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Na tentativa de ampliar o conceito proposto por Mann et al.5, Ayres et al.7, no Brasil, apontam que o modelo de vulnerabilidade está conformado por três planos interdependentes de determinação e, conseqüentemente, de apreensão da maior ou da menor vulnerabilidade do indivíduo e da coletividade. O olhar do autor busca a compreensão do comportamento pessoal ou a vulnerabilidade individual, do contexto social ou vulnerabilidade social e do programa de combate à doença, no caso a AIDS, ou vulnerabilidade programática.
O significado do termo vulnerabilidade, nesse caso, refere-se à chance de exposição das pessoas ao adoecimento, como resultante de um conjunto de aspectos que ainda que se refiram imediatamente ao indivíduo, o recoloca na perspectiva da dupla-face, ou seja, o indivíduo e sua relação com o coletivo. Explicando melhor, o indivíduo não prescinde do coletivo: há relação intrínseca entre os mesmos. Além disso, o autor propõe que a interpretação da vulnerabilidade incorpore, necessariamente, o contexto como lócus de vulnerabilidade, o que pode acarretar maior suscetibilidade à infecção e ao adoecimento e, de modo inseparável, à maior ou menor disponibilidade de recursos de todas as ordens para a proteção das pessoas contra as enfermidades7.
O marco conceitual que propõe o autor difere do marco inicial proposto por Mann et al.5, pois Ayres et al.7 não enfatiza excessivamente a vulnerabilidade à determinação individual. Para esse autor, a unidade analítica está constituída no indivíduo-coletivo. Nessa perspectiva, propõe a sua operacionalização através da Vulnerabilidade Individual, que se refere ao grau e à qualidade da informação que os indivíduos dispõem sobre os problemas de saúde, sua elaboração e aplicação na prática; a Vulnerabilidade Social, que avalia a obtenção das informações, o acesso aos meios de comunicação, a disponibilidade de recursos cognitivos e materiais, o poder de participar de decisões políticas e em instituições; e a Vulnerabilidade Programática, que consiste na avaliação dos programas para responder ao controle de enfermidades, além do grau e qualidade de compromisso das instituições, dos recursos, da gerência e do monitoramento dos programas nos diferentes níveis de atenção7.
Cada um desses planos pode ser tomado como referência para interpretar-se também outros agravos, além da AIDS. Essa abordagem pode ampliar a atuação em saúde e gerar reflexões que podem ser úteis para a formulação de políticas de saúde a partir das necessidades da coletividade.
Nesse sentido, o modelo propõe construir políticas voltadas às necessidades dos seres humanos, trabalhar com as comunidades e realizar diagnósticos sobre as condições dos grupos sociais, de maneira participativa, assim como a redefinição dos objetos de intervenção e a análise crítica das práticas de saúde para a sua reconstrução orientada às necessidades dos indivíduos e da coletividade.
Entende-se, portanto, a partir dessa última perspectiva apresentada, o conceito de vulnerabilidade como um convite para renovar as práticas de saúde como práticas sociais e históricas, através do trabalho com diferentes setores da sociedade e da transdisciplinaridade. Isso permite o repensar sobre as práticas, de maneira crítica e dinâmica, para contribuir na busca de mudanças políticas, culturais, cognitivas e tecnológicas, que promovam impacto nos perfis epidemiológicos8.
Este último conceito de vulnerabilidade traz implícita, ainda, a intervenção e exige a adoção de um marco referencial diverso do utilizado historicamente pela Epidemiologia Clássica. Desse modo, a vulnerabilidade não nega o modelo biológico tradicional, muito pelo contrário, o reconhece, mas busca superá-lo. Vale lembrar que o modelo privilegia, como unidade analítica, o plano do coletivo, e que a estrutura é marcada por um referencial ético-filosófico, que busca a interpretação crítica dos dados. Essa perspectiva analítica amplia o horizonte para além da abordagem que se restringe à responsabilidade individual, que é empregada, tradicionalmente, em vários estudos que analisam o papel da pessoa na trama da causalidade. Ademais, incorpora o trabalho participante com a população, de maneira a contribuir para que esta seja "sujeito de sua vida"9.
Outros autores também têm feito uso do conceito de vulnerabilidade para a explicação de certos processos, como Palma e Mattos10, que definem o conceito de vulnerabilidade social, relacionando-o a processos de exclusão, discriminação ou enfraquecimento dos grupos sociais e sua capacidade de reação. É necessário destacar que essa abordagem é muito similar à proposta conceitual de Ayres, pois envolve aspectos que dizem respeito à dimensão estrutural, quando os autores se reportam aos processos de exclusão social, e relativos às dimensões particular e singular, quando fazem menção à capacidade de reação dos indivíduos/grupos sociais, para o enfrentamento da doença.
Especificamente em relação à operacionalização do conceito de vulnerabilidade, Figueiredo e Ayres11 apresentam um processo de intervenção comunitária para a redução da vulnerabilidade de mulheres às doenças de transmissão sexual, numa favela de São Paulo. Os autores verificaram que as estratégias que respondiam às necessidades e interesses da comunidade, além daquelas que respondiam às representações sobre essas enfermidades, tiveram sucesso, o que mostra a importância de se aproximar à população e conhecer suas necessidades, já que é a partir dela que se podem encontrar alternativas de intervenção às vulnerabilidades.
Com o intuito de analisar o curso da epidemia da AIDS, nos últimos dez anos, Paiva et al.9 discutem a necessidade de superação das noções de "grupo de risco" e de "comportamentos de risco" em relação à doença. Os autores mostram as importantes contribuições que os trabalhos, sob a ótica da vulnerabilidade, têm aportado em relação à educação e à saúde. Alguns destaques que os autores apontam são o trabalho junto à população, fomentando a solidariedade, através de processo mútuo de aprendizagem entre os profissionais de saúde e a população.
Partindo-se do conceito de vulnerabilidade proposto por Ayres8 e alicerçadas na interpretação da saúde-doença como processo social, Muñoz Sánchez e Bertolozzi12 analisaram como se processava a vulnerabilidade à tuberculose, num grupo de estudantes universitários. Com base em critérios da Sociedade Americana Torácica e do Centro para o Controle de Doenças (CDC)13, as autoras construíram uma matriz, utilizando categorias e definindo escores de vulnerabilidade: média e alta. As categorias utilizadas foram: menção à contato com portadores de tuberculose, procedência de países e/ou de regiões do Brasil com taxas de tuberculose maiores que 30, uso de drogas e dormir em local com mais de três pessoas. Essas categorias foram analisadas em conjunto com outras, que se referem à vulnerabilidade individual e social, verificando-se também como fundamentais a situação de empregabilidade dos pais e dos próprios alunos, o acesso à informação, as crenças religiosas, as possibilidades de aces so ao lazer, dentre outras, que minimizam ou potencializam a vulnerabilidade à tuberculose.
No mesmo estudo, Muñoz Sánches e Bertolozzi12 analisaram a Vulnerabilidade Programática, com relação à unidade de saúde que era referência para o grupo de alunos estudados. Verificou-se que a dificuldade de acesso ao serviço de saúde se constituiu como importante marcador de vulnerabilidade.
O modelo de vulnerabilidade que interliga os aspectos individuais, sociais e programáticos reconhece a determinação social da doença e se coloca como um convite para renovar as práticas de saúde, como práticas sociais e históricas, envolvendo diferentes setores da sociedade. Assim, é mister superar estudos que restringem as análises à perspectiva da multifatorialidade e ocultam a complexidade das verdadeiras causas da doença. A Teoria da Determinação Social apreende a saúde-doença como uma síntese do conjunto de determinações e que acaba por resultar em riscos ou potencialidades, que se evidenciam em perfis ou padrões saúde-doença. Deste modo, essa Teoria analisa como, em última instância, os fatores estruturais estão vinculados à emergência de processos saúde-doença, diferentes na sua expressão, de acordo com a inserção de classe dos indivíduos14.
A abordagem na perspectiva da determinação social da saúde-doença e que o modelo de vulnerabilidade apresentado incorpora12 aponta para a necessidade da transdisciplinaridade, o que é fundamental quando se trata de problemas ou de necessidades de saúde, na medida em que a complexidade do objeto da saúde requer diferentes aportes teórico-metodológicos, sob pena de reduzir as ações a "tarefas" pontuais, de caráter emergencial, que não modificam a estrutura da teia de causalidade.
Vale enfatizar que a interpretação da saúde-doença, além de se apoiar nos processos de produção e de reprodução social, não deve descolar-se da dimensão subjetiva, que diz respeito às representações/significados que os indivíduos atribuem a fatos e à vida em si, o que acaba por refletir-se nos comportamentos e atitudes das pessoas.
Assim, a vulnerabilidade deve levar em conta a dimensão relativa ao indivíduo e o local social por ele ocupado. Ao propor outras perspectivas de abordagem, como a programática e a social, permite a integralização da análise da situação de saúde e de diferentes possibilidades de intervenção, sempre contemplando a participação dos indivíduos.
Para intervir em situações de vulnerabilidade é imperativo o desenvolvimento de ações que envolvam "resposta social" que, segundo Ayres et al.7, diz respeito à participação ativa da população na procura solidária de estratégias passíveis de execução e de encaminhamento/equacionamento de problemas e de necessidades de saúde.
Verifica-se que a vulnerabilidade supera o marco do conceito de risco, tradicionalmente empregado no âmbito da Epidemiologia Clássica, pois este, segundo Ayres8, designa "[...] chances probabilísticas de susceptibilidade, atribuíveis a um indivíduo qualquer de grupos populacionais particularizados, delimitados em função da exposibilidade a agentes (agressores ou protetores) de interesse técnico ou científico". Assim, em saúde têm-se utilizado o conceito de "risco" como instrumento de caráter probabilístico para orientar as atividades de intervenção em saúde, o que suscitou a Ayres15 alertar sobre a necessidade de revisitar a relação entre risco e intervenções em saúde, salientando que os "objetos" em saúde são sujeitos e apontando nas limitações desse conceito o seu caráter "objetivista" e "analítico-discriminativo".
Já o conceito de Vulnerabilidade, novo, em processo de construção, supera o caráter individualizante e probabilístico do clássico conceito de "risco", ao apontar a vulnerabilidade como um conjunto de aspectos que vão além do individual, abrangendo aspectos coletivos, contextuais, que levam à suscetibilidade a doenças ou agravos. Esse conceito também leva em conta aspectos que dizem respeito à disponibilidade ou a carência de recursos destinados à proteção das pessoas.
A Saúde Coletiva pode amplamente valer-se dessa última perspectiva apresentada, o que permite um avanço nas alternativas concretas de intervenção. Coloca-se como potencial instrumento para a transformação das práticas de saúde. As possibilidades de leitura das necessidades dos indivíduos, a partir do conceito ampliado de vulnerabilidade, coloca à Saúde Coletiva, na medida em que incorpora práticas cuja essência é o cuidado ao indivíduo-coletivo, a possibilidade de apoiar os sujeitos sociais no que diz respeito aos seus direitos, fato que, na atual conjuntura de saúde e de desenvolvimento do país, se constitui como um desafio a ser perseguido e concretizado.
Assim, enfatiza-se que a operacionalização do conceito de vulnerabilidade pode contribuir para renovar as práticas de saúde coletiva, nas quais o cuidado às pessoas deve ser responsabilidade de diferentes setores da sociedade, através da multidisciplinariedade, além de conjugar diversos setores da sociedade, todos querendo e construindo projetos, "cuidando" da população, tendo como base que "[...] a atitude de cuidar não pode ser apenas uma pequena e subordinada tarefa parcelar das práticas de saúde. A atitude "cuidadora" precisa se expandir mesmo para a totalidade das reflexões e intervenções no campo da saúde"15.
Colaboradores
AIM Sánchez procedeu à revisão bibliográfica e redação do artigo. MR Bertolozzi orientou a sua elaboração.
Agradecimentos
As autoras agradecem ao CNPq pelo apoio no desenvolvimento do estudo.
1. Wisner B. Marginality and vulnerability. Appl Geogr [serial on the Internet]. 1998 Jan [cited 2001 Ago 10]; 18(1):[about 9 p.] Available from: http://www.sciencedirect.com/science
2. Dilley M, Boudreau TE. Coming to terms with vulnerability: a critique of the food security definition. Food Police 2001; 26(3):229-47.
3. Kalipeni E. Health and disease in southern Africa: a comparative and vulnerability perspective. Soc Sci Med [serial on the Internet.]. 2000 Apr [cited 2001 Nov 11]; 50(7/8):[about 19 p.]. Available from: http://www.sciencedirect.com/science
4. Delor F, Hubert M. Revisiting the concept vulnerability. Soc Sci Med [serial on the Internet]. 2000 Jun [cited 2002 Jun 10]; 50(11):[about 20 p.]. Available from: http://www.sciencedirect.com/science
5. Mann J, Tarantola DJM, Netter T. Como avaliar a vulnerabilidade à infeção pelo HIV e AIDS. In: Parker R. A AIDS no mundo. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 1993. p. 276-300.
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7. Ayres JRCM, França Junior I, Calazans G, Salletti H. Vulnerabilidade e prevenção em tempos de Aids. In: Barbosa R, Parker R, organizadores. Sexualidade pelo avesso: direitos, identidades e poder. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 1999. p. 50-71.
8. Ayres JRCM. Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec; 2002.
9. Paiva V, Peres C, Blessa C. Jovens e adolescentes em tempos de AIDS: reflexões sobre uma década de trabalho de prevenção. Rev Psicol USP [periódico na Internet]. 2002 [acessado 2003 Ago. 12];13(1):[cerca de 20 p.]. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?
10. Palma A, Mattos UAO. Contribuições da ciência pós-normal à saúde pública e a questão da vulnerabilidade social. Hist Ciênc Saúde Manguinhos [periódico na Internet]. 2001 Set./Dez. [acessado 2003 Jan 5];8(3):[cerca de 23 p.]. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?
11. Figueiredo R, Ayres JRCM. Intervenção comunitária e redução da vulnerabilidade de mulheres às DST/Aids em São Paulo, SP. Rev Saúde Pública 2002; 36(4):1-17.
12. Muñoz Sánchez AI, Bertolozzi MR. Conhecimentos e atitudes sobre a tuberculose por estudantes universitários. Bol Campanha Nacional Contra Tuberculose 2004; 12(1):19-26.
13. Curley C. New guidelines: what to do about an unexpected positive tuberculin skin test. Clev Clin J Med 2000; 70(1):49-55.
14. Breilh J. Epidemiologia economia, política e saúde. São Paulo: Hucitec; 1991.
15. Ayres JRCM. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Rev C S Col 2001; 6(1):63-72.
Alba Idaly Muñoz SánchezI;
Maria Rita BertolozziII
IEscola de Enfermagem, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar 419, Consolação. 05403-000 São Paulo SP.
IIUniversidade de São Paulo
Ciência & Saúde Coletiva v.12 n.2 Rio de Janeiro mar./abr. 2007
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