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Contrato consigo mesmo (página 2)

Gisele Leite O Estado de Direito e, particularmente o democrático depende

 

Na representação voluntária, os poderes do representante devem conter-se nas lindes da outorga recebida, distinguindo-se da representação legal que autorizam o representante agir em nome do representado ( como por exemplo a representação do filho menor pelo seu pai, do pupilo por seu tutor) faltando-lhe, em princípio o poder de disposição patrimonial.
Na linha dos efeitos da representação adverte o grande Caio Mário que cabe o exame da autocontratação onde se figura o representante celebrar negócio consigo mesmo, procedendo como representante de outrem.
Por outro lado, contra a autocontratação se alinham várias razões, quer de ordem prática, quer de ordem teórica e, ainda de ordem ética. O primeiro óbice é a diversidade de interesses que é fato natural, corriqueiro e normal no negócio jurídico bilateral.
Na ordem teórica, a objeção fulcra-se na falta de duas vontades distintas que é requisito essencial a formação do contrato. Já, na ordem ética, há a tentação do representante vir a sobrepor seus próprios interesses, aos interesses do representado, sacrificando-o.
Por tais razões, a nova sistemática presente no Código Civil de 2002 em princípio veda a autocontratação ou o contrato consigo mesmo. O representante deve proceder, ao contratar, em proveito do representado.
Se celebra consigo mesmo o negócio jurídico para o qual foi investido de poderes está traindo o representado e, daí, justifica-se que tal negócio é passível de anulação.
E, vide bem que não é negócio nulo de pleno direito, porque deixa a critério do interessado (representado) atacá-lo ou simplesmente mantê-lo.
No entanto, casos há que a autocontratação é lícita, é quando a lei o permitir e, quando for autorizada pelo representado. Sendo que nesse último caso, o ato negocial advém de manifestação de duas vontades, a do representante e a do representado, contida expressamente na autorização.
Caio Mário ainda é perspicaz ao ensinar que o negócio jurídico celebrado consigo mesmo não é ato unilateral. É bilateral, uma vez que nele estão presentes duas declarações de vontade.
O parágrafo único do art. 117 do Código Civil Brasileiro de 2002 espelha a mesma condenação ao ato, quando o representante transfere a outrem os poderes parta figurar no ato, como fosse o representado, e nele comparece pessoalmente, como se tratasse de outra parte.
O negócio jurídico resultante contém, portanto dupla emissão volitiva apenas formalmente, pois na essência, o representante comparece e, na pessoa do terceiro, em quem sub-roga os poderes recebidos.
A alusão ao substabelecimento pontifica Caio Mário contida no parágrafo do art. 117 CC pode dar a impressão desta proibição implica somente à representação convencional. Mas, em verdade, aplica-se também à representação legal.
Parece ser melhor a solução que o representante sem abdicar da representação (seja a convencional ou a legal), ou pedir sua substituição ou designação de outro, especificamente, para aquele negócio. Presume-se a má fé se vem a omitir o conflito de interesses existente.
Realizado o ato negocial, dentro desse conflito de interesses, é anulável, caso o terceiro tendo conhecimento do fato, a vista da comunicação do representante, ou por outras vias, seja no de convencerem as circunstâncias de que ele não o ignorava.
Para a segurança da vida negocial, a anulação deve ocorrer respeitado o prazo decadencial de seis meses a contar da conclusão do negócio jurídico ou da cessação da incapacidade (art. 119, parágrafo único do C. C.).
De qualquer maneira a autocontratação terá que respeitar a função social do contrato e, ainda a boa fé objetiva já prescrita e consagrada no novo codex.
Ainda na vigência do velhusco código civil de 1916, afirmava-se expressamente que não seria eficaz a cláusula de mandato em que houvesse oposição de interesses entre o representante e o representado. E, nesse sentido opinaram os tribunais superiores brasileiros, em diversas oportunidades, nulificando a cláusula mandatária cambial. Culminando na Súmula no. 60 de 1992 do STJ que aduz; "É nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário vinculado ao mutuante, no exclusivo interesse deste."
O autocontrato é legitimado na hipótese do representado expressamente o permitir. E a cláusula mandatária cambial não excepciona tal regra. No que tange a cláusula –mandato muito usual nos contratos de cartão de crédito, não é pacífica a douta jurisprudência. Apesar de que seguindo os termos da Súmula 60 do STJ, tal cláusula é nula pois desvirtua o contrato de mandato, que pressupõe a inexistência de conflitos entre o mandante e o mandatário.
Embora haja jurisprudência que entenda que a incorporação da cláusula-mandato nos contratos financeiros é usual e tem por fim proteger o credor do devedor recalcitrante, possibilitando ao primeiro fazer uso da ação de execução.
Em sentido oposto à cláusula mandatária cambial, o mandato em causa própria permite em sua substância o autocontrato. E no conceito lavrado por Francisco Amaral, a procuração em causa própria seria espécie em que se outorgam poderes ao procurador para administrar certo negócio, como coisa sua, em seu próprio interesse, por exemplo, a conferida ao credor para vender um bem ao representado e pagar-se com o preço da venda.
Maria Helena Diniz leciona que a conseqüência jurídica do substabelecimento, em caso de representação voluntária, obterá indiretamente o contrato consigo mesmo,. É preciso esclarecer, adverte a doutrinadora que o poder de representação legal é insuscetível de substabelecimento. Assim, os pais, curadores, tutores não podem substabelecer os poderes que possuem em virtude da lei.
Havendo pois conflito de interesses entre representado e representante, os atos negociais carecerão para serem válidos, de serem celebrados por curador especial ( art. 1.692 do C.C.).
Pablo Stolze, ilustre baiano aponta como razoável a conclusão de Venosa: "Podemos concluir com Messineo acerca da admissibilidade do autocontrato. Em primeiro lugar, deve ser considerado que o representado é o melhor juiz de seu próprio interesse. Se, consciente das circunstâncias do fato, autorizou o representante a contratar consigo, o negócio é válido. No entanto, cumpre não só que exista uma autorização prévia, mas que tenha sido dada de forma específica ao negócio jurídico concluído. Se a autorização for genérica, temos de examinar se houve conflito de interesses, se, caso fosse o negócio concluído com terceiro, a situação teria sido a mesma. Em segundo lugar, deve ter tido como válido o autocontrato, se o titular do direito predeterminou o conteúdo do negócio no mandato, com tais minúcias e com cautelas de molde a permitir o conflito de interesses com o representante. Nesse, último caso, torna-se indiferente para o representado a pessoa do outro contratante. Também não podemos definir como anulável o autocontrato, se o titular do direito o aceito, por meio de aprovação posterior".
Pesquisando a jurisprudência lusitana a respeito, in verbis:
Acórdão TRL 4916/2006-7
"Acerca da figura contratual do negócio consigo mesmo recorrida, faremos um rápido excurso na doutrina e jurisprudência.
Numa definição abrangente, diremos que na formação dos contratos consigo mesmo intervém um só sujeito que age simultaneamente na qualidade de parte e na qualidade de representante da outra parte, ou, age na qualidade de representante de todas as partes, isto quer os poderes lhe advenham de representação voluntária, legal ou orgânica (1). ".-Vaz Serra Contrato Consigo Mesmo, RLJ, ano 91º, nº31229 e seg.
O negócio celebrado pelo representante consigo mesmo (negotium a semet ipso), tanto em nome próprio como em nome alheio (em representação de terceiro), é anulável, a não ser que, o representado tenha especificamente consentido na celebração, ou que o negócio exclua, por sua natureza, a possibilidade de um conflito de interesses – n.º 1 do art.º 261 do C.Civil Português.
Trata-se de uma manifestação clara de dupla representação, no sentido da celebração de negócio mediante a isolada intervenção do representante de duas terceiras pessoas, distintas dele próprio, o que, à partida, como já se salientou, possibilitaria a fragilização de uma das partes, atendendo ao presumível conflito de interesses, naturalmente, suscitado entre os mandantes. O contrato consigo mesmo desempenha, na verdade, uma figura de relevo para a consideração de conflitos de interesses em resultado da atribuição dos poderes de representação."
Que consolida a mesma posição positivada em nosso vigente Código Civil Brasileiro. Sinceramente espero que o resumido artigo tenha trazido maiores esclarecimentos do que perplexidades sobre o tema.

Referências
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Gisele Leite

professoragiseleleite[arroba]yahoo.com.br



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