Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
Nos estudos epidemiológicos das desigualdades entre negros e brancos, duas hipóteses causais são aventadas - as diferenças observadas são biológicas, decorrentes de uma predisposição genética, ou são devidas a exposições ambientais. Na primeira situação, as doenças com caráter poligênico ou multifatorial representariam um desafio às explicações que se atêm exclusivamente às variáveis de caráter genético. Na segunda opção, a quantificação do efeito ambiental na ocorrência dos agravos à saúde implicaria estimar quanto dessa diferença seria possível explicar e como o confundimento residual e as interações afetariam a interpretação dos resultados dos estudos. Nos estudos comparativos entre grupos raciais ou nos demais estudos que envolvem a ação de fatores ambientais, sempre pairam dúvidas acerca da caracterização e identificação corretas de exposições importantes e dos efeitos interativos ou se alguns fatores ambientais específicos mensurados dão conta das diferenças observadas, tornando mais complexas as discussões sobre os achados desses estudos.
Ademais da dualidade biologia/ambiente, Kaufman & Cooper19 e Cooper & Kaufman20 destacam questões relevantes, tais como a direcionalidade e circularidade, presentes nos estudos epidemiológicos. A direcionalidade estaria relacionada ao modo como são definidas as duas proposições que formam a díade clássica de Neymann-Pearson das hipóteses nula e alternativa no teste de diferença racial em um evento de saúde. Para esses autores, ao vincular à hipótese nula a igualdade entre negros e brancos, baseada no status de conhecimento atual, cria-se uma fantasia conveniente ou um blefe dissimulado que, ao longo dos anos, reitera a afirmação da existência de significativas diferenças entre negros e brancos. O problema residiria na definição de uma hipótese nula como um ponto (a=b), com probabilidade próxima de zero, e uma hipótese alternativa que inclui todos os outros pontos (a¹b), com probabilidade próxima de um. Desse modo, nos estudos dotados de suficiente poder estatístico, seria sempre possível demonstrar uma diferença entre negros e brancos. A inversão na ordem dessas hipóteses levaria a uma maior probabilidade de não se rejeitar a hipótese nula e à demonstração de que os negros e brancos são mais similares que dissimilares. Entretanto, em decorrência da força do viés de publicação contra achados nulos, esses estudos teriam maior dificuldade de serem publicados.
A circularidade refere-se ao ciclo em que os investigadores partem de uma realidade social de diferença racial e, motivados por ela, criam hipóteses acerca da existência de diferenças biológicas significantes. A partir disso, eles coletam dados e acumulam exemplos de diferença em uma mistura de dados biológicos e sociais quantitativos não-relacionados, concluindo, finalmente, que os grupos são diferentes. O fenômeno circular se faria presente em um processo no qual os resultados, níveis diferenciais de doença, reforçam a exposição primária – as distinções raciais. Isso se dá porque o paradigma racial não envolve nada mais consistente que a proposição da diferença racial e os fatos coletados não podem revelar mais do que uma prova circular: a diferença observada no âmbito geral, hipotetizada e observada em um estudo particular leva à conclusão de que existe uma diferença. Tal conclusão é vista como um fim em si mesma, embora ela apenas reafirme a realidade social como uma provável realidade biológica. A crítica a esses estudos reside no fato de que há um foco de atenção exagerado nas diferenças raciais, reificando a distinção entre negros e brancos e contribuindo para a sustentação do racialismo científico.
Kaufman & Cooper21 chamam a atenção para outras limitações presentes nos desenhos de estudos epidemiológicos em geral, com destaque para os estudos de epidemiologia social, que buscam apontar associações causais nas diferenças entre negros e brancos com respeito a determinados desfechos em saúde. Uma delas refere-se a uma violação extrema, por parte dos estudos de epidemiologia social, das premissas lógicas do método epidemiológico, comprometendo o processo inferencial e remetendo a conclusões equivocadas, tais como a existência de predisposições raciais inatas. Para esses autores, nesses estudos haveria a impossibilidade de uma interpretação lógica da afirmação contrafactual que contrapõe o observado, a exposição à negritude, ao que seria esperado, ou seja, a probabilidade condicional da ocorrência do desfecho entre os indivíduos expostos caso eles não tivessem sido expostos. Em acréscimo, os testes estatísticos mais comumente utilizados presumem a intercambialidade, o que invalidaria qualquer interpretação causal das estimativas de parâmetros para contrastes raciais, incluindo a discriminação racial. É importante destacar que esses argumentos baseiam-se no pressuposto de que a raça, assim como o sexo e o ano de nascimento, são características inalteráveis do indivíduo, não-intercambiáveis e que não haveria negros que não estivessem expostos à negritude. Tais observações, de cunho etnocêntrico, assumem que a negritude existe como um elemento único e comum a qualquer sociedade onde residam pessoas negras, não levando em consideração as experiências culturais, socioeconômicas e históricas vivenciadas pelas populações negras em diferentes sociedades. Porém, ao tomarmos a raça como constructo social, o uso de argumentos contrafactuais torna-se plausível, pois uma pessoa de pele escura pode ser (ou não) exposta a um conjunto de fatores que envolvem preconceito racial, exclusão política e discriminação socioeconômica. Se a raça é decorrente de uma relação social, então a negritude não é uma característica inalterável, mas sujeita a relações sociais contingentes no tempo e no espaço geográfico, como demonstram os estudos epidemiológicos que comparam determinados agravos entre negros nascidos nos EUA e aqueles nascidos em outros países. Esses estudos sugerem que a orientação cultural e a auto-identidade atuam como fatores influentes nos desfechos epidemiológicos.
Kaufman et al.22 assinalam que estimativas que apontam um efeito independente da raça são potencialmente enviesadas pela presença de um confundimento residual do status socioeconômico (SES). As fontes desse confundimento estariam na categorização do SES e no erro de classificação diferencial para os grupos étnicos, na ocorrência de erros de mensuração e agregação (falácia ecológica) das variáveis do SES e na incomensurabilidade entre as variáveis do SES e os atributos que não foram mensurados para posição social. A incomensurabilidade ocorre quando, na comparação entre brancos e negros em níveis iguais de um determinado indicador socioeconômico, eles permanecem desiguais com relação aos outros indicadores sociais, sugerindo que a maior taxa de um determinado agravo entre pessoas classificadas como negras em cada nível de renda seria, ao menos em parte, uma função da desigualdade econômica residual entre os grupos. A incomensurabilidade remete à discussão sobre a pertinência de se comparar grupos raciais utilizando variáveis de posição socioeconômica (p.ex. renda, escolaridade, ocupação) para o controle de possíveis fatores de confusão. Para alguns pesquisadores, esse controle seria inadequado, pois tais variáveis estariam em posição subseqüente na cadeia causal entre a exposição (raça) e o desfecho, enquanto que para outros a incomensurabilidade das medidas de SES seria decorrente de condições socioeconômicas deletérias, poder político e acesso a bens e serviços diferenciados aos quais estão sujeitas as populações negras.
A garantia de um maior controle para o confundimento nas pesquisas sobre as diferenças raciais na saúde se dá, de acordo com Morgenstern23, com a especificação detalhada do contraste contrafactual, como por exemplo, a raça dos antepassados, herança sociocultural, aquisições e oportunidades educacionais ou ocupacionais, experiência com discriminação e injustiça, história de fumo, exposição a estressores sociais ou toxinas ambientais, acesso a cuidados médicos, dentre outros. Ao especificar o contraste contrafactual que define o efeito de raça, o investigador pode identificar e controlar os confundidores e estimar o efeito ajustado da raça no risco resultante. Para explicar este efeito ajustado de raça, é necessário que sejam identificados os intermediários sociocomportamentais e biológicos e estimados dois tipos de efeito - o efeito indireto (mediados por um ou mais fatores intermediários) e direto (residual e mediado por fatores desconhecidos)23. Entretanto, a obtenção de estimativas não-enviesadas desses efeitos pode estar comprometida nos estudos observacionais pela ausência potencial de comparabilidade entre os grupos de exposição, dado que esses estudos não são randomizados.
A respeito das limitações supracitadas, Kaufman & Cooper21 apontam uma saída baseada na mudança do padrão usual de investigação científica, em que o investigador partiria de um modelo abstrato inicial com uma representação clara da relação observada entre os fenômenos estudados, ou seja, a distribuição conjunta da exposição e resultantes medidos, ao invés de tomar os dados observados e mover-se em direção ao não-observável, com resultados preditos sob numerosos pressupostos irrealistas e inverificáveis. Essa abordagem, segundo esses autores, seria adequada para dar conta de efeitos de causalidade reversa – por exemplo, seriam as condições de vida que levariam a um pior status de saúde ou um situação de saúde precária é que levaria a um comprometimento da capacidade produtiva do indivíduo. Link & Phelan24 apontam alguns recursos que podem ser empregados para dar conta disso, tais como o uso de estratégias quasi-experimentais envolvendo a identificação de condições sob as quais diferentes explicações fazem predições diferentes acerca de fatos observáveis, a identificação de fatores de risco sociais que não podem ser razoavelmente concebidos como tendo sido causados pela condição patológica do indivíduo e o emprego de desenhos de estudo longitudinais. A idéia subjacente a essas proposições leva em conta o fato de que a coleta aleatória de vários exemplos de diferenças raciais não teria o potencial de revelar o sentido (i.e. etiologia) destas diferenças e somente à luz de algum contexto teórico é que esses dados poderiam ser interpretados de maneira significativa. Nesse processo, o epidemiologista integraria os conhecimentos biológicos, sociológicos e econômicos das exposições, postulando um sistema que operaria na configuração dos dados tais como eles são observados.
Quanto às diferenças no status de saúde entre os grupos étnicos, Smith25 assinala que uma resposta comum para explicar essas diferenças, após o ajuste para possíveis variáveis de confusão, é atribuir aos genes, à cultura e ao comportamento um efeito residual da variação que não é contemplada nos modelos causais. Essa abordagem pressupõe que os indicadores socioeconômicos disponíveis, tidos como medidas de posição socioeconômica, são marcadores adequados de circunstâncias sociais atuais e que possuem um valor comum e não variante ao longo dos diferentes grupos étnicos.
A fim de contornar essas limitações, esses autores recomendam que se estabeleça um modelo conceitual de determinação social das diferenças na saúde entre grupos étnicos, preenchendo um vazio teórico entre o nível macrossocial e o nível biológico-molecular. Um exemplo desse tipo de abordagem pode ser encontrado no estudo de Kaufman et al.26 onde os autores buscaram identificar as similaridades e dissimilitudes nas formas gráficas da relação entre renda e mortalidade nos diferentes estratos de idade e sexo, destacando os padrões de mortalidade que se evidenciam quando o mínimo de pressupostos é imposto aos modelos. As hipóteses aventadas por esses autores são a incomensurabilidade entre negros e brancos e a climatização ("weathering") – o efeito cumulativo de agressões ambientais e sociais crônicas, bem como um comportamento ativo e prolongado para lidar com circunstâncias estressantes que provocaria uma deterioração progressiva da saúde. A opção por métodos descritivos resultou em uma menor parametrização do modelo e evitou a elaboração de inferências explanatórias que tomassem em consideração os pressupostos de não-identificabilidade, confundimento e intercambialidade.
Lillie-Blanton et al.27 e Guralnik & Leveille28 sugerem o desenvolvimento de novos modelos conceituais para o estudo da influência da raça e sua interação com outros fatores sociais e instrumentos metodológicos que estendam as medidas de classe social para além dos indicadores individuais de status social, incluindo medidas de condições do ambiente social da vida (acesso a boas escolas, emprego em ocupações satisfatórias, oportunidades, escolhas) e da riqueza familiar (propriedade do domicílio, poupança e outras vantagens).
A hegemonia do individualismo biomédico, marco teórico-conceitual subjacente ao modelo multifatorial de causalidade, implica em uma ênfase nos determinantes biológicos da doença sujeitos à intervenção através do sistema de saúde, a desvalorização dos determinantes sociais e a visão da população e seus padrões de doença como a soma e o reflexo dos casos individuais29. O efeito de redução das doenças nas populações a doenças nos indivíduos e, por sua vez, a um mau funcionamento biológico, divorcia o substrato biológico de seu contexto social, transformando-o no espaço ideal para intervenções de natureza biomédica e estatal.
A retomada da perspectiva populacional associada ao conceito de que os grupos possuem propriedades que transcendem a soma das propriedades individuais é ressaltada nas propostas da epidemiologia social. Segundo a análise de Mello-Filho30, a epidemiologia social de Jaime Breilh remete ao pensamento durkheimiano sobre a independência e exterioridade relativa dos fatos sociais em relação ao indivíduo e sobre a combinação e transformação dos elementos individuais na formação de uma síntese que deve ser considerada na sua totalidade. Entretanto, ao inserir o indivíduo no nível singular-particular quando enfoca as relações entre o individual e o coletivo, essa epidemiologia social impede a solução da antinomia individual versus geral e, consequentemente, rompe o vínculo entre o biológico e o social. Krieger31 critica a epidemiologia breilhiana, pela sua escassez de princípios que orientem as investigações acerca das relações causais dos determinantes econômicos e políticos no processo saúde-doença e pelo uso de metodologia de análise epidemiológica convencional, apoiando-se em características de nível individual para explicar a distribuição de fatores de risco na população. Susser 32 aponta as abordagens eco-epidemiológica e eco-social como marcos teóricos que buscam superar as limitações dos modelos causais hegemônicos ao integrar o social e biológico em uma perspectiva dinâmica, histórica e ecológica dos determinantes da distribuição de doenças na população e das desigualdades sociais na saúde.
A meta da abordagem eco-epidemiológica32 é compreender como o contexto afeta a saúde das pessoas e dos grupos através de relações para as quais as medidas individuais não são suficientes. Para Susser32, um nível (individual ou coletivo) não é previsível a partir do outro, gerando respectivamente os problemas da falácia ecológica e atomística quando se tenta extrapolar os achados do nível coletivo para o individual e vice-versa. Daí a busca pela integração de múltiplos níveis de um dado problema, onde cada nível é visto como um sistema em si mesmo interagindo com os níveis acima e abaixo dele.
A abordagem eco-social, por sua vez, combina a perspectiva da produção social da doença com análises biológicas e ecológicas que levam em conta o processo de corporificação, a interação cumulativa entre a exposição, suscetibilidade e resistência, e o papel da resposta e da agência no desenvolvimento de doenças33. A noção de corporificação remete à fenomenologia européia e a distinção entre o corpo objetivo, considerado como uma entidade fisiológica e pré-condição para a subjetividade, a emoção, a linguagem, o pensamento, a interação social, e o corpo fenomenológico, vivenciado nas experiências que não dependem de uma compreensão dos processos fisiológicos envolvidos nas ações desse corpo. O termo corporificação (embodiment), na acepção dada por Krieger34, refere-se ao modo como os seres vivos incorporam biologicamente o mundo onde vivem, constituído de seres animados e entidades inanimadas interagindo em múltiplas escalas e níveis. A corporificação é o resultado de processos conscientes e inconscientes, em múltiplos níveis, do engajamento de seres animados que levam à transformação temporal das características corporais. A emergência do corpo como um problema teórico muda a compreensão desse corpo que passa de um fato da natureza para o resultado de um processo histórico e dinâmico de corporificação, como um efeito de poder35.
A abordagem eco-social toma o conceito de corporificação para explicar a doença como expressão biológica das relações sociais e entender como essas relações sociais influenciam as compreensões mais básicas sobre os agravos à saúde. São os corpos, e não os genes, que interagem com o meio ambiente externo, com implicações na regulação e expressão gênicas34. Essa perspectiva, ao incorporar determinantes sociais ignorados pelas abordagens biomédicas, reformula as alegadas diferenças raciais de base biológica em expressões biológicas mutáveis e corporificadas de racismo. Ao enfatizar a responsividade/responsabilidade, essa abordagem estende as explicações focadas nas expressões individuais, p.ex. a raiva e o ódio, para fenômenos sociais, como a discriminação interpessoal e institucional. Do mesmo modo, ao destacar a interação dinâmica e cumulativa entre exposição, suscetibilidade e resistência, ela avança além da produção social da doença e do enfoque nas disparidades segundo a posição socioeconômica na vida adulta, ressaltando tanto a discriminação atual vivida dentro de estratos de classe quanto o impacto biológico da privação econômica e social vivenciada em idades mais jovens. A vinculação entre modelos de risco, corporificação, resiliência, efeitos de coorte e contextuais, fatores mediadores e modificadores e os subjacentes caminhos causais biológicos, psicológicos e sociais ao longo de uma ou mais gerações é também um dos desafios da epidemiologia do curso de vida36.
Todavia, a ênfase nas medidas individuais pode levar à produção de um conjunto de fatores sociais de risco que relacionam as associações entre variáveis sociais e doença, mas não explicam, com base em modelos teóricos fundamentados, por que elas ocorrem em certas configurações de determinantes inseridos em uma rede de influências históricas, políticas e biológicas. Há também o risco do essencialismo no uso de construtos sociais, tais como a posição socioeconômica e a raça, em que se supõe uma relação linear entre a exposição e o resultado de saúde, quando de fato ela não é linear, e privilegia-se o construto em detrimento das condições para as quais ele atua como um indicador substituto. Nesse aspecto, os estudos que tratam dos efeitos das iniqüidades na saúde representariam um avanço na explicação dos fenômenos sociais como fatores causais no nível populacional37.
Quanto às críticas aos estudos da epidemiologia social que, ao tomar em consideração os fatores socioeconômicos, raciais ou de gênero, violam as premissas básicas de que a exposição é idêntica para todos os indivíduos (pressuposto da estabilidade da exposição) e que o desfecho em um dado indivíduo é independente do desfecho em qualquer outro indivíduo (pressuposto da independência dos eventos), Muntaner38 assinala que tais limitações estão presentes em qualquer estudo epidemiológico que pretenda ajustar eventos de saúde para múltiplos fatores sociais dentro de um modelo toxicológico de risco.
A percepção das incertezas nos momentos históricos de rápidas mudanças e transtornos sociais, de aparente imprevisibilidade e visões disseminadas de caos nos valores sociais, reforça o controle individual, toma o corpo como seu objeto e apresenta forte potencial para a moralização dos grupos minoritários. O triunfo da ideologia social do controle individual aumenta a valência moral dos comportamentos de risco, nega as limitações no controle de fatores que estão além do esforço de mudança no nível pessoal e revela o papel organizador, interpretativo e significativo que a associação entre conceitos morais e as concepções da doença e seus precursores têm sobre as informações conflitantes e ambíguas da epidemiologia1.
As críticas aos estudos epidemiológicos de doenças raciais e seus pressupostos biológicos e comportamentalistas ressaltam o caráter ideológico dos marcos teórico-conceituais que orientam e legitimam os seus achados científicos, baseados na visão do corpo biológico descolado de um contexto sociocultural, econômico e político específico.
Elas também reclamam uma crítica epistemológica do sujeito do conhecimento e sua posição sociocultural que irá repercutir no seu modelo explicativo e, conseqüentemente, nos marcos teóricos causais que orientam a análise e interpretação dos achados do estudo. Na pesquisa epidemiológica, o pesquisador se vê frente ao desafio de equacionar a tensão entre reduzir o indivíduo e as populações aos seus elementos básicos (biológico, material, psicológico, socioeconômico) ou tomá-los como constituídos por tantas determinações e inscrições que não lhes restaria substância para terem atributos. A opção reducionista, na visão de Young39, remove a práxis e a substitui pelo processo, tomando as relações entre as pessoas como se fossem relações entre objetos. O reducionismo biológico supõe que a sobrevivência do mais apto é o modus operandi da natureza, reificando as pessoas e naturalizando os sistemas de valores de uma classe, gênero, casta, nação ou raça. Além disso, a aceitação da biologia como o fundamento epistêmico das afirmações sobre a ordem social e da ciência como saber objetivo, purgado de controvérsias políticas e morais, dominado por um conhecimento apolítico, universal, empírico e por uma linguagem neutra de valores, perpetuam o racismo e as metáforas raciais de inferioridade nas ciências40, 41. Esse racismo não se sustenta apenas em características físicas e nem teve sua forma originária no interesse pela fisiologia e biologia; ele se apóia, ao longo dos tempos, em hierarquias de civilidade e distinções culturais, na relação entre uma essência oculta da raça e a visibilidade de seus pretensos traços marcadores42.
Talvez uma explicação para a persuasão da idéia de raças humanas biológicas possa ser aventada, com base nos preceitos de Foucault43, em uma mecânica do poder-saber que, na busca por evidências biológicas da diferença entre as raças, reafirma seu propósito de dissimular e negar o caráter histórico e sociocultural dessa diferença, encravando-a nos corpos, introduzindo-a nas condutas, tornando-a princípio de classificação e de inteligibilidade e constituindo-a em ordem natural da desigualdade. Esse autor via na distinção e hierarquização das raças o estabelecimento de um corte no contínuo biológico da espécie humana a que se dirige um poder que se incumbiu da normalização da vida – o biopoder – um poder que cuida da vida e deixa morrer. Para esse autor, a raça e o racismo seriam as condições de aceitabilidade para admitir o imperativo da morte na economia do biopoder, garantindo que a regeneração de uma raça seja possível pela eliminação daquelas que a ameaçam como um perigo biológico – o perigo da degeneração racial. Não por acaso, nos últimos dois séculos, a ciência e mais especificamente a biologia e a medicina têm desempenhado um papel preponderante nas sociedades ocidentais para a constituição de saberes e instrumentos de poder que tentam explicar os mecanismos que comprometeriam a supremacia de um determinado grupo. Contudo, para se obter respostas à permanência de discursos biologizantes sobre as raças humanas, não basta interrogá-los de que teoria implícita eles derivam ou que ideologia representam, mas nos efeitos recíprocos de poder e saber que esses discursos proporcionam e que conjuntura e que correlação de forças torna necessária sua utilização. Como sublinha Laqueur40, a instabilidade da diferença e da igualdade está no cerne do empreendimento biológico e a importância e a finalidade de se ressaltar uma ou outra são dependentes de razões epistemológicas e políticas precedentes e mutáveis que estão fora dos limites da investigação empírica.
A constatação de que a ciência não é feita apenas de fatos, mas também de tradições e visões de mundo, além de expor as contradições e os comprometimentos de sua pretensa ruptura epistemológica com o senso comum e a subjetividade e definir a sua inserção em um espaço socioeconômico e cultural contingente, põe em xeque a noção de uma mente científica livre que testa os fatos neutros de valor e que se apóia apenas em hipóteses puramente intelectuais. A demonstração de que uma disciplina científica é constituída ao longo de toda a sua extensão (categorias, equipes, instituições, patrocínios e achados) pelas determinações ideológicas, que a verdade é construída, que a natureza é uma categoria social, que os fatos se apóiam nas teorias e que todas as teorias são carregadas de valor e constituídas dentro de uma ideologia não implica na negação do papel da ciência e sua capacidade, ainda que limitada, de explicar a realidade. Ao iluminar as caixas pretas da epidemiologia e seus discursos sobre a etiologia das doenças em grupos raciais específicos, as críticas não querem apenas ressaltar as limitações do determinismo biológico e do reducionismo estatístico que permeia a epidemiologia das doenças raciais, mas apontar os vieses ideológicos e as implicações éticas e sociais dos seus modelos de intervenção na sociedade.
1. Brandt AM. Behaviour, disease, and health in the Twentieth-Century United States. In: Brandt AM & Rozin P, organizadores. Morality + Health. New York: Routledge; 1997. p.53-77.
2. Tapper M. In the Blood - Sickle Cell Anemia and jthe Politics of Race. Philadelphia: University of Pennsylvania Press; 1999.
3. Jones CP, LaVeist TA, Lillie-Blanton M. "Race" in the epidemiologic literature: na examination of the American Journal of Epidemiology, 1921-1990. Am J Epidemiol 1991; 134(10):1079-84.
4. LaVeist TA. Beyond dummy variables and sample selection: what health services researchers ought to know about race as a variable. Health Serv Res 1994; 29(1):1-16.
5. Hahn RA, Stroup DF. Race and ethnicity in Public Health Surveillance: criteria for the scientific use of social categories. Public Health Rep 1994; 109(1):7-15.
6. Williams DR, Lavizzo-Mourey R, Warren RC. The concept of race and health status in America. Public Health Rep 1994; 109(1):26-41.
7. Aspinall PJ. Describing the "white" ethnic group and its composition in medical research. Soc Sci Med 1998; 47(11):1797-1808.
8. Bhopal R, Donaldson L. White, european, western, caucasian, or what? Inappropriate labeling in research on race, ethnicity and health. Am J Public Health 1998; 88(9):1303-7.
9. Goodman, AH. Why genes don´t count (for racial differences in health). Am J Public Health 2000, 90(11):1699-1702.
10. Hernández-Arias PR, Muntaner C. Race and ethnicity as variables in health research: what does their use tell us about health disparities. Symposium on The Politics of Race, Culture, and Health, 2002. [acessado 2005 Jun 28]. Disponível em: http://www. ithaca.edu/healthpolicy/race/docs/prafael_carles.pdf
11. Comstock RD, Castillo EM, Lindsay SP. Four-year review of the use of race and ethnicity in Epidemiology and Public Health Research. Am J Epidemiol 2004; 159(6):611-19.
12. Laguardia J. O uso da variável "raça" na pesquisa em saúde. Physis 2004; 14(2):197-234.
13. Travassos C, Williams W. The concept and measurement of race and their relationship to public health: a review focused on Brazil and the United States. Cad Saude Publica 2004; 20(3):660-78.
14. Pena S. Razões para banir o conceito de raça da medicina brasileira. Hist Cienc Saude Manguinhos 2005, 12(2):321-46.
15. Sankar P, Cho MK, Condit CM, Hunt LM, Koenig B, Marshall P, et al. Genetic Research and health disparities. JAMA 2004; 291(24):2985-9.
16. McDermott R. Ethic, epidemiology and the thrifty gene: biological determinism as a health hazard. Soc Sc Med 1998; 47:1189-95.
17. Fullilove MT. Comment: Abandoning "race" as a variable in Public Health Research an idea whose time has come. Am J Public Health 1998; 88(9):1297-8.
18. Gilroy P. Race ends here. Ethnic and Racial Studies 1998; 21: 838-847.
19. Kaufman JS, Cooper RS. Descriptive studies of racial differences in disease: in search of the hypothesis. Public Health Rep 1995; 110:662-666, 1995.
20. Cooper RS, Kaufman JS. Race and Hypertension – Science and Nescience. Hypertension 1998; 32(5): 813-816.
21. Kaufman JS, Cooper RS. Seeking causal explanations in social epidemiology. Am J Epidemiol 1999; 150:113-20.
22. Kaufman JS, Cooper RS, McGee DL. Socioeconomic status and health in blacks and whites: the problem of residual confounding and resiliency of race. Epidemiology 1997; 8(6): 621-628.
23. Morgenstern H. Defining and explaining race effects. Epidemiology 1997; 8(6):609-610.
24. Link BG, Phelan JC. Social conditions as fundamental causes of disease. J Health Soc Behav 1995; (special issue):80-94.
25. Smith GD. Learning to live with complexity: ethnicity, socioeconomic position, and health in Britain and The United States. Am J Public Health 2000, 90(11):1694-1698.
26. Kaufman JS, Long AE, Liao Y, Cooper RS, McGee DL. The relation between income and mortality in U.S. blacks and whites. Epidemiology 1998; 9(2): 47-155.
27. Lillie-Blanton M, LaVeist T. Race/ethnicity, the social environment, and health. Soc Sci Med 1996, 43(1):83-91.
28. Guralnik JM, Leveille SG. Race, ethnicity and health outcomes – unraveling the mediating role of socioeconomic status. Am J Public Health 1997; 87(5): 728-9.
29. Krieger N. Epidemiology and the web of causation: has anyone seen the spider? Soc Sci Med 1994; 39(7): 887-903.
30. Mello-Filho DA. Antinomias e "suturas" epistemológicas entre o biológico-social e individual coletivo no âmbito da epidemiologia social. Rev Saude Publica 1996; 30(4):381-91.
31. Krieger N. Theories for social epidemiology in the 21st century: an ecosocial perspective. Int J Epidemiol 2001a; 30(4):668-77.
32. Susser M. The logic in ecological: I. The logic of analysis. Am J Public Health 1994, 84(5):825-9.
33. Krieger N. A glossary for social epidemiology. J Epidemiol Community Health 2001b, 55(10):693-70.
34. Krieger N. Embodiment: a conceptual glossary for epidemiology. J Epidemiol Community Health 2005, 59(5):350-55.
35. Sinhoretto J. Corpos do poder: operadores jurídicos na periferia de São Paulo. Sociologias 2005, 13:136-161.
36. Kuh D, Ben-Shlomo Y, Lynch J, Hallqvist J, Power C. Life course epidemiology. J Epidemiol Community Health, 57(10):778-83.
37. Kaplan GA. What´s wrong with Social Epidemiology, and how can we make it better? Epidemiol Ver 2004, 26:124-35.
38. Muntaner C. Invited commentary: social mechanisms, race, and social epidemiology. Am J Epidemiol 1999, 150(2):121-126.
39. Young RM. Science, ideology and Donna Haraway. Science as Culture 1992; 15(3):162-207.
40. Laqueur T. Inventando o sexo. Corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 2004.
41. Stepan NL, Gilman SL. Apropriating the idioms of science. The rejection of scientific racism. In: Harding S, organizador. The "Racial Economy of Science – Toward a democratic future. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press; 1993. pp. 170-93.
42. Stoler AL, Cooper F. Between metropole and colony. Rethinking a research agenda, In: Cooper F, Stoler AL, organizadores. Tensions of empire. Colonial cultures in a bourgeois world. Berkeley and Los Angeles: University of California Press; 1997. p.1-56.
43. Foucault M. História da sexualidade I. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1988.
Josué Laguardia
Doutorando da Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua do Russel, 404/504, Glória. 22.210-010 Rio de Janeiro RJ.
Ciência & Saúde Coletiva v.12 n.1 Rio de Janeiro jan./mar. 2007
Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
|
|