderosos. Após a invasão preventiva falsamente preventiva contra países fracos pode o senhor da guerra sempre inventar uma desculpa fácil: "Desculpe, enganei-me; tudo indicava haver armas de destruição em massa, utilizáveis por aquele governante louco. Se não as há o que só constatamos agora , a culpa da invasão está na conduta do próprio "louco" que dificultava inspeções e com isso nos induzia a crer que era muito mais perigoso do que realmente era". Em suma, com a atual situação de multiplicidade de soberanias, fica difícil legitimar qualquer ataque preventivo, mesmo quando era ele aconselhável. Se, por excesso de cautela não se faz o ataque preventivo e ocorre o disparo atômico, químico ou biológico devastador, o "prudente" será depois chamado de covarde e de visão curta, por não perceber "o que qualquer um via". Se ocorre o ataque preventivo e o perigo revela-se inexistente, o atacante será apodado de agressor gratuito, movido por segundas intenções.
Em um governo mundial esse problema desaparece. Sendo todo o planeta "área interna", é obrigação da polícia investigar tudo o que pareça suspeito, sem medo de ser considerado agressivo e precipitado. Exemplificando, nada haveria de ilegal ou politicamente censurável se no Brasil, por exemplo, o governo federal tendo notícia de que um determinado Estado da Federação se armava, perigosa e secretamente, com a intenção de atacar estado vizinho, ou de se separar do resto do país , tomasse imediatas providências preventivas, mandando a polícia federal, ou mesmo o exército, "invadir" sem prévia autorização, claro, do governo local a área onde estariam fabricando as tais armas. Seria até mesmo elogiável a prontidão preventiva da autoridade federal em sufocar, no ovo, o movimento separatista, ou agressor. A presença da dúvida honesta, maior ou menor, não inibiria o governo federal de fazer o que lhe parecia mais sensato.
Estas considerações não são feitas para justificar a conduta do governo George W. Bush em relação à invasão do Iraque. A opinião pública mundial com a qual concordamos plenamente está preponderantemente convicta de que o presidente Bush, influenciado por belicosos "falcões", invadiu o Iraque por motivos outros que não os alegados, mentira que lhe será um fardo político não de consciência, porque ele supõe que os fins, "derrubar um homem mau", justificam os meios para toda a vida. Não vamos, aqui, descrever as prováveis motivações eram várias da invasão, porque este não é o objetivo do ensaio. Esse ataque "preventivo", porém, teve o involuntário mérito "acadêmico" de provocar reflexões que, não fosse uma certa arrogância "valentona" daquele governo, permaneceriam adormecidas em algum canto da mente dos estudiosos das relações internacionais.
O ataque ao Iraque provocou ainda uma reavaliação do papel da Organização das Nações Unidas na sua missão de manutenção da paz. Mostrou sua relativa fragilidade quase a mesma que vitimou e levou à extinção da antecessora, a Sociedade das Nações , a ponto de se poder dizer que a ONU, hoje, é uma abelha bondosa, mas sem ferrão. Bondosa porque ajuda materialmente, na medida do possível, populações sofredoras, e promove, com, conselhos, reuniões de cúpula e campanhas, os direitos humanos. Vez por outra, chega a usar o ferrão, desde que não haja qualquer veto dos países "importantes", os que contam, e que , por vezes, mereceriam uma ferroada educativa, o que torna relativa a utilidade desse órgão internacional. Considerando o poder de veto basta um dos membros permanentes do Conselho de Segurança não se pode dizer que é uma organização plenamente democrática, com a eficácia de comando exigida pelo mundo moderno. Este se afogará, progressivamente, como já dito acima, na poluição, no desemprego, nas dívidas governamentais monstruosas, nas crescentes despesas com armas, nos conflitos internos de vários países e na relativa impunidade do crime organizado. Já não basta, considerando os fantasmas que se erguem no horizonte, um órgão interessado apenas na "manutenção da paz" e recomendações em favor dos direitos humanos. É preciso algo mais abrangente e eficaz.
Mesmo quando a ONU se transfigura em um tribunal, como ocorre com a Corte Internacional
de Justiça, suas condenações são apenas morais,
meras opiniões, o réu obedece se quiser, o que tira à Corte
a natureza de um verdadeiro tribunal, que tem na execução efetiva
de suas decisões sua principal razão de ser. Com está,
não é bem uma corte, mas um respeitável órgão
acadêmico de consultas e recomendações.
Com a atual configuração, a ONU não resiste à crítica
de falta de coerência. Ela, por exemplo, proíbe aos países
mais fracos a fabricação de bombas nucleares. No entanto, nada
a opor a que os cinco membros permanentes, EUA, China, França, Inglaterra
e Rússia detenham tais armas, ou quaisquer outras, por mais mortíferas
que sejam ninguém se atreve a investigar. O que leva o resto do mundo,
os "inferiores", a indagar por que alguns membros podem, e outros
não, pertencer ao seleto e temível clube atômico. E a ONU
fecha os olhos por impotência institucional, não por má-fé
ao que ocorre em determinados países. Israel, por exemplo é
o que dizem os especialistas , possui sua bomba nuclear, o que é totalmente
vedado aos países árabes, sob risco de invasão. Por outro
lado, não convém, absolutamente, que haja uma proliferação
nuclear, porque qualquer chefe de estado poderia, num momento de cólera,
iniciar um conflito nuclear, mergulhando o planeta em um pesadelo irreversível.
Essa incoerência institucional da ONU repita-se, não de sua direção
desapareceria se houvesse um governo mundial. Exemplificando, com auxílio
da analogia, ninguém censura o governo federal dos EUA pelo fato de proibir
que seus 50 estados desenvolvam autônomos programas nucleares, ou de fabricação
de armas químicas.
Mencionei, acima, determinados países no caso, Israel , mas sem preconceito,
realmente. Não se pode julgar a Alemanha por haver parido palavra forte,
mas fica mantida um Hitler (mesmo porque era austríaco); nem a Rússia
por Ivan, o Terrível, ou Stalin, que matou milhões que não
aceitavam seus planos qüinqüenais; nem Israel, por Ariel Sharon, com
seu muro absurdo e caro! que provará ser um imenso desperdício
porque todos os muros estão destinados a cair.
Houvesse um verdadeiro governo mundial a questão palestina estaria resolvida
ha décadas: Israel não precisaria fazer excursões punitivas
nem desenvolver armas atômicas, temendo os vizinhos; os palestinos não
estariam sofrendo o que sofrem agora, oprimidos, estraçalhando, em revide,
seus próprios corpos juntamente com os corpos de civis israelenses inocentes
que podem, até, discordar politicamente de Sharon. E não haveria
um difuso terrorismo árabe, que atormenta não só Israel
mas também os EUA e seus aliados mais próximos. Houvesse um governo
mundial hoje, o dinheiro em montante várias vezes menor que o desperdiçado
com guerras resolveria, provavelmente é mero exemplificação
o que segue , a questão palestina: os colonos judeus, assentados na
Cisjordânia e na Faixa de Gaza, receberiam, por exemplo, uma confortável
indenização, abandonariam seus lotes para os palestinos e iniciariam
suas vidas são poliglotas, inteligentes, com grande capacidade de adaptação
em qualquer parte do mundo. Abandonar os lotes, sem indenização,
eles jamais aceitarão. Talvez o governo Sharon não fale em indenização
argumentariam seus inimigos justamente para estimular os colonos a recusar
os alegados planos governamentais de retirada dos assentamentos, uma sutil tática
de expansão territorial.
Com apenas fração do dinheiro gasto pelos EUA nas atuais guerras
no fundo ou em grande parte decorrentes do conflito palestino-israelense
os cerca de duzentos mil colonos judeus estariam, provavelmente dispostos a
abandonar seus assentamentos. Se, exemplificativamente, cada colono recebesse
US$100,000.00 por seu lote quantia até exagerada o total da indenização
seria de vinte bilhões de dólares, quantia várias vezes
inferior ao que o governo norte-americano gastou e gastará com as guerras
do Afeganistão, Iraque e combate mundial ao terrorismo.
Certamente o leitor nos perdoará por sugerir tal exemplificação
"simplista" para solução do conflito árabe-israelense.
A indústria armamentista conseqüência inevitável
decorrente da multiplicidade de soberanias acrescentaria outros adjetivos
negativos a esse hipotético exemplo de solução de conflitos
sem necessidade de guerras, mas não se pode negar que os "estímulos"
econômicos fazem milagre em soluções de contendas.
Quantos países soberanos existem hoje, no planeta? Cerca de duzentos,
o que implica, em tese, a manutenção de duzentas forças
armadas exército, marinha e aeronáutica , porque cada país
tem a obrigação de cuidar de sua defesa externa. É impossível
não reconhecer o imenso fardo financeiro sem mencionarmos o perigo
potencial da fagulha entre barris de pólvora vizinhos que isso representa
para a humanidade. Um fardo sempre crescente porque cada vez que um país
aumenta sua força militar o vizinho considera prudente fazer o mesmo.
Como escapar desse círculo vicioso? Com a unificação. A
Europa, unindo-se, dispensou a corrida armamentista interna que alimentou inúmeras
guerras no passado. Inglaterra, França e Alemanha, por exemplo, não
precisam mais aplicar tantos recursos financeiros com a própria segurança.
Parece até impossível imaginar uma Europa sem guerras. Provavelmente
não ouviremos mais falar em conflitos bélicos entre os países
da União Européia. A OTAN, ou órgão assemelhado,
defenderá todos os países europeus e, principalmente, evitará
que os países membros se guerreiem entre si, um progresso considerável,
em termos de favorecimento da humanidade. O que causou tal "milagre"?
A compreensão da superioridade da unificação sobre a multiplicidade
de melindrosas e esquentadas soberanias.
Os EUA mantêm um único exército, única marinha e
única aeronáutica. Se seu gasto com as forças armadas é
fabuloso por motivos relacionados, inicialmente, com a Guerra Fria, a provar
que o medo recíproco é altamente perigoso , muito maior seria
o gasto se cada estado da união mantivesse suas próprias forças
armadas. Sendo os EUA uma federação é impensável
a existência de guerras entre seus estados, a comprovar a eficácia
da unificação, seja qual for a seu rótulo em termos de
ciência política. Com a unificação mundial, cada
país transformado em uma espécie de "província"
teria que armar-se apenas para a manutenção da ordem interna.
Sem um governo mundial a industria armamentista continuará cumprindo
seu papel inevitável de incentivador de desconfiança, morte e
destruição. Cumpre lembrar, inicialmente, que uma indústria
privada de armamentos só não irá à falência
se houver constantes guerras ou provocações. Os estoques não
podem ficar encalhados. Atritos que podem ser habilmente estimulados por intrigas
das indústrias de armas. São aberrantes as cenas, no noticiário
televisivo, de desnutridos adolescentes africanos portando metralhadoras dispendiosas,
quando se sabe que as populações quase não têm o
que comer. Dinheiro mal gasto. Centenas de milhares de pessoas morrem em massacres
étnicos internos nos países do terceiro mundo. São nações
pobres mas de subsolo rico em diamantes, ouro ou petróleo, riqueza que
melhor seria aproveitada em projetos pacíficos e não na compra
de armas. E a ONU não pode evitar tais massacres internos porque sua
missão básica é promover a paz entre países, não
entre os habitantes de um mesmo país.
Somente um governo mundial teria condições de cercear o imenso
desperdício de recursos e vidas, desperdício incentivado pela
indústria de armamentos, cuja única utilidade está em proporcionar
certo número de empregos mas a que preço! nos países
industrializados. É uma atividade que, pela sua peculiar natureza, não
poderia jamais estar sob domínio privado. Para dar lucro aos sócios
ou acionistas essência do regime capitalista , as diretorias necessitam
incentivar rivalidades. Curioso é que prega-se, hoje, o desarmamento
individual em todo o mundo, mas cruzam-se os braços quanto ao armamento
pesado, que mata muito mais.
O tolerante leitor que nos acompanhou até aqui talvez sorrindo e meneando
a cabeça certamente deve estar refletindo: todos os males do mundo
que esse cidadão descreveu até agora são verdadeiros, ou
parcialmente verdadeiros, e ao alcance de qualquer inteligência, mas há
algo de ingênuo na proposta de um governo mundial. Se a própria
ONU, que subtrai fração mínima da soberania dos países
membros, tem dificuldade para cumprir plenamente seu papel de manutenção
da paz e promoção dos direitos humanos, imagine-se a dificuldade
que enfrentaria, por parte dos atuais governos, qualquer proposta de criação
de um "governo mundial" que cancelaria nada menos que a soberania
por inteiro, reduzindo a autonomia de cada país ao equivalente de uma
unidade de estado federativo. A própria verbalização do
conceito "governo mundial" provoca risos ou calafrios na humanidade,
temerosa de uma ditadura sem escapatória, que faz evocar velhas imagens,
grosseiras, ou infantis, de "domínio do mundo" pela força:
Alexandre, o Grande; "Átila, o Flagelo de Deus"; o Império
Romano; Napoleão Bonaparte; o III Reich de Hitler; o Império Japonês;
pretensões de domínio mundial pelo comunismo e, finalmente, o
"Imperialismo Americano", que muitos consideram uma espécie
de "governo mundial de fato", em conseqüência de sua riqueza,
organização e poderio militar. "Já vivemos um imperialismo
mundial, conduzido pelos EUA! E este senhor quer agravar ainda mais a dominação,
dando a ela ares de legalidade?!" bradarão alguns, citando as
inúmeras intervenções daquele país no Exterior,
toda vez que seus interesses foram seriamente contrariados.
Automáticas associações de idéias, porém,
só pelo fato de serem automáticas devem ser encaradas com reserva.
Para começar, um governo mundial legítimo, hoje, só poderia
ser pensado em forma democrática, com adesão voluntária
dos países como acontece com a União Européia , ao contrário
dos exemplos históricos citados linhas atrás, calcados na gratuita
megalomania e poder militar.
Difícil, aqui, sequer esboçar como seria esse governo mundial,
emergente do consenso. O título do presente ensaio não prometeu
tarefa tão ingente. Expressamente reconheceu apenas a inevitabilidade
e necessidade e de um governo mundial. Não se atreveu nem prometeu descrever
qual seria o seu perfil o passo seguinte , matéria que ensejará
inúmeras e difíceis e discussões dos futuros arquitetos
da nova humanidade. Presume-se que a experiência internacional da Organização
das Nações Unidas seria muito aproveitada na formatação
do novo modelo.
Terá de ser algo novo, embora parcialmente utilizando, por analogia,
a tradicional formação das federações, em que cada
estado, ou província, cuida dos interesses locais e da ordem interna,
cabendo ao governo central a defesa externa e as matérias que interessam
à federação por inteiro. Como, com um governo mundial,
não haveria mais necessidade de uma "defesa externa" não
vamos aqui cogitar da risível invasão da Terra por alienígenas
esse exército único seria comparativamente pouco numeroso, pois
se limitaria a intervir aqui ou ali, quando percebesse algum "excesso transbordante"
por parte de suas "províncias" os atuais estados soberanos.
De início, não será possível, creio, atribuir a
cada cidadão do mundo um voto, como ocorre com todas as democracias.
Essa sistemática que constitui um pilar das democracias ocidentais
não seria aceita pelos atuais países mais ricos e menos populosos
porque implicaria em imenso predomínio da China e da Índia na
formação desse único governo. EUA e União Européia
não admitiriam, com razão, que a mera fertilidade humana freqüentemente
irresponsável decidisse os rumos da humanidade. Passariam, os países
industrializados, a ser uma minoria, com todos as dificuldades das minorias,
não obstante sua maior contribuição cultural e tecnológica
para o avanço da humanidade.
Tudo indica que esse governo mundial seria apenas uma ONU aperfeiçoada,
com maiores poderes executivos, com o cancelamento ou mitigação
, do poder de veto dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança.
Uma outra provável objeção contra um governo mundial está
na dificuldade de reunir, como irmãos iguais, sob um mesmo teto, países
desenvolvidos e subdesenvolvidos. Qual a afinidade cultural perguntar-se-á
dos EUA com um Haiti; ou a União Européia com a Bolívia?
Essa disparidade não deve, porém, ser encarada como impossibilidade
de convivência sob um mesmo governo. Não há o menor problema,
por exemplo, no Brasil, com o fato de o Estado de São Paulo ser muito
mais rico e populoso que o Estado do Piauí, com isso exercendo mais influência
e liderança na condução política e econômica
do país. Para o Piauí, é até vantajoso que um dos
seus "sócios políticos", no caso São Paulo, seja
rico, porque com isso receberá, de alguma forma, parte dessa riqueza.
Um homem pobre terá maior possibilidade de ser auxiliado por um irmão
rico do que por outro tão pobre quanto ele. E não há perigo
sério de um Estado invadir o vizinho, na mesma federação.
Da mesma forma, Califórnia e Nova Iorque não lamentam a associação
com Montana ou outro estado menos rico dos Estados Unidos. Essa diversidade
de riquezas não enseja guerras locais. A união faz a força
e, como já salientado, os estados da federação ficam desonerados
das despesas com exércitos locais. Em casos de cataclismo natural, ou
outro desastre, contam com o auxílio de um governo federal, mais solícito
que a imprevisível e caprichosa caridade, que só desperta quando
os olhos dos abonados são magoados com a visão do sofrimento extremo.
Alguém dirá que a grande objeção, na formação
de um governo mundial, viria dos próprios EUA, pois essa "associação
com os pobres" obrigaria a poderosa nação a auxiliar, financeira,
técnica e culturalmente seus novos irmãos, pobres mas desconfiados,
e em grande número. Seria o mesmo, diria o crítico, que um homem
rico, atendendo a campainha, abrisse a porta de sua rica mansão para
se deparar, espantado, com uma fila de dezenas de parentes distantes, maltrapilhos,
com mala, cuia, gaiolas e toda a filharada, solicitando abrigo, escola e alimento.
Realmente, o primeiro mundo não veria com muito entusiasmo, inicialmente,
essa associação tão íntima com "os parentes
pobres". Mas, em compensação, ficaria dispensado dos imensos
gastos com defesa externa e combate ao terrorismo, essa guerra privatizada
de certo modo mais perigosa que a guerra oficial porque sem residência
fixa. Quanto custaria o "escudo" referido no projeto "guerra
nas estrelas", de Ronald Reagan? Salvo engano, o custo estimado seria de
algumas dezenas de bilhões de dólares. E com resultados pífios
porque, já ficou provado, com o 11 de setembro, que o perigo não
reside necessariamente nos foguetes.
Disparidades de riquezas não impossibilitam a integração.
A União Européia abriga países ricos e pobres, que aderem
a ela sem medo, sacrificando parte da sua autonomia.
As dificuldades da construção política de um governo mundial
são realmente imensas. Para alguns, a fraqueza da tese estaria no "timing"
porque, afinal, os atuais governos vão bem, obrigado. "Idéias
vagas sobre o futuro devem ser deixadas para nossos netos" dirão
, "quando o mundo estiver "no ponto certo do perigo", já
sufocado pela poluição e terrorismo. O mundo ainda não
está suficientemente pressionado para uma discussão dessa envergadura.
Basta, por enquanto, o que se faz na ONU e com as ONGS, com alguns retoques".
Não acho que tais críticos estejam com a melhor solução.
Pode ser a mais cômoda, mas não será a mais previdente.
Uma imensa rede cheia nós só se desenreda com uma visão
global do emaranhado e um paciente trabalho atento ao conjunto; não com
diversas mãos impacientes e independentes, cada uma com idéias
próprias sobre como trabalhar..
Quando terminava de redigir o parágrafo anterior e me preparava para
abordar o espinhoso tema da influência das religiões na criação
de conflitos armados, de extensas e duradouras conseqüências, tomei
conhecimento, pela televisão, do atentado terrorista de 11 de março
de 2004, em Madri, em que morreram perto de duzentas pessoas, com ferimentos
em mais de 1.400. Pessoas inocentes, atingidas ao acaso, sem nenhuma relação
com a motivação política que motivou as explosões
simultâneas.
Se o atentado originou-se do grupo separatista ETA o que não acredito,
porque seria um ato por demais estúpido, um tiro pela culatra, atraindo
mais hostilidade mundial contra a província basca que busca sua independência
o ato insano comprovaria as vantagens de um governo mundial. Os bascos querem
ser independentes, isto é, não pertencer à Espanha, ou
França, mas certamente não querem deixar de integrar a espécie
humana, a comunidade internacional. Não pretendem, presume-se, "inaugurar"
um planeta à parte. Esse desejo de independência não conflitaria
com um governo mundial de natureza democrática, que respeitaria as intrigantes
peculiaridades daquela região. E à Espanha não causaria
tão grande dano autorizar essa separação se esta fosse
mesmo vontade majoritária dos bascos e não capricho de um pequeno
grupo violento, com sede de poder porque a unificação mundial
provavelmente lhe permitiria compensar o que eventualmente lhe teria sido subtraído
com a independência da província. Caso o ETA seja apenas a manifestação
egoísta de um pequeno grupo de indivíduos desconheço
o histórico , com gosto pela violência, um governo mundial teria
muito mais força, recursos da inteligência e abrangência
para enfiar na cadeia simples criminosos disfarçados de líderes
separatistas.
Se, porém, o atentado terrorista foi obra da Al-Qaeda como é
mais provável e foi reivindicado por ela a matança absurda e
indiscriminada demonstra o que já ia escrever aqui antes das explosões:
que a religião é uma força poderosíssima, com inúmeras
facetas, algumas perigosas. É elevada e bela quase sempre , mas pode
tornar-se extremamente cruel quando distorcida pela interpretação
malévola de um dirigente inescrupuloso; às vezes um caso claro
de psiquiatria mas intocável porque representante de Deus. Quem se atreve
a colocar a camisa-de-força no louco poderoso que acabou de receber instruções
diretamente de Deus?
Quem assistiu, via Internet, a cena real do jornalista Daniel Pearl sendo degolado
e depois decapitado em frente à uma câmera, no Paquistão
ele pretendia entrevistar alguns chefes locais e foi enganado, caindo numa
armadilha preparada por fanáticos muçulmanos , pode se perguntar
se ainda vale a pena continuar vivendo neste mundo. O filme é um consolo
para os velhos, que temem a proximidade do fim de seus dias. Eles podem se perguntar:
"Por quê continuar vivendo em um mundo tão cruel e estúpido?"
E qual a "crime" do jornalista, para merecer tão dolorosa
a ponta da faca foi enfiada lentamente logo atrás do pomo de adão,
enquanto o jornalista gritava forma de execução? O fato de ser
filho de judeus, nada mais. E sua mulher, uma jornalista francesa, só
não foi também assassinada porque, estando grávida, não
poderia acompanhar o marido na longa viagem de jipe até o local da falsa
entrevista.
Pergunta-se: é razoável que os católicos da Irlanda do
Norte vivam trocando tiros e bombas com os protestantes, mormente considerando
que ambas as religiões acreditam em um único Cristo? E o que dizer
do componente religioso que alimenta os constantes conflitos na Caxemira? E
Bin Laden, que freqüentemente salienta o lado religioso da sua luta terrorista
contra o "satânico" mundo ocidental?
No entanto, se tais fanáticos se submetessem a um detector de mentiras
é provável que passassem no teste da sinceridade. Bin Laden acredita
tudo indica, porque, sendo rico, poderia levar uma vida tranqüila e confortável
estar cumprindo o seu dever. Quando mata centenas de "infiéis"
ocidentais recorda ao ouvinte que os israelenses, apoiados pelos americanos,
"fazem o mesmo", só que aos poucos, em longas prestações,
com repetidos ataques contra os oprimidos palestinos, que se revoltam porque
tinham mesmo que se revoltar. E um espectador neutro pode se perguntar: se os
judeus têm direito a uma pátria, um "lar", por que igual
direito deve ser negado aos palestinos?
Shirin Ebaldi, Nobel da Paz, em entrevista ao jornal "Estado", edição
de 13 de março, diz, com propriedade, que "o que encoraja o terrorismo
é a injustiça". Remova-se a injustiça e o terrorismo
perderá quase toda a sua força. Passará a ser simples atividade
de crime organizado, usando chantagem para obter dinheiro mas nunca despedaçando
os próprios corpos porque trata-se, afinal, de "business",
não vamos exagerar. É de se presumir que um governo mundial
mais livre de influência dos interesses armamentistas consiga terminar
o velho conflito do Oriente Médio.
Todas as religiões, provavelmente porque algumas são pouco conhecidas,
não mencionadas na mídia estão sujeitas a excessos, conforme
o caráter de seu dirigente máximo, dificilmente substituível
porque blindado com dogmas, herdados ou criados por ele mesmo. E deformações
religiosas produzem deformações culturais.
O que dizer da amputação de uma parte da área sexual feminina
para que a jovem não tenha jamais o prazer "pecaminoso" do
orgasmo? E da sentença de morte, por apedrejamento, daquela africana
que, mesma separada do marido há um bom tempo, ficou grávida de
um homem que não era seu marido? Só escapou da morte porque houve
intensa movimentação internacional.
Um governo mundial deveria, na busca da máxima racionalidade, reprimir
as religiões? Não, mesmo porque seria um esforço inútil
que só estimularia um aumento da religiosidade, esse componente inegável
do espírito humano. Einstein uma mente científica por excelência
, acreditava em um Deus, embora achasse que essa suprema inteligência
não interferia nos negócios humanos.
Há, portanto, que de se respeitar o lado positivo, benévolo, das
religiões. Ruy Barbosa dizia que o Código Penal cuida dos crimes
públicos e a Religião, dos crimes privados a área secreta
da consciência de cada um. Quantas ações criminosas deixaram
de ser praticadas porque o cidadão foi seguro, não pelo medo da
polícia, mas pelo medo de Deus? A Religião ainda integra, com
outros nomes, uma espécie de departamento de prevenção
da criminalidade. Além disso, estimula a caridade. Tais qualidades já
bastam para desaconselhar qualquer idéia de sua restrição,
quando voltada para o bem.
Todavia, quando as religiões transbordam da sua área própria
e invadem a política, estimulando ódios ou anulando esforços
racionais do governo, não há porque este não interferir
procurando "podar", com campanhas maciças de convencimento,
os excessos da irracionalidade. Isso porque a ignorância freqüentemente
é mãe da maldade e da desorganização. E um governo
mundial, enfatizando a educação em larga escala principalmente
estimulando o estudo da ciência removerá, paulatinamente, esses
focos de violência, inspirados na ignorância.
Fiquemos por aqui. "Utopias...". Dirão alguns: "O perigo
do dilúvio ainda está longe. E o autor esqueceu de abordar o potencial
de tirania incubado em um governo mundial. Para onde correr, caso ele se torne
tirânico? Na Guerra Fria, a existência de dois pólos de poder
propiciava um equilíbrio que impedia os atuais excessos do governo Bush".
Respeito a objeção, mas observo que a segurança tendo
em vista o perigoso avanço tecnológico bélico atual ,
é um valor mais alto que a rivalidade política entre dois ou mais
pólos de poder, rivalidade que sempre desborda para um armamentismo que
poderá ser fatal para a espécie humana. Imagine-se o que seria
um conflito nuclear envolvendo EUA, Rússia e China.
O ideal socialista é eticamente superior ao ideal capitalista, mas este triunfou no mundo porque é mais realista, atende mais de perto a natureza humana, essencialmente egoísta e competitiva embora, felizmente, com resíduos de solidariedade humana. O homem, genericamente falando, não está interessado, primordialmente, no bem geral, no Estado. Quer o lucro dele mas permite que o fisco tire uma fatia para os pobres e por isso torna-se empreendedor, gerando riquezas. Quer que o produto de seu esforço passe, após sua morte, para seus filhos, não para o Estado. O socialismo, diferentemente, tem sido uma espécie de toga nobre, bonita, bem intencionada mas paralisante; inadequada para cobrir um corpo ainda tão feio e deseducado. Com um governo mundial o ideal socialista não desaparecerá, ficará incubado no próprio Estado, porque todos os governos do mundo têm o seu "lado" socialista, sua ala mais à esquerda, de solidariedade com os mais fracos. É comum o revezamento do poder, em todo governo, como ocorre nos EUA, em que ora governa o partido Democrata, ora o Republicano, sem necessidade de revoluções. Com um governo mundial não será diferente: interessará aos socialistas e também não incomodará demais os mais ferrenhos capitalistas porque estes sabem que é conveniente estender, vez por outra, a mão aos mais necessitados. A velha rivalidade entre capitalismo e socialismo será resolvida por eleições periódicas do "país único" e não por arreganhos, guerras de espionagem, ameaças, blefes e estoques de armas nucleares que podem, por descuido, explodir, torrando os contendores.
Francisco César Pinheiro Rodríguez
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