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Falei atrás em "quase inevitáveis surtos emocionais"
porque o sentimento — tanto quanto a fria razão — ainda exerce forte
pressão no âmbito da "responsabilidade", seja a civil
seja a penal. Desde que o homem passou a viver em grupo — isto é, sempre,
porque foi gerado por duas pessoas e coabitava pelo menos com parentes — o sentimento
da "responsabilidade", ou da relação de "causa
e efeito" o acompanhou. Algo, por sinal, imprescindível ao desenvolvimento
da civilização. A Ciência não é mais que uma
infindável pesquisa da relação de causa e conseqüência,
do encadeamento objetivo dos fenômenos, o quê causando o quê.
Todavia, se essa tendência inata do cérebro humano em buscar "a
causa" dos fenômenos o fez chegar aonde chegou — compreendendo e
até mesmo controlando boa parte dos fenômenos naturais, criando
novos seres vivos, atrevendo-se na conquista espacial, etc — não há
dúvida que o inato instinto de retribuição, a busca da
"responsabilidade a qualquer custo" — "alguém tem que
ser responsável por isto!" — produz algumas distorções,
pelo menos quantitativas, com reflexos óbvios na justiça estatal.
Temos, como seres humanos — de qualquer país —, dificuldade no "administrar"
a emoção oriunda da visão de um dano, qualquer dano, sem
instintivamente vasculhar na mente um "responsável". A reação
do tipo "crime e necessário castigo" ou, "se há
um castigo, deve haver um crime!" E, com a vedação da justiça
pelas próprias mãos, a Justiça estatal é cada vez
mais solicitada em assuntos de responsabilidade, principalmente a civil. Daí
a necessidade de crescente regramento, de estabelecer limites — mecanismos "auto-limitadores",
falaremos disso mais adiante — para o "dano moral" e sua mais recente
exaltação, a "indenização punitiva", ou
"exemplar", tão utilizada pela Justiça dos Estados Unidos
da América do Norte. Como esse país, em razão de seu desenvolvimento
econômico, tecnológico e organizacional influencia outros países
— entre os quais o Brasil — será útil extrair algumas lições
dos seus erros e acertos quanto à conversão, em dinheiro, da chamada
"dor moral" e conseqüente (quando cabe), "punição",
coisa distinta, a nosso ver.
Para início de consideração, não nos parece apropriado,
em um país de formação cristã, fundamentar a quantia
fixada pelo juiz, a título de "dano moral", como uma "alegria"
que contrabalançaria a "tristeza" causada, por exemplo, pela
perda de um filho, como aparece em alguns textos de justificação
do dano moral. Sugerir, por exemplo, que com o dinheiro da indenização
a vítima — ou seu cônjuge, ou parente — sairá em eufórica
excursão turística, filmadora a tiracolo, esquecendo a tragédia,
é materializar demais, vulgarizar demais, a fundamentação
essencialmente moral da indenização. Quantias são fixadas
a título de "dano moral" porque não há como o
juiz, que não é Deus, repor as coisas no estado anterior. Se ele
pudesse, faria isso. Não podendo, no exemplo dado, ressuscitar o filho
da vítima, ou restabelecer totalmente a honra denegrida por um repórter
de má-fé, tenta o juiz contrabalançar, de alguma forma,
o dano causado. À falta de outras formas mais práticas e disponíveis,
usa-se a indenização pecuniária porque a moeda é
um valor de permuta universal, tanto para valores concretos quanto abstratos
(qualquer pintura abstrata, se assinada por Picasso, imediatamente adquire altíssimo
valor), e seria absurdo que o dano moral ou a dor física passassem em
brancas nuvens, de certo modo estimulando a impunidade. O juiz converte a dor
física ou moral em dinheiro como que "sob protesto", uma vez
que não pode fazer milagres. Não quer, propriamente, "alegrar"
o autor da ação, quer fazer a justiça humanamente possível.
Reconhecemos que é mais uma questão de semântica, mas fica
aqui a observação. A propósito, e pedindo aqui a necessária
licença ao sisudo leitor, no caso de réus doentiamente apegados
ao dinheiro, poderia um psicólogo brincalhão afirmar que a "dor
moral" do desembolso da indenização seria na verdade algo
físico, conforme o velho refrão: "mexam na minha alma, mas
não mexam no meu dolorido bolso" —, havendo, portanto, equivalência
real, e não simbólica, de sofrimentos.
Todavia, não podemos esquecer que se o homem tem sede de justiça
tem também sede de lucros.
Onde há um dano deve haver um "culpado"...
No distante passado, cataclismos e mesmo tragédias menores "só
poderiam" ser conseqüência dos "pecados", a exigir
o "preço" de um sacrifício qualquer, seja de animais
ou de seres humanos. A divindade local — bondosa e justa, mas enérgica
—, não permitiria, claro, tanta desgraça, se a comunidade não
a merecesse, certo? A justa ira dos deuses precisava ser apaziguada com um sacrifício
quantitativamente proporcional ao grau da culpa — verdadeira ou imaginada, individual
ou coletiva. "Bruxas" foram queimadas vivas porque, aparentemente
— difícil garantir o que se passava nos escaninhos da mente dos acusadores
e juízes — o espetáculo da fogueira satisfazia o anseio de punição
("justiça"?) da comunidade.
Não li os autos nem conheço todos os argumentos, de um lado e
outro, relacionados com o derramamento de 41 milhões de litros de óleo
do petroleiro Exxon Valdez, em 1989, na costa do Alasca, em área de vida
selvagem. Todavia, as fotos de aves, focas, lontras e animais aquáticos,
moribundos ou mortos, impregnados de petróleo — no derramamento citado
ou em qualquer outro desastre ecológico no mar —, comovem qualquer pessoa,
seja ela leiga ou profissional do Direito. E essa emoção certamente
terá o potencial de estimular a fixação de uma cifra ("castigo")
talvez impagável porque, ao lado do dano material o revoltado instinto
de justiça terá dificuldades no fixar um limite, se de milionário
a reputação econômica do causador do dano. Mesmo que, eventualmente
— reitero que não conheço todos os argumentos apresentados — a
proprietária do navio demonstrasse não haver culpa sua nem na
construção do petroleiro, nem na contratação do
comandante e tripulação — cabendo, portanto, apenas a indenização
pelos danos físicos — a instintiva sede de justiça, exaltada pelas
fotos e relatos, exigiria algo bem mais contundente e satisfatório que
os danos puramente materiais, mesmo se elevados.
Exageros vários — para mais e para menos — rondam essa algo recente
tendência norte-americana, com influência em vários países,
de se buscar, sempre, uma indenização por qualquer dano, grande
ou pequeno, material ou moral. Nos EUA, um país conhecido por sua exuberante
tendência à inovação, de uns anos para cá
cresceu enormemente a chamada indenização punitiva ( "punitive
or exemplary damages" ), freqüentemente traduzida, com certa imprecisão,
por "danos punitivos" (os danos não são punitivos; punitiva
é a indenização).
Como mera especulação, não é absurdo imaginar a
alegria que invadirá o coração de um cidadão americano
comum, atormentado com a falta de dinheiro — e poucos não o estão
—, ao saber que seu atropelador é um famoso astro do "show business",
acionista principal de uma grande corporação ou milionário
por qualquer outra causa. A dor da ferida, quando não excessiva, desaparecerá
quase instantaneamente, substituída por grande euforia. O acidente se
tornará a grande oportunidade de sua vida. Se não morrer, nem
ficar aleijado, com dolorosas seqüelas, o acidente será encarado
como intervenção divina, a tal "escrever direito com linhas
tortas". Se ateu, dirá que "há males que vêm para
bem".
Mesmo quando não alta a indenização por dano moral, vez
por outra a imprensa daquele país apressa-se a denunciar raras e esporádicas
decisões de primeira instância que afrontam o senso comum. Tais
denúncias como que alertam a nação para perigo latente
de algum juiz local valorizar estranha ou exageradamente o dano moral. Não
esquecer que, não havendo apelação, a aberração
se revestirá com o manto sagrado da coisa julgada, gerando um perigoso
precedente judicial — perigo muito menor no Brasil porque aqui a jurisprudência
não possui a força vinculante existente no direito anglo-americano.
Três casos que nos ocorrem neste momento, referidos na revista "Reader’s
Digest" (seção "It’s Outrageous!") mostram bem
o perigo do exagero. No primeiro, um ladrão penetrou numa residência
quando os moradores saíram de férias. Após escolher os
bens que lhe pareceram mais valiosos, dirigiu-se à garagem, talvez em
busca de um carro que pudesse transportar os objetos furtados. Ao penetrar nesse
recinto, a porta de acesso, com trinco só de um lado, fechou-se, prendendo
o ladrão. E o portão da garagem funcionava com controle remoto,
de modo que o marginal não tinha como sair. Ficou "aprisionado"
na garagem por oito dias. Só não passou fome nem sede porque nesse
local havia, por coincidência, alguns sacos de ração de
cachorro e um engradado de refrigerantes, salvo engano Pepsi-Cola. Quando os
moradores voltaram das férias, perceberam que a garagem havia se transformado
em ampla cela individual. Chamaram a polícia e o ladrão foi preso.
Não sei o que ocorreu com relação ao furto, ou sua tentativa,
mas o certo — e isso é que seria "ultrajante!" para o indignado
redator do artigo — é que o ladrão pediu indenização
pelo sofrimento moral de ter ficado oito dias comendo ração de
cachorro. E a indenização foi concedida na primeira instância.
Certamente o dono da casa apelou.
Outro caso, igualmente grotesco, foi o seguinte, relatado na mesma revista americana:
um cidadão entrou no seu automóvel sem olhar o que se passava
no outro lado do carro. Provavelmente apressado, ligou o motor e saiu rapidamente,
esmagando a mão de um ladrão que tentava roubar uma das rodas
traseiras. O marginal pediu indenização. O dono do carro teria,
por desatenção, imposto ao bandido uma "pena" cruel
e desumana, "inconstitucional", deixando-o parcialmente inutilizado
para o trabalho braçal.
Finalmente, um outro exemplo do desnorteamento que pode, por vezes, ocorrer
em matéria de uso e abuso da responsabilidade civil, foi o caso do cidadão
americano que soube estar com câncer do pulmão. Seu caso era gravíssimo,
sem nenhuma perspectiva de cura. Teria tantos meses de vida, mesmo submetendo-se
à quimioterapia. Foi o que disseram os médicos. Com base nessa
negra (e cientificamente correta) perspectiva, pediu demissão do emprego
e ficou aguardando o fim de seus dias, tratando-se com quimioterapia. Acontece
que, findo o prazo máximo prognosticado pelos médicos, o câncer
desaparecera. Estava curado. Um quase milagre quimioterápico. Aí,
com radical mudança de ânimo, o paciente processou o hospital exigindo
uma indenização. Isso porque, em razão do "erro"
do prognóstico de vida, pedira demissão, deixando de ganhar e
de progredir na firma. Os médicos teriam "errado", não
no diagnóstico, mas ao afirmar que ele morreria dentro de "x"
meses. E ele não morreu nesse prazo. Um erro, portanto, a exigir reparação.
O interessante é que, enquanto seu processo caminhava o câncer
retornou, passando o paciente a alegar que seu novo câncer fora provocado
pela quimioterapia.
Tais exemplos, colhidos na imprensa comum — o leitor deve ter lido casos semelhantes
—, são aqui mencionados apenas para ressaltar que a responsabilidade
civil tem uma base conceitual essencialmente movediça, a exigir contínuos
esforços dos estudiosos, legisladores e juízes, para que não
descambe em exageros de toda ordem. A propósito, a indústria farmacêutica
americana vinha há tempos solicitando ao governo George W. Bush providências
limitadoras do valor das indenização punitivas quando um remédio
apresenta efeitos colaterais perigosos longo tempo depois de lançado
no mercado. A indústria argumenta que se o medicamento foi testado e
aprovado segundo os órgãos de fiscalização americanos
— considerados rígidos ou pelo menos respeitáveis — não
seria justo que os imprevisíveis efeitos colaterais, surgidos anos depois,
ensejassem danos punitivos — "exemplary or punitive damages" —, fixados
em milhões de dólares, tendência cada vez mais comum nos
pedidos de indenização. E o governo Bush, sensível a tais
reclamos — embora pouco sensível a reclamos internacionais quanto ao
uso unilateral do poderio militar —, providenciou legislação transferindo
para a Justiça Federal as "class-actions" (ações
coletivas, ou populares), com pedidos indenizatórios acima de determinado
valor ( cinco milhões de dólares). O fundamento da reforma é
evitar a enorme variação de critérios, de Estado para Estado,
na fixação de danos morais e punitivos.
Argumentavam os laboratórios que os organismos variam de pessoa para
pessoa e que é impossível prever se um determinado medicamento,
provado como útil, causará algum prejudicial efeito colateral
em algumas pessoas, após alguns anos de uso ( note-se que o efeito colateral
também pode ser benéfico, como foi o caso da aspirina, inicialmente
apenas como analgésico e anti-térmico e agora também como
prevenção de enfarte). A se indenizar com milhões de dólares
cada caso desses, argumentavam os laboratórios, melhor seria que eles
fechassem suas portas, ou parassem de pesquisar novos remédios ( mal
maior), ou mudassem de país. Certamente, tais laboratórios não
se rebelam contra a obrigação de pagar aos prejudicados os danos
materiais e morais, mesmo surgidos anos depois do lançamento do produto
no mercado, porque se uma atividade dá lucro, quando dá prejuízo
esse deve ser indenizado. O que eles temem é o grande "fantasma"
da indústria americana: o dano punitivo, ou exemplar, por vezes verdadeiros
prêmios máximos de loteria.
A indústria do fumo tem ensejado pedidos de indenizações fabulosas. Alegam suas vítimas que foram enganadas pela propaganda, dizendo, por exemplo, que o cigarro "light" não era prejudicial, ou não viciava. Mesmo que isso tenha ocorrido, o censurável da indenização vultosa está apenas na quantificação, não na procedência da ação. Uma senhora americana que foi aquinhoada com indenização milionária, por estar com câncer do pulmão, decorrência do fumo, certamente terá pouco tempo de vida. Quem desfrutará da imensa fortuna que caiu do céu — ou melhor, do pulmão da mãe, avó ou tia — serão seus herdeiros, "premiados", eles e também seus respectivos herdeiros, com a dispensabilidade de trabalhar pelo resto da vida. Se a justiça americana pretende, eventualmente, com indenizações exageradas, extinguir a indústria do fumo, que pelo menos a sentença condenatória estabeleça que a maior parte do "punitive damage" seja encaminhada a entidades de pesquisa ou tratamento do câncer. As vítimas, ou seus herdeiros, nesse caso, receberiam apenas os danos materiais e morais, e pequena parte dos "punitive". Talvez a justiça americana não tenha como, legalmente, direcionar a hospitais ou centro de pesquisas os excessos financeiros aqui mencionados. De qualquer forma, causam estranheza, em outros países, esses exageros, fixados, preponderantemente, ao que sei, por jurados, pessoas leigas e empolgadas por "santa revolta" contra uma indústria que — inicialmente sem o saber — enraizou um hábito malsão. Pessoas que ingressaram no vício quando já difundidos seus maus efeitos provavelmente não acorrem, hoje, aos tribunais, em busca de indenização, a não ser alegando propaganda enganosa quanto ao cigarro "light".
É sabido que a justiça norte-americana, refletindo a mentalidade
prática daquele país, criou os "punitive damages" como
um mecanismo de dissuasão. Política judicial altamente elogiável
— ressalvados os exageros. A diretoria, por exemplo, de uma grande fábrica
de pequenas escadas de abrir, utilizadas por donas de casa, pode, visando diminuir
despesas, liberar sua produção sem o devido controle de qualidade.
Raciocinaria assim: "Por que gastar tanto com o controle de qualidade?
Se alguma dona de casa se machucar, por defeito da escada, pagarei as despesas
do hospital e os dias parados. Sairá, para nós, mais barato do
que testar cada uma das milhares de escadas que fabricamos".
Para desestimular esse egoísta cálculo de "custo/benefício"
a justiça americana condena o industrial do exemplo a pagar uma soma
("punitive damages") que excede o real prejuízo material e
mesmo moral da vítima (a dor e outros fenômenos subjetivos). A
condenação "punitiva" funciona como um alerta àquele
fabricante e aos demais fornecedores de bens e serviços. Convence-os
que mesmo sob o ângulo estritamente financeiro, é compensador gastar
com a qualidade e segurança do produto, antes da saída da fábrica.
Fica mais barato. Com isso, o judiciário americano se poupa de centenas
ou milhares de futuras ações individuais indenizatórias.
O "medo" de uma reprimenda financeira — superior ao dano individual
— previne inúmeros acidentes, beneficia o público e previne uma
sobrecarga dos tribunais. Uma política inteligente. O que não
é inteligente é o excesso.
A praticidade da justiça norte-americana — salvo mais recentes exageros
— lembra-nos, por vezes — e no melhor sentido possível —, os olhos do
camaleão, que funcionam autonomamente. Nesse lagarto, enquanto um olho
observa a presa, o outro inspeciona o ambiente, verificando se não há
algum predador nas imediações. Parece-nos — é uma impressão
toda pessoal, friso — que enquanto um olho da justiça daquele país
estuda atentamente o caso em si, o outro olho, preocupado com o possível
"predador" — o emperramento da justiça e dos negócios
—, gira em volta, verificando a repercussão que sua decisão provocará
no ambiente legal e econômico, estimulando ou desestimulando demandas
e comportamentos. Talvez porque o juiz, de certo modo, ao decidir, age como
um legislador, tendo em vista a força do precedente na "common law".
O que decidir quase certamente será seguido por outras decisões.
Esse outro "olho" — aquele que não está lendo os autos
— preocupa-se em evitar o congestionamento da justiça, fator muito nocivo
no que se refere à uma economia extremamente dinâmica e que não
pode ficar parada, aguardando sucessivos recursos, como ocorre em certos países
menos desenvolvidos. Se algumas poucas decisões, como as mencionadas
acima, exageraram na obrigatoriedade de indenizar os dois ladrões, certamente
o alerta foi disparado, despertando o sistema, tanto assim que tais sentenças
foram fustigadas pela imprensa. Se o americano típico, que já
gostava de demandar — filmes e livros sobre júris abundam naquele país
— passar a enxergar, no litígio por dano moral, quando vítima,
um caminho para o ganho fácil, logo os tribunais estarão inundados
com u’a massa de litígios muito superior à possibilidade de atendimento
— mesmo se parcialmente aliviados pela "justiça privada" das
ADRs ("alternative dispute resolutions").
Se a política judiciária americana não moderar — nas suas
decisões sobre o dano moral e o "punitive" —, a sede de lucros
de quase todo cidadão, é previsível o futuro desprestígio
da justiça daquele país. Primeiro, pela lentidão, pois
o computador ainda não pode ser nomeado juiz. Todo cidadão, em
vários momentos de sua vida, sente-se ofendido, ou melindrado, por ato
alheio, de pessoa física ou jurídica. Se eles procurarem os tribunais,
sob os mais frívolos pretextos, é de se imaginar o imenso congestionamento.
Ressalte-se que nos EUA não há sucumbência em honorários,
tática processual que restringe um pouco as ações temerárias
( nisso levamos vantagem sobre eles). A justiça brasileira foi desprestigiada
pela morosidade oriunda do recurso protelatório. A americana, se não
reagir, o será pela exagerada concessão de indenizações
a título de dano moral e punitivo. As grandes corporações
procurarão migrar, pelo menos parcialmente, para países com visão
mais modesta sobre o montante de tais danos.
Um ponto que merece reflexão e sobre o qual não temos ainda uma
opinião formada, por falta de informes confiáveis, é o
seguinte: quando os tribunais americanos impõem indenizações
milionárias ("punitive damages") em favor de fumantes, ou ex-fumantes,
qual será a real intenção dos juízes? Será
a de "indenizar", "castigar exemplarmente" ou forçar
o desaparecimento da indústria do fumo, que gera um vício prejudicial
à saúde e onera o governo com despesas de saúde pública?
Se esse for, eventualmente, um dos fundamentos das pesadas indenizações,
cabe a pergunta seguinte: será atribuição do Judiciário,
ou do Congresso, estabelecer políticas públicas de incentivo ou
de desaparecimento de determinadas atividades? Tenho para mim que cabe ao Congresso,
e não ao Judiciário — por mais bem intencionado que esteja — a
missão de abolir determinadas atividades. As presentes indagações,
todavia, ficarão no ar porque será sempre difícil avaliar
o quanto a intenção moral de apressar o desaparecimento de um
hábito prejudicial esteve presente numa decisão judicial. Uma
coisa, porém, é certa: se o Judiciário americano, como
um todo, decidir acabar com a indústria do cigarro, mediante indenizações
pesadíssimas, difícil será impedir que isso ocorra.
O crescimento dos processos relacionados com os "damages", em geral,
criou, naquele país, uma nomenclatura cada vez mais sofisticada. Basta
dar uma olhada na relação abaixo:
"Compensatory damages", ou "actual damages", que cobrem
danos, prejuízos, ofensas, ferimentos ou perdas econômicas, incluindo
despesas médicas, perda de salário e reparo ou substituição
de propriedade;
"General damages", que cobrem danos e ofensas nos quais uma quantidade
exata de dólares não pode ser calculada. Equivale ao nosso "dano
moral", abrangendo dor física e o sofrimento moral, e pode incluir
compensação por uma diminuição de expectativa de
vida, sofrimento pela perda de um companheiro/a, perda de reputação,
etc.
"Nominal damages", termo usado quando um juiz ou júri encontra,
de fato, alguma ofensa que a lei manda indenizar, mas entende que nenhum dano
sério foi provocado. Nesse caso, aplica uma condenação
simbólica, só para comprovar que a lei foi cumprida. Um caso muito
citado ocorreu quando um autor, Louis Adamic, escreveu que Winston Churchill
estava bêbado em um jantar na Casa Branca. A indenização
imposta foi de um "shilling", mais ou menos 25 cents. O juiz considerou
que houve, realmente, um ofensa, mas considerando o alto prestígio do
estadista inglês, a notícia não chegou a abalar a sua reputação.
"Punitive damages", ou "exemplary damages", quando o réu
agiu de má-fé, ou enorme desprezo pelo público ou vítima
em particular. Sobre isso já falamos.
"Special damages", como no caso de acidente automobilístico:
reparos no carro, despesas médicas, gastos com locação
de outro carro enquanto se aguarda o conserto do danificado, perda de salário
ou outras rendas relacionadas com a privação do automóvel,
etc. Seria o nosso equivalente dos danos materiais.
"Statutory damages", danos previstos em determinadas leis. Em alguns
Estados americanos a lei prevê que se o locador, terminada a locação,
não devolveu ao inquilino o depósito em garantia, sem fundamentar
devidamente o motivo da retenção, o juiz pode condenar o locador
a pagar o dobro ou triplo da quantia retida indevidamente.
"Treble damages", ou danos em triplo. Algumas leis dão ao juiz
o poder de conceder, à parte vencedora num processo, não só
o que esta perdeu com o procedimento do réu, mas também um acréscimo
de três vezes aquele montante.
Outras variantes dos "damages" poderiam ser ainda mencionadas, mas
a pequena relação acima já dá uma idéia do
desenvolvimento que atingiu o uso (ou abuso) da ação de responsabilidade
civil, individual ou coletiva, naquele país.
Quando escrevia este artigo, consultando vez por outra a Internet, deparei-me,
por acaso, com o site da "ATRA – American Tort Reform Association"
( "tort" significa dano, prejuízo) e fiquei surpreso com a
incandescência — é essa a palavra certa — que atingiu o debate
entre os adeptos do amplo uso da indenização punitiva e aqueles
atingidos por ela. Industriais, médicos e seguradoras, principalmente,
sentem-se acossados por uma febre indenizatória que os deixam extremamente
preocupados com o futuro. Por isso, reuniram-se, formaram "lobbies"
e lutam agressivamente para evitar o que chamam de um evidente abuso dos postulantes
e da própria justiça. A ira volta-se, obviamente, contra os advogados
especializados em indenizações (cada vez mais conhecedores das
minúcias dos procedimentos médicos e industriais,") e os
próprios juízes e júris, "propensos demais",
segundo eles, a punir firmas e médicos com indenizações
altas e injustas.
Espantosamente — para nós, brasileiros — a referida "ATRA"
publica, no seu site (www.atra.org), acessível a qualquer interessado,
uma espécie de "lista negra" dos condados e mesmo Estados inteiros
a seu ver benevolentes demais para com os postulantes de indenização
milionária. Rotula tais júris ou tribunais como "Judicial
Hellholes" ( ao pé da- letra "buracos do inferno judiciais";
menos literalmente "tribunais desprezíveis, de segunda categoria").
E dão "notas" anuais sobre a "decadência" desses
órgãos julgadores. No ano de 2004 figuraram na lista dos "Judicial
Hellholes" dois condados de Illinois, outro da Carolina do Sul, o inteiro
Estado da Virgínia Ocidental, um condado do Texas, uma "paróquia"
de Louisiana, o sul da Flórida, Filadélfia e Los Angeles. Em posição
um pouco menos atacada ("Dishonorable Mentions", menção
desonrosa, não exagero) figuram Oklahoma, a Corte Suprema de Utah, o
District of Columbia e a New México Appellate Courts. Finalmente, menciona
como em "Judicial Recovery", em "recuperação"
de prestígio, "pondo a mão na consciência", nesse
campo, o Estado do Mississippi.
Como só fiquei sabendo da furiosa polêmica americana dois dias
antes do prazo máximo para entregar o presente artigo à Revista
do IASP, e considerando que precisaria ler talvez centenas de páginas
da Internet para poder emitir um juízo pessoal sobre o polêmico
assunto, abstenho-me, no momento, de emitir um juízo. Fá-lo-ei,
com mais vagar, em outro espaço.
Posso adiantar, porém, que as acusações são pesadas.
As indústrias e médicos americanos alegam que as vítimas,
propriamente ditas, pouco recebem das polpudas indenizações, ficando
a maior parte do dinheiro com os advogados. Estes, segundo alguns ataques —
difícil de acreditar, no Brasil isso não acontece — dariam aos
clientes apenas os "tickets-refeição" entregues pela
ré como parte da indenização. As vítimas seriam
praticamente "usadas" por alguns advogados, que visam apenas enriquecer.
Como conseqüência da "chuva de dinheiro" a taxa de crescimento
dos advogados excede o crescimento populacional. E a proporção
de advogados, por Estado, varia conforme a liberalidade na concessão
de altas indenizações. "Personal injury litigations"
corresponde a cerca de 25% da carga de trabalho legal em muitos Estados, é
o que nos informa o referido site.
Alegam ainda as auto-intituladas vítimas da onda de indenizações
que o "sistema" não prejudica apenas os réus, geralmente
companhias de seguro (a utilização do seguro é muito difundida).
A seguradora, percebendo, à distância, os vagalhões indenizatórios,
cobrem-se do futuro prejuízo aumentando desmesuradamente o prêmio.
O médico, por exemplo, vê-se obrigado a trabalhar três ou
quatro meses, por ano, só para poder pagar o seguro de responsabilidade
civil. Ou recusa-se a fazer partos ( aconteceu no Texas), ou a praticar intervenções
cirúrgicas mais arriscadas. O industrial, ou prestador de serviço,
onerado com o prêmio alto que paga à seguradora, acrescenta ao
preço de seu produto o aumento do prêmio. Resultado: é toda
a comunidade que acaba sendo prejudicada, saqueada, por causa da ambição
de alguns profissionais do direito, cada vez em maior número. Os jovens
procuram a advocacia na ânsia de enriquecer.
A defesa dos advogados americanos, especializados nas ações indenizatórias.
Por sua vez, os advogados contra-argumentam dizendo que durante largo tempo, no passado, o povo sofreu nas mãos dos industriais e médicos descuidados. Realmente, a imprensa noticia inúmeros casos de descuido com a vida e integridade física de pacientes. Há até desdobramentos tragicômicos como o ocorrido em um determinado hospital, onde foi amputada a perna errada de um paciente (o que implica em perda das duas pernas, porque a outra precisaria, também, salvo engano verificado na última hora, ser amputada). Apurada a causa da falha, novos pacientes com necessidade de amputação entravam na sala de operações com um enorme aviso amarrado na perda boa. Dizia o aviso: "No!" E vários casos de negligência médica vão parar na justiça, mensalmente. Alegam os médicos que nenhum jornal noticia os milhares de operações bem sucedidas. E os erros, nas outras profissões, pouco são mencionados na imprensa.
É possível que o leitor esteja se perguntando: por que mencionar tanto os EUA em publicação destinada a profissionais brasileiros? A resposta é simples: porque o fenômeno pode se repetir em nosso país. Uma das poucas utilidades do Direito Comparado é tirar proveito dos "escorregões" de outros países. A mídia brasileira, com freqüência cada vez maior, menciona condenações de ações de indenização por dano moral com forte tempero "punitivo". Os valores finalmente concedidos, entretanto, costumam ser bem inferiores aos requeridos.
Danos materiais, morais e "punitivos". Conveniência da diferenciação no pedido e na sentença.
Cabe, agora, tecer algumas considerações sobre os tipos de indenização
aplicáveis a cada caso.
Com respeito à indenização por dano material, o cálculo
é fácil, e a subjetividade, mínima. Fotos, recibos de gastos,
prova oral e pericial, geralmente bastam para comprovar ou estimar o prejuízo
material com satisfatória aproximação da realidade. Por
sinal — vai aqui uma sugestão — não seria injusto que em todos
os casos de acidentes automobilísticos o autor pedisse uma quantia modesta
— quinhentos, mil ou mil e quinhentos reais, por exemplo — a título de
dano moral, para compensar os aborrecimentos inerentes a uma ação
de cobrança dos prejuízos. O próprio fato de se envolver
em um acidente, por culpa da outra parte, já justificaria um pequeno
acréscimo ao dano material. A perda de tempo, as discussões no
local, as pesquisas de orçamento nas oficinas, a necessidade de aconselhamento
jurídico, etc, justificariam a concessão de um dano moral mínimo,
mesmo que não havendo ferimentos graves.
Quanto aos danos morais e "punitivos" seria ideal que, tanto o autor,
na petição inicial, quanto o juiz, na sentença, discriminassem
expressamente as respectivas quantias, para que as instâncias superiores
pudessem trabalhar no caso com mais precisão. O dano moral seria aquele
correspondente à dor física ou moral, o acabrunhamento, o desestímulo,
a sensação de infelicidade que não dá para quantificar,
apenas estimar aproximadamente, e estimada também conforme a condição
social e econômica das partes envolvidas. Se o causador do dano é
pessoa física ou jurídica de avultado patrimônio, justo
será que pague, para um mesmo dano, bem mais que um outro causador do
dano de acanhado patrimônio. Não haveria nessa desigualdade de
quantias, uma "punição", mas mera proporcionalidade.
Seria ainda assim apenas "dano moral".
O "dano punitivo", ou "exemplar" distingue-se do "dano
moral" pela sua finalidade — o "outro olho" do metafórico
camaleão. Visa castigar e advertir, "no bolso", o causador
do dano que agiu com desprezo pelos seus semelhantes. Adverte que seu procedimento
é intolerável e que sofrerá financeiramente, no futuro,
se não for mais cuidadoso.
Há muita diferença, em casos de autoria de atropelamento, entre
um cidadão maduro, com vinte anos de carta de motorista — que nunca,
antes, atropelou ninguém e pouco foi multado no trânsito — e um
outro que, com cinco anos de carta, já atropelou várias pessoas
e tem um longo prontuário de multas, inclusive por guiar embriagado.
Este último, mesmo não sendo mais rico que o primeiro, obviamente
merece uma punição financeira maior, por ser mais perigoso. Pobre,
mas perigoso Aí teríamos a "indenização punitiva".
Nesse exemplo, o "velhote", fiel obediente às leis de trânsito,
mesmo sendo mais rico que o "atropelador serial", pagaria uma indenização
menor, por não lhe ser adequada a indenização punitiva,
tendo em vista que não é um "perigoso ao volante". O
dano moral, apenas moral, no seu caso, poderia ser eventualmente alto se o acidente,
— uma isolada e infeliz ocorrência — causasse na vítima dores atrozes
e outros sofrimentos subjetivos. Mesmo nesse caso sendo alta a indenização
do dano moral, esta não se confundiria com o "dano punitivo".
Essa discriminação do quanto corresponde ao dano moral e do quanto
corresponde ao dano punitivo facilitaria a análise nas instâncias
recursais.
Uma medida que ajudaria a diminuir exageros indenizatórios seria a obrigatoriedade
de o autor mencionar, na petição inicial, qual o valor que pretende
a título de dano moral e, eventualmente, punitivo. Tal providência
permitiria ao réu defender-se com mais conhecimento de causa. O réu,
citado, pode imaginar que o autor está pretendendo uma indenização
algo modesta. Defende-se levando em conta essa presunção e é
surpreendido com uma sentença de condenação milionária,
caso o julgador tenha fortes preconceitos sobre o tipo de conduta atribuído
ao réu. A condenação pode até surpreender o autor,
que não contava com tanta generosidade.
Surpreendido, o réu, com o alto valor da condenação, pode apelar, claro, mas, de certa forma, houve a supressão de uma instância de julgamento. O réu só ficou sabendo da força do raio que o fulminou quando encerrado o julgamento na primeira instância. Não pôde defender-se do raio antes dele cair. No céu havia apenas nuvens escuras. Uma coisa é saber que alguém quer uma condenação qualquer; outra, conhecer o peso específico dessa condenação. Embora a legislação processual vigente permita — segundo jurisprudência quase pacífica —, que o autor não mencione quantia específica a título de dano moral ou punitivo, a obrigatoriedade dessa menção, na inicial, obrigaria o autor a uma maior moderação, tendo em vista os riscos da sucumbência. Se ele pedir demais, na inicial, e receber menos na sentença, será sucumbente naquilo que perdeu.
A sucumbência, em honorários, por sinal, seria algo que poderíamos "exportar" para a prática americana de fazer justiça. Naquele país, ao que sei, não existe, formalmente, sucumbência (são 50 Estados, com específica legislação). O autor e seu advogado convencionam entre eles os honorários, se procedente a ação. O advogado assume o risco financeiro da demanda. Em compensação, ficará com entre trinta e quarenta por cento da condenação. Tal sistemática estimula a busca de indenizações milionárias, por parte do autor. Este não tem nada a perder, pois não gastou com custas, pagas por seu advogado, e, caso improcedente a ação não será afetado pelo ônus da sucumbência. Houvesse, sempre, a condenação em honorários, com base no pedido inicial, os advogados americanos e seus clientes não se arriscariam tanto.
Um aspecto interessante nos pedidos de dano moral é o relacionado com o número de pessoas que acodem aos tribunais, em razão do mesmo fato. Por vezes, um irmão da vítima, solteira, falecida em acidente, entra na justiça, é bem sucedido e recebe uma indenização pelo dano moral. Outros parentes, talvez financeiramente enciumados, sabendo do sucesso da ação, entram com ações próprias, alegando as mesmas dores morais oriundas do falecimento. Nesses casos, a justiça brasileira, sabiamente, tem indeferido a tardia manifestação de dor dos parentes do falecido, conforme se vê na Apelação sumária 814.738-4, da 6a Câmara do 1º TACivSP, RT-772/253 e RT-772/255 (jurisprudência obtida no ótimo livro "Dano Moral", de Humberto Theodoro Júnior). A jurisprudência tem entendido que a indenização concedida nesses casos tem um caráter familiar, ou grupal, quando vários parentes ajuízam as respectivas ações. O juiz, na sentença, pode discriminar o que cabe ao eventual cônjuge e aos demais parentes da vítima, quando todos eles buscam, simultaneamente, a indenização pela dor moral.
A absolvição criminal autoriza a indenização pelo Estado?
Uma hipótese que pode despertar a cobiça indenizatória, na área de danos morais, está na de absolvição de réus que estiveram detidos por algum tempo, quer em flagrante, quer em razão de prisão preventiva ou pronúncia. Se, nesses casos, houvesse obrigação do Estado em indenizar o absolvido — só por ter sido absolvido —, seria um nunca acabar de indenizações, mesmo de empedernidos criminosos. A absolvição não implica em garantia da inocência. O "in dúbio pro reo" já devolveu à rua muitos infratores. A prescrição, idem. Nossa jurisprudência, salutarmente, só manda indenizar o réu absolvido quando comprovado que houve deliberada má-fé das autoridades na condução do inquérito ou processo, com supressão ou manipulação de provas. Se, pela leitura dos depoimentos no auto de prisão em flagrante verifica-se que havia razoável prova da ocorrência do delito, não há porque conceder, depois, findo o processo com a absolvição, a indenização por dano moral. Seria o cúmulo que o réu, após cometer um crime fossem ainda premiado com uma indenização do Estado só porque as testemunhas de acusação faleceram ou desapareceram (talvez com medo dele) antes de depor em juízo. A visão jurisprudencial mais restritiva, já prevalecente, é, no caso, elogiável.
Danos morais relacionados com a indústria do turismo têm sido bem reprimidos. Do contrário, as agências prometeriam uma coisa e forneceriam outra, bem inferior. Caso pitoresco, relacionado com o dano moral nesse serviço, está na ação movida por um casal que decidiu fazer uma viagem marítima no Caribe. Somente em alto mar o casal percebeu que o navio havia sido fretado por um ou mais grupos "gay". Tendo em vista a livre expansão de comportamento ( antes reprimido) de muitos elementos dessa minoria, o casal viu-se forçado a trancar-se no camarote, pouco saindo para as refeições e ainda menos desfrutando do passeio, assustado com as manifestações amorosas. O casal entrou na justiça e a agência de viagens foi obrigada a devolver o que cobrara. Como a notícia saiu na imprensa não especializada, desobrigada de fornecer maiores detalhes, fica aqui apenas a menção do fato, a demonstrar que a responsabilidade permeia nossas vidas e é, pode-se dizer, a raiz de todos os Direitos.
Um campo novo da responsabilidade civil, pouco mencionado na jurisprudência,
mas que precisa, por exceção, ser incentivado está na possibilidade
do cônjuge — ou ex-cônjuge, principalmente —, ser responsabilizado
civilmente quando, invocando injúrias e traições passadas,
ofende em público o ex-companheiro, por simples ciúme ou por amor
não mais correspondido. E o mesmo aplica-se às uniões estáveis
desfeitas. De modo geral, o "desprezado" sente-se no direito de mover
estridente campanha difamatória contra a ex-companheira, ou vice-versa.
E o rancor chega ao desdobramento físico, com esposas ou ex-esposas arrebentando,
a marteladas, o carro do marido, ou ex-marido, ou o da nova companheira deste.
A polícia, nesses casos, evita interferir seriamente alegando que "em
briga de marido e mulher não se deve meter a colher".
Outras vezes é o homem que, atacado de amnésia seletiva, esquecidos
das próprias falhas, passa a perseguir, enciumado, a ex-esposa, ainda
atraente, atormentando-a no ambiente de trabalho e ameaçando eventuais
pretendentes. Simplesmente não aceita o que manda a lei de seu país.
Na cabeça dele, "aquela mulher foi minha e assim permanecerá!"
Mas, se a mulher exigisse, na justiça cível, uma indenização
moral (financeira) a consideração econômica esfriaria consideravelmente
os arreganhos machistas, principalmente se o juiz concedesse, liminarmente,
um desconto provisório em seu salário. Da mesma forma, se a mulher
— em processo de separação, ou já separada —, perceber
que sua conduta escandalosa poderá reduzir o montante da pensão
que recebe ou receberá — pode diminuir, não tendo bens próprios,
executáveis, quando condenada por dano moral — essa reflexão a
levará a um comportamento mais cauteloso, evitando aquilo que o povo
chama de "baixaria".
A jurisprudência não tem visto com liberalidade algumas tentativas
de busca de indenização por dano moral por parte de cônjuges
ou ex-cônjuges, por entender que ofensas recíprocas, nesses casos,
devem se vistas sob o ângulo do Direito de Família. É natural
que o dilaceramento da união conjugal seja traumático. Os cônjuges
se exaltam. O amor de transforma e ódio e dificilmente os cônjuges
se separam num clima tranqüilo. É justo que se encare com certa
tolerância algumas batalhas conjugais, principalmente quando as ofensas
ocorrem na fase de separação. Mas, encerrado o processo, ou mesmo
ainda não encerrado, se a agressividade desborda o tolerável,
a tolerância estimulando a impunidade, não há porque não
aplicar o contra estímulo da reprimenda financeira, o dano moral, para
esfriar o ânimo excessivamente agressivo. E a jurisprudência tem
aceitado coibir os exageros, tais como o desfiguramento da mulher, por ácido
ou fogo, ou agressões que a deixaram total ou parcialmente paralisada.
Mas decisões punindo o simples escândalo deliberado, a "gritaria"
na frente da firma onde trabalho o outro cônjuge, ainda não vi
— pode ser que existam. É previsível que um certo "endurecimento"
do judiciário contra evidentes exageros escandalosos (há algum
cálculo teatral no procedimento), mesmo de parte do cônjuge inocente,
terá um efeito civilizador na área social. No julgamento de qualquer
caso, não é muito difícil distinguir a intenção
de humilhar — em público ou em particular — da reação espontânea
, imediata, de um cônjuge ferido na sua confiança. "Baixarias",
mesmo de origem sentimental, deveriam ser reduzidas a um mínimo, graças
aos tribunais.
Com respeito à injúria, calúnia ou difamação
pela imprensa, nossa jurisprudência já suplantou o entendimento
de que a condenação financeira máxima, a título
de indenização, seria a prevista na Lei de Imprensa, de 1967,
já defasada. Permitir uma indenização baixa, conforme essa
lei, para punir a leviandade ou a deliberada vontade de prejudicar a honra alheia
equivaleria à prática daquele abonado cidadão romano —
não me ocorre, agora, seu nome — que passeava pelas ruas de Roma antiga
acompanhado de um secretário. Este carregava uma bolsa com dinheiro.
Como cada bofetão era punível com uma indenização
fixa, referido cidadão esbofeteava quem lhe dava na veneta e mandava
o secretário pagar, no ato, o "dano moral" do esbofeteado,
livrando-se de qualquer outra conseqüência. No caso da imprensa,
nos dias de hoje, um bom falso escândalo, com grande venda de exemplares,
seria altamente compensador, mesmo pagando, o jornal, as indenizações
previstas na referida lei.
Um aspecto da Lei de Imprensa que ainda provoca preocupação é
saber se o dano patrimonial oriundo da ofensa moral deve ser suportado pela
empresa ( jornal ou revista) ou pelo autor do artigo difamatório ou calunioso.
A Lei de Imprensa diz que é a empresa que responde, com direito de regresso
contra seu articulista. E tal entendimento tem prevalecido, tendo em vista a
redação da lei. Todavia, tal orientação pode, por
vezes, estimular e garantir a impunidade, quando o jornal ou revista não
tem patrimônio suficiente para uma indenização mais elevada.
Um jornal do interior, sem qualquer patrimônio, ou muito endividado, pode
servir de via impune de difamação, mesmo que o articulista seja
pessoa abonada, em condições de pagar a condenação.
Deveria, a lei ou a jurisprudência, determinar que tanto o proprietário
do jornal quanto seu articulista fossem citados, procedendo-se a execução
inicialmente contra a empresa. Se esta, porém, não tivesse bens
suficientes para a execução, esta prosseguiria, no que faltasse,
sobre os bens do articulista. Somente assim se atenderiam os dois interesses
a se preservar na imprensa: informar (sem medo excessivo de publicar algum eventual
erro) e indenizar quando há patente vontade de prejudicar, ou indesculpável
leviandade.
Finalmente, quanto à possibilidade de dano moral contra pessoas jurídicas — problema já suplantado pela jurisprudência —, é impossível não perceber a sua pertinência. Se, de fato, um ser moral, abstrato, como a personalidade jurídica, não tem um "cérebro" que possa sentir um sofrimento psíquico, tem-no as pessoas que nela trabalham. A difamação de uma empresa acaba se refletindo nas pessoas que a dirigem, ou são titulares das quotas ou ações. E os danos econômicos oriundos da desmoralização não tardarão a aparecer no patrimônio das pessoas que nela trabalham. Muitas perderão o emprego, pela redução da atividade. O Direito não poderia desprezar essa realidade, apegando-se apenas a conceitos metafísicos sobre o que seja a "realidade" da pessoa jurídica. O Direito tem por missão regular conflitos de interesses e não solucionar charadas filosóficas.
A responsabilidade do advogado perante o cliente.
A presente dissertação está muito longe de abranger o vasto campo da responsabilidade civil, uma área de infinitos desdobramentos. Seria impossível, em um artigo, abordar todos os itens que acompanham o tema. No caso da responsabilidade do advogado perante o cliente — preocupação relativamente nova mas verdadeiro "campo minado" em razão da própria natureza complexa da advocacia — é recomendável a leitura do excelente artigo do Dr. Elias Farah, publicado nesta Revista do IASP, n. 13, janeiro-junho de 2004, pág. 181 e seguintes. De forma concisa e didática, o prestigiado articulista aborda as inúmeras facetas de um problema já antigo mas só agora rodeado de concretos perigos financeiros para a operosa, difícil e por vezes injustiçada categoria profissional.
No Direito Penal o infrator responde para o Estado, não para
a vítima. Numa tentativa de homicídio contra pessoa dormindo,
com disparos de arma de fogo munida de silenciador, as balas podem não
atingir a vítima, e nem mesmo assustá-la, por sequer ter ouvido
os disparos. No entanto, o infrator será processado pelo Estado, por
tentativa de homicídio, mesmo não sofrendo o alvo qualquer dano.
Lesada foi a comunidade. Na responsabilidade civil exige-se sempre um dano qualquer,
físico ou psíquico, sofrido por uma vítima. E como o homem
vive em sociedade, com inevitáveis atritos, quase todo litígio
cível poderia ser rotulado, genericamente, e sem absurdo, como uma particular
forma de responsabilidade civil. Quem, por exemplo, não paga um título
de crédito, causa um dano, merecendo uma "indenização",
o pagamento, com seus acréscimos legais.
A responsabilidade civil permanecerá como uma fonte de desafios para
o jurista, tal a multiplicidade de fatores que compõem a estimativa do
prejuízo sofrido por um ser humano, esta entidade de imprevisíveis
facetas. Mas a sobrevivência e o prestígio desse instituto dependem
muito da honestidade intelectual daqueles que a invocam como base de seu direito.
Francisco César Pinheiro Rodríguez
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