Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
Essa defesa possibilita a reorganização do aparelho político do Estado que passa a exercer papel fundamental na execução do projeto de desenvolvimento do capitalismo no Brasil. A intervenção crescente do Estado na economia efetiva-se
tomando uma série de iniciativas de proteção ao setor industrial, concedendo privilégios especiais quanto a política fiscal e de crédito, ao estímulo à produção, às garantias de comercialização, a formação de capitais através de confisco cambial, etc., com o objetivo de impulsionar a ampliação da produção industrial. Tais privilégios são criados contra os interesses dos produtores rurais, completamente afetados pelas iniciativas governamentais em benefício dos setores detentores do capital industrial. Em momento de crises econômicas e políticas, embora o Estado tome medidas de favorecimento ao setor agrário (garantias de preços de café, compra de excedentes, etc.), estas iniciativas visam apenas poupar a posição do Estado em relação à balança comercial necessária à expansão da importação de máquinas e de tecnologias indispensáveis ao desenvolvimento industrial (RODRIGUES, 1987: 30,31).
Há de ressaltar que essa proteção só foi viabilizada por causa da coalizão de classes atreladas à produção industrial (burguesia industrial, pequena burguesia, provenientes do setor de serviços, e o proletariado). Para Warde,
No período que durou a implantação e consolidação da industrialização – 1930 e 1961 – com o intuito de substituir a importação, as classes sociais ligadas à produção industrial, ao setor de serviços e à burocracia estabeleceram entre si uma aliança que possibilitou o acobertamento da contradição entre o capital e o trabalho, e garantiu a "paz social" disseminada pela burguesia, através de seus representantes no governo (WARDE, 1979: 65).
Pode-se afirmar que o propósito da aliança foi sustentar o desenvolvimento industrial e rechaçar todas as investidas da oligarquia rural. Assim, o Estado é impulsionado pelas classes defensoras do capitalismo industrial a intervir na produção, tanto pela necessidade de oferecer as condições básicas de infra-estrutura, quanto para apressar a acumulação inicial do capital, financiando projetos, transferindo recurso dos setores não privilegiados do sistema, disciplinando o trabalho e promovendo a formação de recursos humanos. Por outro lado, o Estado se apresenta "acima dos interesses de classe"; age como harmonizador dos interesses divergentes e antagônicos de classes; procura aviltar as divergências dentro do próprio pacto firmado entre as classes representantes do modo de produção do capital industrial.
Todavia, as contradições do próprio capitalismo impulsionaram a explosão dos interesses antagônicos de classe no período de 61 – 63, quando as classes subalternas, na medida em que adquiriram consciência de classe, ameaçaram o pacto populista, forçando a reorientação do poder político. Verifica-se, em tal caso, que as instituições apresentaram fissuras que impediram a continuidade da política econômica. Dá-se, logo, uma crise política, cuja solução apela para a autocracia, que tem como objetivo redirecionar o Estado como agente do processo de acumulação e expansão do capital, passando, em especial, a favorecer o capital multinacional.
Dessa maneira, em 64, o Estado assume a função de manter a "segurança do capital", isto é, a "paz social", o "domínio" de movimentos contestatórios e da organização de associações de classe. Essa segurança se diversifica tanto na coerção, força repressiva, como na expansão de serviços sob a responsabilidade do Estado, que tenta manter o nível de expectativas das camadas trabalhadoras suficientemente sob controle. Tais iniciativas recairão na área das políticas públicas, desde a política salarial, até a social, educacional, previdenciária e habitacional.
Percebemos que a implementação do capitalismo industrial no Brasil, a partir de 1930, determinou uma nova organização das relações sociais, econômicas, políticas, culturais e, também, mudanças estruturais, como a ampliação do papel do Estado e, depois, do capital multinacional, estabelecendo, este último, a relação dependente do capital nacional ao capitalismo mundial. Por conseguinte, determinou o surgimento de novas exigências educacionais. As transformações introduzidas nas relações de produção e a concentração cada vez mais ampla de população em centros urbanos tornaram fundamentais novos requerimentos de qualificação para o trabalho; do mesmo modo, de oferecer instruções básicas à população, pela necessidade do consumo que essa produção requer. Portanto, as exigências do novo modo de produção e de consumo ocasionaram modificações profundas na forma de conceber a educação, tendo o Estado como o principal fomentador das políticas educacionais. Isto se observa, segundo Neidson Rodrigues,
nas propostas em relação a reforma da educação brasileira, a partir de 1930. Sucessivamente, a luta pela Escola Nova, a escola industrial e profissionalizante (SENAI, SESI, em 1942), a reforma de Capanema (1942), a primeira Lei de Diretrizes e Base (1961) e a Reforma do Ensino Superior (1968) e de 1° e 2° graus (1971), até a institucionalização do Mobral (1967), têm procurado realizar o ajustamento da escola para a efetuação das funções caracterizadas como necessidades do modelo de desenvolvimento implantado (RODRIGUES, Op. cit. p. 48).
Contudo, essas reformas tiveram caráter político-ideológico, assumindo, no campo educacional, características contraditórias, antagônicas, uma vez que o "sistema" de ensino passou a sofrer, de um lado, a pressão popular para sua expansão, que era cada vez mais crescente, por conta das necessidades sociais advindas do desenvolvimento das relações capitalistas; do outro lado, o controle das elites, mantidas ou representadas no poder, que buscavam conter a ação popular, utilizando, principalmente, mecanismos sustentados na legislação do ensino, para manter o ensino eminentemente elitizante. O que se verificou a partir daí, foi o fato de que o crescimento do ensino ter-se firmado em uma proposta não sistêmica de educação, não visando a uma proposição do ensino enquanto sistema. O Estado atuava mais com o intuito de atender às pressões do momento do que propriamente com vistas a uma política nacional de educação.
Com a constituição de 1946 (no período da chamada etapa educacional populista: 1946-1960), surge a necessidade de elaboração de leis e diretrizes para o ensino. Começa a longa gestação da lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que só seria sancionada em 1961. Esta lei visava a substituir a Reforma Capanema de 1942. Em 1948, o Ministro Clemente Mariani encaminha o primeiro Projeto-de-Lei que propõe a extensão da rede escolar gratuita até o secundário e cria a equivalência dos cursos de nível médio, mediante prova de adaptação. Este anteprojeto correspondia, em seu cerne, à Constituição, alusivo aos direitos à educação. Apresentava a obrigatoriedade e gratuidade do ensino primário e gratuidade da escola pública em seus vários níveis de ensino; de igual modo, colocava as obrigações e responsabilidades do Estado relativos ao sistema de ensino. Mas, este projeto foi engavetado. Surge, então, em 15 de janeiro de 1959, o projeto-de-lei chamado de "Substitutivo Lacerda". Propunha, entre outras coisas, que a sociedade civil assumisse o controle da educação, defendendo, à vista disso, uma das formas de privatização do ensino: a educação seria financiada pelo Estado, pelo setor público, porém vinculando a responsabilidade do financiamento estatal para entidades privadas; uma forma de delegação do financiamento público aos usuários do sistema, cuja prestação de ensino caberia às instituições privadas. Para isso, argumentava e alegava-se a chamada "liberdade de ensino".
Em verdade, com a discussão da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, durante o longo período que se compreende de 1946 a 1961, constata-se uma disputa de duas propostas de LDB, que traduz a relação paradoxal e contraditória no âmbito político-econômico, cujo embate acontece entre o grupo que defendia o nacionalismo desenvolvimentista, o Estado sendo o carro-chefe no planejamento da economia estratégica para o desenvolvimento do mercado nacional, sem a dependência asfixiante do capital externo, e o outro grupo que sustentava a tese da iniciativa privada como mecanismo de gerir a economia e a educação institucionalizada, objetando qualquer intervenção normatizadora e fiscalizadora do Estado tanto na área econômica, como na educacional.
A forte influência do grupo que resguarda a idéia da "liberdade de ensino" (ou a justificativa da iniciativa privada) sobrepuja na LDB, o que expressa na defesa absoluta dos direitos que a família encerra e compreende atinentes à escolha da educação que lhe apraz. Esta colocação está exatamente em contraposição à ingerência estatal para projetar e planificar o sistema de ensino, deixando implícita que é uma ação assaz totalitária. Indubitavelmente, tal ação procura circunscrever na LDB a prerrogativa e interesses das instituições privadas de ensino, particularmente as católicas, na obtenção do financiamento do poder público em educação.
No mencionado substitutivo do deputado Lacerda, podemos dizer que a discussão sobre "a liberdade de ensino", com bases inteiramente privatistas, foi o conteúdo preponderante abrangido no mesmo. Segundo Romanelli, os artigos fulcrais, o 3º, o 4º e o 5º, deste projeto, se constituem como um silogismo, sendo os dois primeiros artigos 3] apresentados como premissas, e o último4] como conclusão:
Os dois primeiros foram capciosamente prepostos, como num sofisma, para que o último pudesse ser enunciado conclusivamente. Como se vê, o centro do interesse não estava no direito da família, mas na reivindicação de recursos que se fazia em favor desta ao Estado para beneficiar a iniciativa privada antes mesmo que ao ensino oficial (ROMANELLI, Op. cit. p. 174).
Nos artigos 6º e 7º [5], evidencia que o princípio dos direitos familiares torna-se a referência argumentativa para fundamentar a tese da liberdade de ensino, sustentando os interesses das lideranças conservadoras representantes, sobretudo, da Igreja Católica. Demonstra uma investida, de forma escusa, contra o açambarcamento do ensino exercido pelo Estado. Vindica condições isonômicas tanto para o ensino privado, como para o público. Fica patente que este substitutivo intenta terminantemente advogar e escudar os apanágios da iniciativa privada, definhando e deteriorando, em contrapartida, a oferta de escola pública e gratuita, que a impossibilitaria, pois, de estar a serviço das camadas populares e, ainda, de concorrer com as instituições particulares de ensino.
Para garantir e concretizar as prerrogativas absolutas da iniciativa privada, o substitutivo incumbe-se de salvaguardar a representação da mesma no Conselho Nacional de Educação e nos Conselhos Regionais, pois estes órgãos de direção de ensino seriam as instâncias responsáveis pela normatização e coordenação de recursos. Nesse sentido, Romanelli nos mostra dois aspectos emblemáticos da defesa imperiosa do ensino privado nas letras do substitutivo.
O primeiro deles é a de que ao ensino secundário, área de prioridade e preferência da iniciativa privada, o anteprojeto consagrava 15 artigos, enquanto, para o ensino superior, apenas 3, ainda assim com um deles consagrado ao reconhecimento das Universidades particulares, para o que estipulava, como única condição, o voto favorável de dois terços dos membros do Conselho Nacional de Educação. O segundo é a de que igualmente 15 artigos foram dedicados ao título – "Recursos para Educação", e todos, sem exceção, regulamentando a forma como o Estado deveria proceder para destinar fundos a estabelecimentos de ensino particular. Nenhum portanto era dedicado a prever como o Estado conseguiria esses recursos, nem como os aplicaria na expansão da rede de ensino oficial, a fim de atender às necessidades do país. Os artigos 70, 71 e 79 podem dar bem uma dimensão de tamanho despautério (Grifo meu. ROMANELLI, Op. cit. p. 175). [6]
A reação a este anteprojeto foi imediata, partindo de intelectuais e educadores, que culminou, em 1959, com o manifesto dos educadores. Era a segunda grande campanha nacional em defesa do ensino público e gratuito. Não obstante, apesar desse levante, o texto final da primeira LDB, apresentado no Congresso em dezembro de 1961, manteve praticamente na íntegra o substitutivo Lacerda, representando um certo triunfo do setor privado, garantindo-lhe o direito de ser financiado pelo Estado.
A sério, percebe-se, principalmente no período de 1946 e 1961, um grande embate político-ideológico acirrado de um lado por educadores, intelectuais, militantes e sindicalistas, os chamados reformadores, e do outro encabeçado por católicos e a iniciativa privada leiga. Estes entendiam a intervenção do Estado na educação como uma ação nociva, já que o levava ao monopólio, comprometendo a liberdade de ensino e os princípios do ensino católico. Por trás desse posicionamento, encontram-se os interesses da Igreja Católica que, diga-se de passagem, estava comprometida com as grandes forças conservadoras aristocráticas, que se preocupavam com a democratização que o país vinha passando. Isto porque, durante muito tempo, a Igreja exercia exclusividade e desfrutava das benesses do Estado em relação ao ensino, e não queria, assim sendo, a perda dos privilégios monopolíticos.
Enfim, assevera-se que a LDB/61 nasceu ultrapassada, e
que fora tão discutida e que poderia ter modificado substancialmente o sistema educacional brasileiro, iria não entanto, fazer prevalecer a velha situação, agora agravada pela urgência da solução de problemas complexos de educação criados e aprofundados com a distância que se fazia sentir entre o sistema escolar e as necessidades de desenvolvimento (Op. cit. p. 179).
__________
[1] Seria possível afirmar, com Gramsci, que foi uma revolução passiva ou uma revolução sem revolução? "Uma forma política na qual as lutas sociais encontram cenários bastante elásticos, de forma a permitir que a burguesia ascenda ao poder sem rupturas clamorosas"(QC, p.134).
[2] Esta política econômica pode ser definida pelos benefícios aos produtores de café, pagos pelo governo, sem contrapartida. No período da superprodução do café, o governo captava empréstimos do exterior para a compra da parte da produção, que mantinha estocada, assegurando lucros para os produtores e proporcionando, conseqüentemente, prejuízos ao governo. Com a crise mundial financeira e econômica de 29, esta política tornou-se impraticável, devido à dificuldade de obter financiamento externo para a compra de boa parte das sacas de café, bem como à inviabilidade de escoamento do estoque dessa superprodução no mercado. Juntando-se a isso, a crise de 29 provocou uma forte queda das reservas com a saída de capitais. Enfim, com o declínio acentuado das exportações e a fuga de capitais, as nossas importações foram comprometidas.
O que aconteceu em 29 foi uma crise econômica de proporções colossais, cujo resultado se estendeu a todos os países capitalistas – centrais e periféricos. Isto é, uma crise de superprodução, afetando todos os segmentos da sociedade, principalmente o mercado financeiro, fazendo com que a Bolsa de Valores de Nova Iorque fosse a primeira a entrar em colapso. Ver COGGIOLA, Osvaldo (org.). Capitalismo: globalização e crise. São Paulo. Humanitas/Publicações da FFLCH/USP, setembro, 1998.
[3] Art. 3º - A educação da prole é direito inalienável e imprescritível da família. Art. 4º - A escola é, fundamentalmente, prolongamento e delegação da família.
[4] Art. 5º - Para que a família, por si ou por seus mandatários, possa desobrigar-se do encargo de educar a prole, compete ao Estado oferecer-lhe os suprimentos de recursos técnicos e financeiros indispensáveis, seja estimulando a iniciativa particular, seja proporcionando ensino oficial gratuito ou de contribuição reduzida.
[5] Art. 6º - É assegurado o direito paterno de prover, com prioridade absoluta, a educação dos filhos; e dos particulares, de comunicarem a outros os seus conhecimentos, vedado no Estado exercer ou, de qualquer modo, favorecer o monopólio do ensino.
Art. 7º - O Estado outorgará igualdade de condições às escolas oficiais e às particulares:
a) pela representação adequada das instituições educacionais nos órgãos de direção de ensino;
b) pela distribuição das verbas consignadas para a educação entre as escolas oficiais e as particulares proporcionalmente ao número de alunos atendidos;
c) pelo conhecimento, para todos os fins, dos estudos realizados nos estabelecimentos particulares.
[6] "Art. 70 – Além dos recursos orçamentários destinados a manter e expandir o ensino oficial, o Fundo Nacional do Ensino Primário, o do Ensino Médio e o do Ensino Superior proporcionarão recursos, previamente fixados, para a cooperação financeira da União com o ensino de iniciativa privada, em seus diferentes graus.
Art. 71 – A cooperação financeira da União, dos Estados e dos Municípios se fará:
a) sob a forma de financiamento de estudos através de bolsas, concedidas a alunos, na forma da presente lei;
b) mediante empréstimos para construção, reforma e extensão de prédios escolares e respectivas instalações e agrupamentos;
Art. 79 – Ao conselho Regional de Educação e às Comissões que dele receberam os poderes previstos neste capítulo compete:
a) garantir a plena liberdade do bolsista ou de sua família no uso e emprego que fizeram da bolsa quanto ao gênero de educação, tipo de estudos ou instituição escolar que escolheram."
COGGIOLA, Osvaldo (org.) Capitalismo: globalização e crise. São Paulo: Humanitas / Publicações da FFLCH/USP, setembro, 1998.
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere: Maquiavel; nota sobre o Estado e a política. Trad. Carlos Nelson Coutinho et al. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. (Volume 3).
Projeto de Lei sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional apresentado à Câmara dos Deputados por Carlos Lacerda, in Diretrizes e Bases da Educação, São Paulo, Ed. Pioneiro, 1959.
Projeto de Lei sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional apresentado à Câmara dos Deputados por Clemente Mariani, in Diretrizes e Bases da Educação, São Paulo, Ed. Pioneiro, 1960.
RIBEIRO, Maria Luiza Santos. História da Educação Brasileira: a organização escolar. 2ª edição. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.
RODRIGUES, Neidson. Estado, Educação e Desenvolvimento Econômico. 2ª edição. São Paulo. Autores Associados & Cortez, 1987.
ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil. 10ª edição. Petrópolis: Vozes, 1988.
SAVIANI, Dermeval. Sistema de Ensino e Planos de Educação: o âmbito dos municípios. Educação & Sociedade, ano XX, nº 69, Dezembro/99.
WARDE, Mirian Jorge. Educação e Estrutura Social – a profissionalização em questão. 2ª edição. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.
Autor:
Wilson da Silva Santos
Mestre em Educação Popular pela UFPB. Professor de Metodologia da Pesquisa da Universidade do Estado da Bahia – UNEB.
Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
|
|