Acompanhando a linha evolutiva do Estado de Direito, também a noção de função jurisdicional tem passado por inúmeras vicissitudes. Sob uma perspectiva orgânica, o seu aparecimento certamente está associado à edição, na Grã-Bretanha, do Act of Settlement, de 1701, que garantiu a independência e a correlata autonomia existencial dos órgãos jurisdicionais, colocando-os acima da vontade livre da Coroa.
Não é por outra razão que Locke, poucos anos antes, ao desenvolver o alicerce teórico da Glorious Revolution de 1689, concebeu o poder de julgar sob uma ótica eminentemente funcional, concentrando no órgão representativo do Estado (v.g.: o rei) o exercício das funções administrativa e judicial: reconhecia-se a divisão funcional do poder, não a orgânica. Já Montesquieu, escrevendo em momento posterior ao Act of Settlement e utilizando as instituições inglesas como referencial, aperfeiçoou a construção de Locke e traçou as linhas estruturais da clássica tripartição do poder, consagrando-a também sob o prisma orgânico.
Montesquieu, no entanto, atribuiu ao Judiciário um papel invisível e neutro - que bem se refletia na célebre frase de que o "juiz não é senão a boca que pronuncia as palavras da lei", "não podendo moderar-lhe a força nem o vigor". Ante a neutralidade atribuída ao juiz, era inconcebível o exercício de atividade outra que não a de mera subsunção, o que afastava a realização de qualquer operação valorativa que terminasse por adequar a norma aos influxos sociais. O juiz deveria seguir a "letra da lei" e os entendimentos do juiz deveriam ser fixos, de modo que nunca fossem mais do que um texto preciso da lei, concepção que se mostrava necessária por ser o Poder Judiciário "um poder terrível entre os homens". Somente o Legislativo, especificamente o Corpo dos Nobres, poderia valer-se da eqüidade ao apreciar as matérias jurisdicionais que lhe eram atribuídas (v.g.: julgar os aristocratas e as demais figuras preeminentes), o que decorreria de sua participação na produção normativa, tendo autoridade para "moderar a lei em favor da lei, pronunciando-se menos rigorosamente que ela". Esse dualismo de jurisdição caracterizava o sistema constitucional inglês à época, sendo justificável por ser "necessário que os juízes sejam da condição social do acusado ou seus pares".
A exemplo de Locke, também Montesquieu concebera a teoria da separação dos poderes como uma forma de preservação da liberdade contra o arbítrio. Ambos, no entanto, além de prestigiarem a dicotomia entre o Legislativo e o Executivo, dispensavam uma importância secundária ao Judiciário: Locke sequer concebeu um poder autônomo, integrando a função de julgar num universo mais amplo, o de executar a lei; Montesquieu, apesar de prestigiar a existência de um poder autônomo encarregado da função jurisdicional, apressava-se em realçar a necessidade de o Judiciário manter-se adstrito à "letra da lei".
Essa breve notícia histórica permite visualizar, com relativa clareza, as profundas mutações de natureza inter e intra-orgânica que se operaram nas estruturas políticas de poder, em especial na função jurisdicional.
Página seguinte |
|
|