Raça e epidemiologia: as estratégias para construção de diferenças biológicas

Enviado por Josué Laguardia


  1. Resumo
  2. Introdução
  3. Raça, epidemiologia e inferência causal
  4. Raça e doença fora da caixa
  5. Conclusão
  6. Referências

RESUMO

Nas controvérsias atuais sobre raça e diferença racial nos agravos à saúde, a epidemiologia é vista como detentora de autoridade para confirmar ou refutar a verdade científica dessas diferenças. Ao apontar as discussões sobre as limitações da epidemiologia dos fatores de risco, vertente hegemônica nas abordagens epidemiológicas, buscou-se destacar nesse artigo o caráter ideológico dos pressupostos causais e as estratégias epistemológicas que reiteram e reificam as diferenças raciais na saúde com base no determinismo biológico e no reducionismo estatístico. O objetivo deste trabalho é destacar as possibilidades de contestação de algumas interpretações dos achados epidemiológicos sobre diferenças raciais na saúde, enfatizando os aspectos políticos e ideológicos da ciência e provendo os investigadores de argumentos que ajudem a superar o racialismo que permeia algumas hipóteses causais acerca da diversidade humana e doença.

Palavras-chave: Raça, Epidemiologia dos fatores de risco, Determinismo biológico

Race and epidemiology: strategies to build on biological differences

ABSTRACT

In the current controversies about race and racial differences in health, epidemiology is seen as the authority that confirms or refutes the scientific truth of these differences. Pointing out the current discussions about the limitations of risk factor epidemiology, hegemonic branch of the epidemiological approaches, it is the aim of this article to highlight the ideological character of the causal assumptions and epistemological strategies that restate and reify the racial differences in health based on biological determinism and statistical reductionism. The objective of this work is to highlight the possibilities of contestation of some interpretations about epidemiological findings on racial differences in health, emphasizing the political and ideological aspects of science and providing the investigators with arguments that can help to overcome the racialism that permeates certain causal hypothesis about human diversity and disease.

Key words: Race, Risk factor epidemiology, Biological determinism

Introdução

As questões relativas a quem, quando e como adoecem e morrem as pessoas remetem a crenças e valores culturais particulares que, por sua vez, vão influenciar as teorias científicas de causalidade, as percepções da natureza do risco e da responsabilidade pela ocorrência das doenças, assim como os padrões de comportamento social, organização e dispensa de cuidado em saúde1. No campo da saúde, ao longo do século XX, a epidemiologia alcançou um status privilegiado na formulação de um saber científico que congrega crenças e valores sobre a determinação e a ocorrência dos processos de saúde e doença ao longo de distintos grupos populacionais definidos segundo características demográficas, econômico-sociais e culturais, dentre as quais, se destaca a raça.

No que tange às questões raciais na saúde, o papel destacado da epidemiologia é devido, em parte, às suas raízes históricas como herdeira do racialismo sócio-médico que sustentava, nas primeiras décadas do século passado, a concepção de que a doença e outras anormalidades podiam ser avaliadas de forma mais adequada em termos de características anatômicas racialmente herdadas e o pressuposto de que os traços africanos eram indicadores da suscetibilidade à doença. Tapper2 ressalta que ambas disciplinas promovem a noção de peculiaridade ou diferença racial, compartilham o pressuposto de uma especificidade anatômica racialmente herdada nos negros, onde hereditariedade e raça desempenham um papel importante na classificação de determinadas doenças e as taxas de incidência dessas doenças, tidas como expressões inequívocas de especificidades raciais, servem para classificar populações ou raças. O que as diferencia é o fato de que o racialismo sócio-médico apoiava-se nos critérios fenotípicos da antropologia do século XIX e colocava o corpo negro como inerentemente doente; a epidemiologia atribui o desajuste desse corpo às condições genéticas.

O uso de variáveis como raça e etnicidade nos estudos epidemiológicos tem tido um papel instrumental na identificação e documentação dos padrões de saúde entre determinados grupos populacionais, no controle de presumíveis fatores de risco potencialmente confundidores e na revelação de iniqüidades em saúde. Entretanto, os recortes raciais ou étnicos não estão isentos de tensões e questionamentos quanto aos aspectos epistemológicos, metodológicos e da capacidade explicativa dos constructos e categorias utilizados nesses estudos. As questões relativas à definição, mensuração e validade do uso da variável raça e suas limitações na captura de similaridades biológicas ou genéticas e de pertencimento étnico tem sido o objeto de reflexão crítica de pesquisadores na saúde pública1,2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14.

Em consonância com o interesse crescente no uso da raça nas investigações em saúde, nota-se também a emergência de uma literatura epidemiológica que trata as diferenças na incidência de agravos entre grupos étnicos ou raciais, atribuindo um papel causal às particularidades biológicas desses grupos. A atribuição biológica na etiologia das iniqüidades em saúde, segundo Sankar et al.15, reforça uma crença de que o status de saúde é primariamente uma função de características inerentes ao indivíduo ou do seu grupo étnico, apoiando-se em um modelo genético no qual a raça é vista como reflexo da homogeneidade biológica e cujas diferenças entre os grupos étnico-raciais são geneticamente determinadas.

O predomínio de hipóteses causais que privilegiam o modelo genético poderia ser atribuído à abordagem metodológica – p.ex., ausência de ajustes para o controle do efeito dos fatores socioeconômicos que afetariam as comparações raciais. Entretanto, o que se observa é que, face à persistência da associação entre raça e doença, mesmo após o ajuste para fatores socioeconômicos e ambientais, as explicações causais recaem sobre hipóteses genéticas, ignorando que outros modelos explicativos poderiam ser obtidos com a inclusão de novas variáveis nesses estudos e, conseqüentemente, a anulação dessa associação. McDermott16 alega que o forte apelo sociobiológico das hipóteses genéticas levaria à persistência dessa prática entre os epidemiologistas, dado que esses profissionais operam dentro de um paradigma teórico de doença fortemente reducionista e determinista e que, na ausência de genes culpados, buscam nas evidências epidemiológicas o apoio científico para suas hipóteses genéticas, especialmente nas doenças que apresentam uma agregação familiar.

Entretanto, a opção pelo abandono do uso da variável raça na saúde, por se tratar de uma relíquia histórica do desejo humano de categorizar os indivíduos17, ou sua substituição como conceito crítico, em prol da reativação de outras sensibilidades políticas18, deve considerar quais os processos que sustentam a ênfase no caráter biológico da etiologia racial nas doenças. Tomando em consideração as discussões presentes na literatura científica, buscou-se destacar nesse artigo o caráter ideológico dos pressupostos causais e as estratégias epistemológicas que reiteram e reificam as diferenças raciais nos estudos epidemiológicos.


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