Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
A aferição da compatibilidade da produção normativa com o texto constitucional, nos sistemas que atribuem esse papel ao Judiciário, indica uma indiscutível influência no delineamento do padrão de conduta a ser seguido pela coletividade, o que levou Kelsen a visualizar sua atuação como verdadeiro "legislador negativo". De igual relevância é a posição dos tribunais em face da omissão legislativa na integração de eficácia das normas constitucionais.
A própria produção normativa, numa fase pós-positivista, sofreu um profundo realinhamento com o reconhecimento do caráter normativo dos princípios jurídicos, redundando no enfraquecimento da senhoria normativa do Poder Legislativo e na correlata pulverização dessa função entre os demais, cabendo ao Judiciário a atividade valorativa final conducente à densificação dessa espécie normativa.
Cabendo aos órgãos jurisdicionais velar pela preeminência da norma de direito, sua intervenção final, observada a sistemática legal, será definitiva (final enforcing power). Essa constatação, embora não suscite maiores dúvidas quando direcionada ao caso concreto sub judice, exige sejam identificados os efeitos que as decisões dos tribunais superiores irradiarão sobre os inferiores, condicionando e direcionando a sua atuação. Admitido o efeito vinculante dos precedentes, característica inerente aos sistemas de common law, será inevitável o reconhecimento de que os tribunais dispõem de um certo poder normativo, digamos indireto, pois, apesar de os referidos precedentes não serem direcionados à vida de relação, terminarão por regulá-la quando apreciada em juízo. Todos os sistemas constitucionais contemplam a existência de normas oriundas do Legislativo, do costume e da jurisprudência, repousando o diferencial no elemento predominante e no modo como se articula com os demais.
O Direito Judicial reflete a atividade de definição do Direito (juris dictio) pelos tribunais, podendo assumir perspectivas concretas (v.g.: na solução de litígios específicos) ou abstratas (v.g.: no controle de constitucionalidade das leis realizado pelos Tribunais Constitucionais). No primeiro caso, assumindo uma postura retrospectiva, voltada ao passado; no segundo, com uma postura prospectiva, direcionada ao futuro, à regulação de relações jurídicas vindouras. Além disso, quando em cotejo com a produção normativa de cunho legislado, pode mostrar-se corretor da lei, concorrente da lei, substitutivo da lei e supressivo da lei.
Não é demais lembrar que esse profundo redimensionamento metodológico da atividade do Judiciário, da sua inter-relação com os demais poderes e da sua projeção na coletividade não assumiu um colorido uniforme em todos os Estados, sendo plenamente factível a coexistência de esferas de inegável expansão com outras de tradicional retração.
Parece evidente não ser este o locus adequado a uma abordagem exauriente dos múltiplos aspectos mencionados, mas a sua mera indicação mostra-se suficiente ao propósito almejado: realçar a importância do Direito Judicial (Richterrecht) como normativa geral, que transcende o caso concreto.
O designativo utilizado, como é perceptível, é de todo infeliz, pois o adjetivo qualificador do substantivo direciona-se à origem do Direito, não à matéria por ele versada (v.g.: Direito Constitucional, Direito Administrativo etc.), o que aconselharia falar-se, por identidade de razões, em Direito Legislativo, terminando por inviabilizar toda e qualquer tentativa de sistematização. No entanto, tem o mérito de realçar a preeminência dos órgãos jurisdicionais na argumentação desenvolvida, indicando, de imediato, os objetivos pretendidos.
A principal singularidade do Direito Judicial em relação à norma geral de origem legislativa é a sua maior maleabilidade, somente persistindo a sua "densidade normativa" enquanto aplicada pelos órgãos jurisdicionais, acrescendo ser plenamente legítimo o avançar ou o retroceder em seu entendimento. O seu iter operativo direciona-se, com maior intensidade, à especificação da norma individual, à delimitação do regramento incidente no caso concreto, o que, como veremos, não obsta à sua generalização, vindo a regular condutas concebidas em abstrato.
O Judiciário, em sua atividade de realização do Direito, a partir da valoração da situação fática e do regramento posto pelo Legislativo, será responsável pela confecção da regra que regerá o caso concreto. Nesse particular, é visível o aperfeiçoamento da doutrina positivista clássica, na qual o comando normativo era exaurido pelo legislador, após sopesar a realidade fenomênica, cabendo ao intérprete, unicamente, a realização de uma operação de subsunção, sendo ínfima a liberdade de conformação, ainda que direcionada ao caso concreto. Atualmente, raras são as vozes que se insurgem contra a imprescindibilidade da atividade do intérprete no papel de agente densificador do conteúdo normativo editado pelo legislador, máxime com a intensificação do uso de princípios jurídicos, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, que somente serão passíveis de individualização com a identificação dos valores que lhes são subjacentes.
Nessa linha, a norma geral não mais ocupa uma posição externa, meramente condicionadora e delimitadora da atividade jurisdicional, terminando por assumir o status de objeto da própria função judicante. Partindo dos seus contornos abstratos, cabe aos órgãos jurisdicionais moldar o seu conteúdo à realidade ou mesmo expurgá-las da ordem jurídica, nesse último caso com o controle de constitucionalidade.
Na sentença de Recasens Siches, "la norma individualizada es la única norma jurídica perfecta, porque es la única capaz de ser impuesta inexorablemente, ejecutada coercitivamente, si esto fiera necesario. Solo la norma jurídica individualizada es la que tiene plenitud de sentido, porque articula la directriz de la norma general con la realidad de la vida, que es siempre concreta y particular". A atividade de produção normativa desempenhada pelos tribunais assume uma feição essencialmente escalonada. Atuam a partir do direito posto pelo legislador, interpretando-o e integrando-o sempre que necessário.
Não identificado, na norma geral, um alicerce idôneo à formação da norma individual, caberá ao juiz socorrer-se de outras fontes de Direito (v.g.: os costumes) para suprir a incompletude do ordenamento. Essa possibilidade, que consubstancia um "princípio essencial e necessário de qualquer ordenamento jurídico", assegurando a segurança social, é indicativa da "plenitude hermética da ordem jurídico-positiva formalmente válida".
A atividade de integração do ordenamento jurídico manifesta-se tanto nas hipóteses em que seja detectada uma lacuna legis como nas situações em que a própria norma remeta ao intérprete a atividade de densificação do seu conteúdo, o que assume particular relevância com a profusão de conceitos jurídicos indeterminados (v.g.: ordem pública) e com o reconhecimento do caráter normativo dos princípios jurídicos no constitucionalismo contemporâneo.
O reconhecimento da individualidade existencial do Direito Judicial tem encontrado resistências que repousam numa interpretação restritiva do princípio da divisão das funções estatais e na imperativa vinculação dos tribunais à Constituição e à lei, alicerce último do próprio princípio democrático, sendo freqüentemente contestada a sua legitimidade.
A contínua ampliação do papel desempenhado pelos órgãos jurisdicionais no delineamento das normas de conduta mantém vivo o debate em torno de sua legitimidade democrática. A tese da ilegitimidade, sequer suscitada pela doutrina clássica, que lhes condicionava o obrar à letra da lei e preconizava uma verdadeira automação na sua aplicação, não é inovadora, mantendo contornos em muito semelhantes àqueles suscitados no processo de sedimentação da jurisprudência como fonte de Direito.
Afinal, se os órgãos jurisdicionais não detêm a representatividade democrática, como podem contribuir para a definição do alcance da norma geral ou mesmo integrá-la no caso de lacuna? Por identidade de razões, como podem obstar a aplicação de uma norma geral, possibilidade inerente ao controle de constitucionalidade, ou integrar os próprios contornos da norma com a densificação dos princípios jurídicos e dos demais conceitos jurídicos indeterminados?
Embora seja a função legislativa a sua natural expressão, em sistemas democráticos dotados de mecanismos de checks and balances, o poder político também se projeta na função jurisdicional, o que se faz sentir na fiscalização abstrata de constitucionalidade e na persecução de crimes de responsabilidade, isto sem olvidar os influxos ideológicos que naturalmente não se desprendem dos juízes no exercício de sua atividade judicante. Em Estados autoritários, o poder político termina por subjugar a própria função jurisdicional, o que em muito compromete a sua importância como fonte de Direito.
Em um primeiro plano, deve-se ressaltar que a ratio do controle exercido pelo Poder Judiciário é a de velar para que o exercício do poder mantenha uma relação de adequação com a ordem jurídica, substrato legitimador de sua existência. Tal, no entanto, provocará uma inevitável tensão entre dois valores indispensáveis ao correto funcionamento do sistema constitucional: o primeiro indica que o poder de decisão numa democracia deve pertencer aos eleitos - cuja responsabilidade pode ser perquirida – e, o segundo, a existência de um meio que permita a supremacia da Constituição mesmo quando maiorias ocasionais, refletidas no Executivo ou no Legislativo, se oponham a ela.
O absolutismo ou mesmo o paulatino distanciamento das opções políticas fundamentais fixadas pelo Constituinte pode igualmente derivar das maiorias ocasionais, as quais, à míngua de mecanismos eficazes de controle, podem solapar as minorias e comprometer o próprio pluralismo democrático. Por tal razão, não se deve intitular uma decisão judicial de antidemocrática pelo simples fato de ser identificada uma dissonância quanto à postura assumida por aqueles que exercem a representatividade popular. Não se afirma, é certo, que a democracia seja algo estático, indiferente às contínuas mutações sociais. No entanto, ainda que a vontade popular esteja sujeita a contínuas alterações, o que resulta de sua permanente adequação aos influxos sociais, refletindo-se nos agentes que exercem a representatividade popular, ela deve manter-se adstrita aos contornos traçados na Constituição, elemento fundante de toda a organização política e que condiciona o próprio exercício do poder.
Não merece acolhida, inclusive, a tese de uma possível supremacia do Judiciário em relação aos demais poderes. As suas vocações de mantenedor da "paz institucional" e de garantidor da preeminência do sistema jurídico assumem especial importância no Estado Social moderno, no qual aumenta a importância do Estado em relação ao indivíduo, com a correlata dependência deste para com aquele, exigindo do Judiciário o controle dessa relação.
Robert Alexy, embora discorrendo sobre a competência do Tribunal Constitucional, profere lição que em muito contribui para a elucidação da tensão dialética acima enunciada. Segundo ele, "a chave para a resolução é a distinção entre a representação política e a argumentativa do cidadão". Estando ambas submetidas ao princípio fundamental de que todo o poder emana do povo, é necessário compreender "não só o parlamento mas também o tribunal constitucional como representação do povo". Essa representação, no entanto, se manifesta de modo distinto: "o parlamento representa o cidadão politicamente, o tribunal constitucional argumentativamente", o que permite concluir que este, ao representar o povo, o faz de forma "mais idealística" que aquele. Ao final, realça que o cotidiano parlamentar oculta o perigo de que faltas graves sejam praticadas a partir da excessiva imposição das maiorias, da preeminência das emoções e das manobras do tráfico de influências, o que permite concluir que "um tribunal constitucional que se dirige contra tal não se dirige contra o povo, senão, em nome do povo, contra seus representantes políticos".
Conferindo-se à Constituição a condição de elemento polarizador das relações entre os poderes, torna-se evidente que os mecanismos de equilíbrio por ela estabelecidos não podem ser intitulados de antidemocráticos. Além disso, a ausência de responsabilidade política dos membros do Poder Judiciário não tem o condão de criar um apartheid em relação à vontade popular. Na linha de Bachof, o juiz não é menos órgão do povo que os demais, pois, mais importante que a condição de mandatário do povo é a função desempenhada "em nome do povo", aqui residindo a força legitimante da Constituição. Essa fórmula, aliás, mereceu consagração expressa no art. 202, no 1, da Constituição portuguesa: "os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo".
Como desdobramento lógico da clássica teoria de Montesquieu, sedimentou-se a concepção de que a atividade dos órgãos jurisdicionais deveria assumir contornos essencialmente silogísticos: a premissa maior estaria consubstanciada na norma geral e abstrata, a premissa menor na situação fática e a conclusão na decisão judicial. Em outras palavras, ter-se-ia uma operação mecânica, um exercício de mera subsunção dos fatos à norma, com os efeitos nesta previstos.
O evolver da metodologia jurídica, no entanto, não permitiu permanecesse tal concepção incólume aos vícios intrínsecos que a acompanhavam desde o nascedouro. Embora não se contestasse que cada órgão estatal estava primordialmente incumbido do exercício de determinado feixe de atividades, dogma do qual não se afastavam o Legislativo e o Judiciário, reconheceu-se, de forma lenta e gradual, que os momentos de criação e de aplicação do Direito não ocupavam compartimentos estanques, dissociados entre si, cada qual sob a senhoria absoluta de certos órgãos. Pelo contrário, normas gerais e normas individuais aproximam-se e integram-se, formando uma verdadeira unidade de sentido. A norma geral e abstrata não esgota o conteúdo das relações jurídicas que deve regular, devendo ser integrada pelas especificidades do caso concreto, do que resultará o delineamento da norma individual, com a correlata produção dos efeitos previstos, em potência, na norma geral.
As impropriedades do raciocínio silogístico podem ser identificadas a partir das técnicas utilizadas para a individualização dos dois alicerces fundamentais da conclusão a ser alcançada: a premissa maior e a premissa menor.
A mecanicidade da atividade é de logo afastada com a mera tarefa de fixação da premissa maior: identificar a norma vigente e aplicável, desvendando o seu conteúdo, solucionando conflitos aparentes de normas no tempo e no espaço ou mesmo colmatando lacunas, é operação de índole essencialmente valorativa e que em muito desborda a simplicidade operativa preconizada pela teoria clássica, passando ao largo de uma mera lógica formal. A premissa de que a norma geral tem natureza unívoca não encontra ressonância na realidade, sendo intuitivo, como dissemos, que uma atividade puramente cognoscitiva ceda lugar a uma atividade de cunho valorativo. Dessa constatação resulta outra: na delimitação e ulterior aplicação da norma é divisada uma certa margem de liberdade, maior ou menor conforme o caso, na individualização da norma geral, o que pode ensejar o surgimento do que alguns denominam de discricionariedade judicial.
Também a premissa menor não consubstancia algo preexistente na natureza e perceptível aos sentidos: a situação fática deve ser reconstruída perante o órgão jurisdicional, daí derivando toda a gama de discussões inerentes aos seus poderes instrutórios e à eleição do paradigma ideal de convencimento, a verdade real ou a verdade formal, isto sem olvidar os aspectos associados à sua própria percepção. Nessa operação de delineamento da base fática e da conseqüente filtragem dos aspectos relevantes, o juiz não se limita à apreensão do fato juridicamente descontextualizado, projeta a realidade pelas lentes da norma, o que já é indicativo de que não realiza uma operação seqüencial – norma geral no antecedente, fato no conseqüente -, como a técnica do silogismo poderia sugerir. Fato e norma interpenetram-se, de modo que do juízo de fato desprende-se um inevitável juízo de valor, ainda que antecedente ao juízo de valor definitivo a ser realizado com o delineamento da norma individual à luz da norma geral.
A interpenetração dos juízos valorativos na premissa maior e na premissa menor permite concluir que as decisões judiciais consubstanciam estruturas complexas, mas essencialmente unitárias. Cada um dos aspectos que influenciaram a sua formação intelectiva, resultado de múltiplos juízos valorativos, articula-se com os demais de modo a formar um "ato mental indivisível", ainda que, na forma, apresente uma aparência de silogismo. Os juízos valorativos, no entanto, devem manter-se adstritos ao ordenamento jurídico, refletindo os valores sociais, "no la audacia del juez y su pretensión protegonista".
Nos Estados que adotem o modelo de controle concentrado de constitucionalidade, é factível a existência de uma força determinante da jurisprudência constitucional, cabendo ao Tribunal Constitucional cotejar a produção normativa com os contornos da ordem constitucional, assegurando a preeminência desta. Não raras vezes, mesmo o controle difuso, característico do sistema norte-americano, permite que o Tribunal tenha uma decisiva influência na própria evolução da sociedade.
Os tribunais, no entanto, atuam secundum constitucionis, não podendo criar paradigmas de controle não contemplados nesta ou substituir-se ao legislador em suas opções políticas.
Em alguns sistemas, à sentença que tão-somente reconheça que a lei impugnada não contraria a Constituição não é atribuída força de lei. Argumenta-se que entendimento contrário criaria a suposição de que a lei não poderia ser atacada no futuro, salvo pelo próprio legislador, impedindo que o Tribunal viesse a reexaminar a sua constitucionalidade, o que terminaria por atribuir-lhe valor similar ao da própria Constituição.
No que concerne à discricionariedade legislativa para a edição de uma nova norma geral, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade em sede de fiscalização abstrata apresentam variações, havendo sistemas que contraditoriamente aceitam a reedição de norma idêntica pelo legislador e outros que, prestigiando o efeito erga omnes da decisão, extensivo aos particulares e às autoridades públicas, vedam que o legislador reproduza a norma sem prévia alteração da norma constitucional com ela incompatível, conferindo-lhe verdadeira "força de lei". Nesse último caso, realça-se o papel do Direito Judicial, que assume feições não só supressivas como obstativas.
Nas omissões legislativas, quer totais, com a não integração de eficácia de normas constitucionais, quer parciais, com a violação ao princípio da igualdade na sua integração, são múltiplas as questões que envolvem os limites e as potencialidades do Direito Judicial.
Tratando-se de norma constitucional dependente de intervenção legislativa para a obtenção de ampla eficácia, a não edição da legislação exigida, no lapso fixado ou em prazo razoável, caracterizará uma omissão inconstitucional, o que, no entanto, não permite que o Judiciário, sem expressa autorização constitucional, no exercício de uma representatividade democrática que efetivamente não possui, substitua-se ao Legislador e supra a omissão, editando uma norma ornada com os atributos da generalidade e da abstração. Em situações tais, como a maior expressão de ingerência dos tribunais na atividade legislativa, tem-se reconhecido, por expressa previsão constitucional ou a partir de uma interpretação construtiva, a possibilidade de declararem a ilicitude da conduta, cientificando o órgão responsável pela omissão, não sendo prestigiado o Direito Judicial substitutivo. Essa mera comunicação ao legislador, não é preciso realçar, pouco ou nenhum resultado prático tem produzido, o que justifica a reduzida utilização dessa técnica em muitos Estados.
Resultado mais satisfatório, sob o prisma da máxima efetividade das normas constitucionais, pode ser alcançado não com a prolação de decisão substitutiva da própria lei, mas com uma reengenharia interpretativa das normas já existentes, nelas reconhecendo o potencial de integração da Constituição ou mesmo a sua aplicação direta. A atividade dos tribunais afasta-se da abstração inerente à lei e volta-se ao caso concreto, não chegando propriamente a constituir um regramento de cunho geral, o que é indicativo de um Direito Judicial concorrente com a normativa preexistente, quer constitucional, quer legal.
O Tribunal Constitucional espanhol, em leading case, valorando a omissão legislativa na regulamentação do art. 30, nº 2, da Constituição, que remetia à lei a disciplina, com as devidas garantias, da objeção de consciência, concluiu que a norma constitucional, embora dependente de conformação legislativa, tinha um conteúdo mínimo que não podia ser ignorado. Posta a premissa, entendeu que esse conteúdo mínimo somente seria observado com a "suspensão provisória da incorporação ao serviço militar" daqueles que invocassem a objeção de consciência.
Em outro momento, face à inexistência de regulamentação legal relativa à exploração de televisão por cabo de âmbito local, o Tribunal vislumbrou nessa omissão uma proibição total ao acesso aos meios de comunicação, o que contrariava a norma constitucional que assegurava a liberdade de expressão e de comunicação, bem como a criação dos meios de difusão da informação (art. 20, nº 1, alíneas a e d). Por tal razão, entendeu que, enquanto não editada a norma delineando os requisitos a serem preenchidos para o deferimento da autorização administrativa, era livre a exploração dessa atividade.
Tal haverá de ser a solução nas situações de "necessidade extrema e excepcional" - necessitas non habet legem -, em que a preservação da dimensão axiológico-teleológica da Constituição formal exija um provimento jurisdicional que preserve os valores essenciais ainda não resguardados por uma legislação que a integre e potencialize sua eficácia.
Somente nas omissões consideradas absolutas, que geram, no plano infraconstitucional, lacunas não colmatáveis (unausfüllbare Lücke), será defeso ao Judiciário avançar na atividade de integração da Constituição, necessariamente dependente da concretização legislativa. Nessa linha, o Tribunal Constitucional espanhol, ao apreciar questão envolvendo a ausência de regulamentação legal do regime de concessão administrativa para a exploração de televisão local, não pôde encampar a tese de ser livre a exploração, permitindo a produção de um mínimo de eficácia pela norma constitucional que assegura a liberdade de expressão e de comunicação (art. 20, nº 1, alíneas a e d). In casu, a decisão foi justificada por razões técnicas, pois a difusão dos sinais exigia uma prévia ordenação das freqüências de emissão, o que pressupunha a necessária intermediação legislativa na confecção da normativa geral e impedia fosse considerada livre a exploração da atividade.
Ainda com os olhos voltados ao caso concreto, não deve ser descartada a possibilidade de a Constituição permitir ao órgão jurisdicional que, suprindo a omissão legislativa, integre a norma constitucional com o fim de prestigiar valores essenciais ao Estado, como é o caso da preservação dos direitos fundamentais. Aqui, o Direito Judicial atuará como substitutivo da lei, incursionando em esfera que lhe é inerente, o que redundará no redimensionamento da clássica divisão entre as funções estatais, tendo como desiderato final a preservação da própria razão de ser da organização estatal: o bem comum. Como referencial de equilíbrio do sistema, é de todo conveniente que a decisão restrinja-se ao caso, resguardando-se o poder normativo geral inerente ao Legislativo.
Nas omissões legislativas parciais, em que o legislador atua com violação ao princípio da igualdade, excluindo do alcance da norma geral situações jurídicas em tudo similares àquelas por ela contempladas, releva analisar a postura a ser assumida pelo órgão jurisdicional e, por via reflexa, o papel do Direito Judicial.
Em linha de princípio, poderiam ser quatro as soluções alvitradas pelo órgão jurisdicional ao reconhecer a inconstitucionalidade da discriminação: a) não aplicar a norma, mas proferir uma decisão que regule, sem violação ao princípio da igualdade, as situações por ela alcançadas; b) aplicar a norma ampliando o seu alcance às situações indevidamente excluídas; c) aplicar a norma, tal qual editada, sob o fundamento de que o vício parcial não obsta a produção de efeitos em relação às situações por ela alcançadas; e d) não aplicar a norma.
Na situação a ter-se-ia o Direito Judicial substitutivo da lei; na situação b o corretivo; na situação c o concorrente; e na situação d o supressivo. Embora haja grande resistência em relação às duas primeiras possibilidades, isto em razão da acentuada incursão em atividade que originariamente recai sobre o Legislativo, não é oposto qualquer óbice à terceira, que reflete o exercício da função jurisdicional nos seus contornos mais simples, sendo a última amplamente aceita nos sistemas que contemplam o controle de constitucionalidade, o que é o caso do Direito brasileiro.
No Direito Judicial concorrente, há interpretação e aplicação da norma posta pelo legislador; no supressivo, há interpretação e não aplicação da norma, prestigiando-se a preeminência da Constituição, norma superior e que deve consubstanciar o seu fundamento de validade. Em ambos os casos, o Judiciário parte de uma norma geral: no primeiro alcançando a individualização da norma individual; no segundo reconhecendo a impossibilidade de formulá-la. Por identidade de razões, cremos que a incidência do Direito Judicial corretivo não deve ser descartada.
Editada a norma geral, oxigenada pela opção política do órgão de representação democrática, não vislumbramos qualquer rompimento metodológico no obrar do órgão jurisdicional que proceda à sua interpretação, necessariamente direcionada pelas normas constitucionais, dentre as quais o princípio da igualdade, e delineie a norma individual de modo a alcançar aquele que, embora excluído, devesse ser necessariamente por ela alcançado. Em situações como essa, não visualizamos a mais remota usurpação da função legislativa, isto porque a norma geral, ao ser transposta da abstração de suas linhas estruturais para a realidade, o será em harmonia com os influxos constitucionais. Aliás, soa absurdo imaginar que a Constituição, ao conferir liberdade ao legislador para delinear o conteúdo da norma e negar-lhe toda e qualquer liberdade para excluir alguns dos destinatários em potencial, não pudesse ser diretamente aplicada pelo Judiciário, que, longe de substituir-se ao legislador, aplicaria a norma sob uma perspectiva corretiva, compatibilizando-a com o seu fundamento de validade.
Também merece menção o entendimento prestigiado pela Corte Costituzionale italiana, que não visualiza qualquer incompatibilidade lógica na utilização do seu poder anulatório em relação à omissão legislativa. Em outras palavras, a omissão, no contexto teleológico-sistemático da norma geral, adquire a essência e os efeitos de uma norma negatória, a qual, na medida em que dissonante do princípio da igualdade, justifica a sua supressão, de modo a tornar efetivo e integral o potencial regulatório da norma. A exclusão, o limite e a proibição, quer expressos, quer implícitos, são ontologicamente invariáveis, o que legitima a identidade de tratamento.
Tratando-se de violação ao princípio da igualdade resultante não de omissão legislativa, mas de preceito expresso, excluindo determinadas situações do alcance da norma, é de todo cabível a sua supressão, com a conseqüente correção do alcance da norma geral e a sua extensão às situações objeto da exclusão inconstitucional. Decisão dessa natureza, de conteúdo essencialmente positivo, foi proferida pelo Tribunal Constitucional português no Acórdão nº 203/1986, em sede de fiscalização concreta: a questão versava sobre norma que, em matéria de atualização de pensões decorrentes de acidentes do trabalho, terminou por dispensar tratamento menos favorável aos antigos beneficiários da pensão em decorrência da edição de normas mais favoráveis aos novos beneficiários, discriminação considerada arbitrária pelo Tribunal, do que resultou o reconhecimento da inconstitucionalidade das normas anteriores e na extensão do regime mais favorável a todos os beneficiários. A mesma questão voltou a ser apreciada em sede de fiscalização abstrata, tendo o Tribunal, no Acórdão nº 12/1988, declarado a inconstitucionalidade, com efeitos erga omnes, das normas que integravam o regime menos favorável, na medida em que restringissem a aplicação do regime mais favorável.
Questão tormentosa, no entanto, e que invariavelmente redundará numa postura de auto-contenção dos tribunais, reside nos efeitos financeiros decorrentes do Direito Judicial corretor da lei. Enquanto a ampliação das garantias individuais, em especial com o realinhamento da esfera jurídica imune à atuação estatal, redundará num non facere, a extensão de direitos prestacionais (v.g.: a indevida concessão de aumento remuneratório somente a determinada categoria do funcionalismo público) inicialmente não previstos na norma culminará com um dare, com inevitável impacto nas finanças públicas.
Apesar do inegável cunho educativo que ostenta o Direito Judicial supressivo, evitando que omissões parciais sejam praticadas e perpetuadas sob o abrigo da inviabilidade financeira de a norma ser estendida a todos aqueles que se encontrem em situação jurídica similar, não se pode ignorar os seus efeitos deletérios. Suprimida a regulamentação parcial, não restará regulamentação alguma. A coexistência de padrões de legitimidade e de ilegitimidade, ambos parciais, cederá lugar à ilegitimidade total, prejudicando parcela maior da coletividade que aquela alcançada pela norma quando em vigor.
A paulatina maturação da concepção positivista clássica, que vedava ao intérprete qualquer consideração de ordem axiológica e limitava a sua atividade a uma operação de mera subsunção do fato à norma, sofreu toda sorte de influxos, na medida em que a própria incompletude do ordenamento jurídico, de tendência crescente ante a impossibilidade de imediata adequação da norma aos influxos sociais, tornava inevitável que o operador do Direito viessa a sopesar os valores comuns a determinado grupamento para fins de integração da própria norma. Para essa concepção, as normas se confundiam com as regras de conduta que veiculavam, sendo os princípios utilizados, primordialmente, como instrumentos de interpretação e integração daquelas.
Hodiernamente, tem-se uma fase pós-positivista, em que os princípios deixam de ser meros complementos das regras, passando a ser vistos como formas de expressão da própria norma, que é subdividida em regras e princípios. Os princípios, a exemplo das regras, carregam consigo acentuado grau de imperatividade, exigindo a necessária conformação de qualquer conduta aos seus ditames, o que denota o seu caráter normativo (dever ser). Sendo cogente a observância dos princípios, o ato que deles destoe será inválido, conseqüência esta que representa a sanção para a inobservância de um padrão normativo cuja reverência é obrigatória.
Em razão de seu maior grau de generalidade, os princípios veiculam diretivas comportamentais que devem ser aplicadas em conjunto com as regras sempre que for identificada uma hipótese que o exija, o que, a um só tempo, acarreta um dever positivo para o agente – o qual deve ter seu atuar direcionado à consecução dos valores que integram o princípio – e um dever negativo, consistente na interdição da prática de qualquer ato que se afaste de tais valores. Constatada a inexistência de regra específica, maior importância assumirão os princípios, os quais servirão de norte à resolução do caso apreciado. Em sua dimensão integrativa, os princípios conferem maior unidade ao sistema normativo, possibilitando o estabelecimento de uma conexão entre as múltiplas regras que o compõem e permitindo que os valores que veiculam incidam de forma adequada e coerente sobre diferentes situações, afastando o risco de contradições no sistema.
A necessidade de densificação dos princípios constitucionais à luz dos valores sociais, com a imperiosa preservação da unidade do sistema, bem demonstra a importância assumida pelo Direito Judicial, o qual, embora atuando concorrentemente, vale dizer, em busca da consecução de fins comuns, integra os próprios contornos da norma geral.
Quanto à identificação da linha limítrofe que separa as regras dos princípios, as concepções doutrinárias podem ser subdivididas, basicamente, em duas posições: de acordo com a primeira, denominada de concepção fraca dos princípios, a distinção para com as regras é quantitativa, ou de grau; enquanto a segunda, intitulada de concepção forte dos princípios, sustenta que a diferença é qualitativa.
A concepção débil de princípios está vinculada a uma visão positivista do Direito, não visualizando uma distinção substancial em relação às regras, mas, unicamente, uma maior generalidade e abstração, o que conduz os princípios à condição de normas fundamentais do sistema e lhes confere um grande valor hermenêutico, sem aptidão, contudo, para fornecer uma unidade de solução no caso concreto.
A concepção forte de princípios identifica distinções sob os aspectos lógico e qualitativo, o que individualiza os princípios como normas jurídicas que se diferenciam das regras em razão de sua composição estrutural. A imperatividade da ordem jurídica não se esgotaria na previsão explícita das regras jurídicas, estendendo-se aos valores consubstanciados nos princípios. Ante o prestígio auferido por essa concepção, para a qual converge a grande maioria dos estudos contemporâneos, teceremos breves considerações a respeito de dois de seus maiores expoentes.
Para Dworkin, um dos maiores cultores da metodologia jurídica contemporânea, os princípios se distanciam das regras na medida em que permitem uma maior aproximação entre o direito e os valores sociais, não expressando conseqüências jurídicas que se implementam automaticamente com a simples ocorrência de determinadas condições, o que impede que sejam previstas, a priori, todas as suas formas de aplicação. A efetividade dos princípios não é resultado de uma operação meramente formal e alheia a considerações de ordem moral. Os princípios terminam por indicar determinada direção, mas não impõem uma solução em particular.
A distinção lógica entre regras e princípios é evidenciada por Dworkin ao dizer que "ambos estabelecem standards que apontam para decisões particulares sobre obrigações jurídicas em circunstâncias determinadas, mas distinguem-se quanto ao caráter de direção que estabelecem. Regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada. Se ocorrem os fatos estipulados pela regra, então ou a regra é válida, caso em que a resposta que fornece deve ser aceita, ou não é, caso em que em nada contribui para a decisão". Dessa distinção deflui que os princípios possuem uma dimensão de peso, o que influirá na solução dos conflitos, permitindo a identificação daquele que irá preponderar. Quanto às regras, por não apresentarem uma dimensão de peso, a colisão entre elas será resolvida pelo prisma da validade, operação que será direcionada pelos critérios fornecidos pelo próprio ordenamento jurídico: critério hierárquico (lex superior derogat inferiori), critério cronológico (lex posterior derogat priori) e critério da especialidade (lex specialis derogat generali).
Segundo Robert Alexy, enquanto as regras impõem determinado padrão de conduta, os princípios são normas jurídicas impositivas de uma otimização, ordenando que algo seja realizado na melhor medida possível, podendo ser cumpridos em diferentes graus, sendo que a medida de seu cumprimento dependerá tanto das possibilidades reais como também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios opostos, que incidem na espécie e que igualmente buscam a prevalência de suas potencialidades, e pelas regras que, de algum modo, excepcionam o princípio que se pretende aplicar. Além de encerrarem comandos de otimização que variarão consoante as circunstâncias fáticas e jurídicas presentes por ocasião de sua aplicação, os princípios apresentam peculiaridades em relação às regras.
Para o jurista alemão, os princípios convivem harmonicamente, o que permite a sua coexistência e que, em caso de conflito, um deles seja preponderantemente aplicado ao caso concreto, a partir da identificação de seu peso e da ponderação de outros princípios, conforme as circunstâncias em que esteja envolto. O conflito entre regras, por sua vez, será solucionado com a introdução de critérios de especialidade entre elas ou com o reconhecimento da invalidade de uma ou de algumas das regras confrontadas, permitindo que seja identificada aquela que regulará a situação concreta. Aqui, diferentemente do que ocorre com os princípios, não se tem um exercício de ponderação, mas uma forma de exclusão, sendo cogente a aplicação da regra ao caso sempre que verificado o seu substrato fático típico. Enquanto os conflitos entre regras são dirimidos na dimensão da validade, os conflitos entre princípios o são na dimensão do peso. Portanto, as regras contém determinações no âmbito do fático e juridicamente possível, o que significa que a diferença entre regras e princípios, espécies do gênero norma jurídica, é qualitativa e não de grau.
Após essa sintética abordagem das doutrinas de Dworkin e de Alexy, constata-se que a distinção existente entre regras e princípios é melhor identificada a partir da visualização da espécie de solução exigida para os casos de colisão, o que nos leva a encampar a concepção forte dos princípios.
É de se notar, ainda, que a regra é um tipo de norma que, presentes os pressupostos autorizadores de sua aplicação, regerá determinada situação fática ou jurídica, de forma incontestável e definitiva. Princípio, por sua vez, é um tipo de norma cujos pressupostos autorizadores de sua aplicação não assumem contornos precisos, o que lhe confere maior imprecisão e menor determinabilidade, fazendo com que atue como meio de otimização de certo comportamento, impregnando-o com os valores extraídos das possibilidades fáticas e jurídicas do caso.
De forma sintética, pode-se dizer que a aplicação das regras pode se esgotar em uma operação de subsunção, enquanto que os princípios exigem uma atividade de concreção, densificando os valores incidentes no caso, e um exercício de ponderação, permitindo sejam sopesados os valores que informam tal situação fática, culminando com a identificação da solução justa para o caso concreto. Concreção e ponderação são manifestações inequívocas da importância assumida pele Direito Judicial na atualidade.
Característica marcante dos sistemas de common law, identificados como um corpo central de normas não decorrentes propriamente do Direito escrito, mas, sim, dos padrões continuamente derivados das decisões judiciais, a força normativa dos precedentes indica que os tribunais inferiores devem ficar adstritos à interpretação jurídica traçada pelos tribunais superiores, o que costuma ser identificado pelo princípio do stare decisis ou, em sua formulação completa, do stare decisis et non quieta movere.
Trata-se de um sistema baseado no case law, em que a elaboração da norma individual que regerá o caso concreto contribuirá para a integração e o evolver da norma geral. Em regra, embora não seja divisada propriamente uma precedência lógica da norma individual em relação à norma geral, é inegável que, apesar de condicionar e direcionar a construção daquela, o processo de formação da norma geral é desenvolvido a partir da norma individual, não sendo incomum o seu caráter inovador.
Os precedentes podem assumir contornos declarativos ou criativos. Nos precedentes declarativos, os tribunais limitam-se a interpretar e a aplicar as normas já existentes, definindo o seu conteúdo e mantendo uma relação de continuidade no evolver da norma geral, o que consubstancia manifestação do Direito Judicial concorrente. Nos precedentes criativos, ao revés, como o próprio designativo indica, os tribunais inovam na ordem jurídica. Esse caráter inovador, é importante frisar, não é arrefecido mesmo nas hipóteses em que se busca reconduzir a decisão a uma norma já existente ou a um vetor interpretativo há muito sedimentado, parecendo um injustificável eufemismo afirmar que o direito sempre existiu, embora nunca tenha sido exercido ou atribuído a quem quer que seja.
A freqüência de emissão dos precedentes declarativos e dos criativos é diretamente proporcional ao grau de desenvolvimento do respectivo sistema jurídico. Em sistemas evoluídos, é nítida a preeminência dos precedentes declarativos, sendo possível que a evolução social e a reengenharia de sua escala de valores possam ser mais facilmente enquadráveis, com pequenas adequações interpretativas, nos paradigmas já existentes, evitando uma "evolução por saltos", da essência dos precedentes criativos.
De positivo, destaca-se a importância dos precedentes na uniformização da atividade interpretativa do Direito, na preservação da segurança jurídica nas relações sociais, evitando-se a multiplicação de opiniões dissonantes entre os distintos órgãos jurisdicionais, e na conseqüente manutenção do princípio da igualdade.
De negativo, costuma-se argumentar que tal sistema compromete o evolver social, já que as decisões vinculativas são tomadas pelos escalões superiores e alcançam os inferiores, enquanto, de forma paradoxal, são justamente os últimos que possuem maior contato com a coletividade. Essa linha argumentativa, no entanto, é diluída na medida em que os pronunciamentos dos tribunais superiores costumam ser antecedidos por uma longa maturação da questão nas esferas inferiores, isto sem olvidar a possibilidade de serem revistos sempre que a evolução social o justifique.
Sem prejuízo da crescente importância do statute law (rectius: direito escrito) nos sistemas de common law, em especial no Direito norte-americano, que conta, inclusive, com uma Constituição escrita, ainda é singular a importância dos precedentes. Nos sistemas de raiz romano-germânica, há muito a jurisprudência é considerada uma fonte formal de Direito, adquirindo um certo valor normativo anteriormente negado pela Revolução francesa.
Apesar de a jurisprudência ser considerada uma fonte formal de Direito nos sistemas romano-germânicos, não se costuma divisar o seu caráter vinculativo. A jurisprudência atua como vetor auxiliar na interpretação das normas e mecanismo de integração das lacunas existentes, o que não retira uma certa ascendência moral das decisões proferidas pelos tribunais superiores, em especial por indicarem a posição a ser adotada em sendo o caso por eles examinado em sede recursal. Apesar de os juízes estarem submetidos à lei, a jurisprudência é a lei aplicada pelos juízes, vale dizer, é a lei concreta, transposta da plasticidade de suas linhas estruturais para a realidade. Por privilegiarem o papel criativo da legislação, os sistemas de raiz romano-germânica não costumam tratar a jurisprudência como fonte de regras de direito, mas como fonte de Direito.
Não poucas vezes a jurisprudência tem assumido, inclusive, uma posição corretiva da norma geral de origem legislativa. Nesse particular, merece menção a responsabilidade civil dos patrões, amos e comitentes, independentemente de culpa, por atos de seus prepostos, empregados ou serviçais, possibilidade não contemplada no art. 159 do Código Civil de 1916, que exigia a culpa ("aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano"), mas encampada pela jurisprudência e sedimentada no Enunciado nº 341 da Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal ("É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto"). É o que se convencionou chamar de culpa in eligendo, que importa no deslocamento da análise do elemento subjetivo para o momento da escolha do preposto, empregado ou serviçal, antecedente lógico do ato praticado, mas que com ele não se confunde.
O Direito brasileiro, de raiz romano-germânica, teve introduzido em seu sistema jurídico a denominada súmula vinculante, a ser editada exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal e de alcance restrito à matéria constitucional. Com efeito, na dicção do art. 103-A, com a redação dada pelo art. 2º da Emenda Constitucional nº 45/2004, o Tribunal "poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei". Como se percebe, além de adstrita a determinada matéria, a aprovação da súmula exige uma maioria qualificada (oito dos onze Ministros) e pressupõe a sedimentação de determinado entendimento no âmbito do Tribunal, o que é indicativo de sua excepcionalidade e da preocupação de não alijar os demais órgãos jurisdicionais do processo construtivo do Direito. Acresça-se que a "súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica" (art. 103-A, § 1º, da Constituição).
Essa súmula vinculante, no entanto, longe de ocupar um papel de destaque na própria criação da regra de direito, o que é da essência dos sistemas de common law, quando utilizada, desempenhará um papel essencialmente declarativo, fixando a interpretação de normas preexistentes. Isto, no entanto, não diminui a importância do Direito Judicial concorrente, que contribuirá para a exatidão de conteúdo da norma geral posta pelo legislador, constituinte ou constituído.
Ainda que sejam tortuosos os percursos metodológicos conducentes à fundamentação do Direito Judicial, é inegável a influência projetada, no meio social, pelas decisões dos órgãos jurisdicionais, em especial dos tribunais superiores. Não é exagero afirmar que materializam o direito vivo, renovando sua essência a cada vaga de mutação social. O estudo do Direito Judicial estimula a identificação de suas virtualidades e permite a idealização de adequados mecanismos de controle, pois, na conhecida sentença de Lord Acton, "todo o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente".
Um breve tracejar das potencialidades dessa temática, ainda que acompanhado de imperfeições e incontáveis omissões, foi o nosso objetivo.
ABRAHAM, Henry J.. The Judicial Process, New York-Oxford: Oxford University Press, 1986.
ALDERMAN, Ellen e KENNEDY, Caroline. In Our Defense, Nova Iorque: Avon Books, 1998.
ALEXY, Robert. Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos Fundamentais no Estado de Direito Democrático, in RDA nº 217/75.
_________. Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático, trad. de Luiz Afonso Heck, in RDA no 217/66, 1999.
_________. Theorie der Grundrechte, Baden-Baden: Suherkamp, 1994.
ARISTÓTELES. A Política, tradução de Roberto Leal Ferreira, São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BACHOF, Otto. Jueces y Constitución, trad. de Rodrigo Bercovitz Rodrígues-Cano, Madrid: Editorial Civitas, 1985.
BALAGUER CALLEJÓN, Francisco et alli. Derecho Constitucional, vol. I, 2ª ed., Madrid: Tecnos, 2003.
BOBBIO, Norberto. Il Positivismo Giuridico, Torino: G. Giappichelli, 1979.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 4ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 1993.
BRADLEY, A. W. e EWING, K. D.. Constitutional and Administrative Law, Harlow: Pearson Education, 2003.
CHAPUS, René. Droit Administratif Général, Tome 1, 15ª ed., Paris: Montchrestien, 2001.
CRISAFULLI, Vezio. Lezioni di Diritto Costituzionale, 5ª ed., Verona: CEDAM, 1998.
DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, trad. de Hermínio A. Carvalho, São Paulo: Martins Fontes, 1986.
DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously,17ª ed., Massachusetts: Harvard University Press, 1999.
ELIA, Leopoldo. Le sentenze additive e la piú recente giurisprudenza della Corte Costituzionale, in Scritti su la Giustizia Costituzionale in onore di Vezio Crisafulli, I, Padova, 1985.
FAVOREAU, Louis et alii, Droit Constitutionnel, 6ª ed., Paris: Dalloz, 2003.
FERNÁNDEZ RODRIGUEZ, José Julio. La inconstitucionalidad por omisión. Teoria general. Derecho Comparado. El caso español, Madrid, 1998.
GARCÍA DE ENTERRIA, Eduardo. La Constitución como Norma y el Tribunal Constitucional, 3ª ed., Madrid: Civitas Ediciones, 2001.
GIANINI, Massimo Severo. Diritto Amministrativo, vol. 2º, 3ª ed., Milão: D. A. Giuffrè Editore, 1993.
GOMES CANOTILHO, J.J.. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, 2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2001.
_________ Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2002.
GONZÁLEZ PÉREZ, Jesús. Administración pública y moral, Madrid: Cuadernos Civitas, 1995.
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 3ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2005.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, 4ª ed., São Paulo: RCS Editora, 2005.
HAMON, Francis et alli. Droit Constitutionnel, 27ª ed., Paris: LGDJ, 2001.
HOWARD, A. Dick. La protection des droits sociaux en droit constitutionnel américain, in Revue Française de Science Politique v. 40, nº 2, p. 188, 1990
IPSEN, J.. Richterrecht und Verfassung, Berlim: Duncker & Humblot, 1975.
IRONS, Peter. A People´s History of the Supreme Court, Nova Iorque: Pinguin Books, 2000.
ITURRALE SESMA, Victoria. El Precedente em el Common Law, Madrid: Editorial Civitas, 1995.
KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
LOCKE, John. The Second Treatise of Government: Essay concerning the true original, extent and end of civil government, 3a ed., Norwich: Basil Blackwell Oxford, 1976.
MELLO, Maria Chaves de. Dicionário Jurídico, 3ª ed., Lisboa: Dinalivro, 2002.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, Tomo II, Coimbra: Coimbra Editora, 2003.
_________. Manual de Direito Constitucional, Tomo VI, Coimbra: Coimbra Editora, 2001.
_________. Teoria do Estado e da Constituição, Coimbra: Coimbra Editora, 2002.
MONTESQUIEU, Barão de. De L’Ésprit des Lois, com notas de Voltaire, de Crevier, de Mably, de la Harpe e outros, Paris: Librairie Garnier Frères, 1927.
OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública, O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, Coimbra: Livraria Almedina, 2003.
OTTO, Ignácio de. Derecho Constitucional, Sistema de Fuentes, Barcelona: Editorial Ariel, 2001.
ROYER, Jean-Pierre. Débat: Le juge sous la Ve République, in Revue du Droit Public no 5/6, p. 1853, 1998.
VEDEL, George. Droit Administratif, 5a ed., Paris: Presses Universitaires de France, 1973.
RECASENS SICHES, Luis. Introducción al Estúdio del Derecho, 14ª ed., México: Editorial Porrúa, 2003.
SILVA, Jorge Pereira da. Dever de legislar e protecção jurisdicional contra omissões legislativas, Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2003.
STAF, Ilse. Verfassungsrecht, Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1976.
Emerson Garcia
emersongarcia814[arroba]hotmail.com
Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
|
|