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Peter Pan, uma leitura inglesa no sítio do Picapau Amarelo (página 2)

Adriana Silene Vieira

2. Peter Pan lido pelas personagens do Sítio

O segundo momento é quando Dona Benta narra a história de Peter Pan, que passa a ser conhecida pelas crianças do Sítio. Só então a história é lida pelas outras personagens. Desse modo, a história de Peter Pan, antes guardada no livro e escrita em inglês, passa ao conhecimento dos ouvintes de Dona Benta, público falante de outra língua.

Para que a recepção aconteça, a narradora não só traduz a história, mas também explica termos intraduzíveis, modifica situações e usa artifícios para despertar o interesse de todos. Agindo assim, contextualiza e, de certa forma, tropicaliza a história narrada, dando elementos para que ocorra o tipo de leitura oral, compartilhada por um grupo que ouve atenta e interessadamente uma contadora de histórias, relação esta de que fala Chartier:

(...) a leitura não é somente uma operação abstrata de intelecção; ela é o engajamento do corpo, inscrição num espaço, relação consigo e com os outros6.

Vejamos a seguir, como se dá a relação entre a narradora, os ouvintes e o texto em questão.

2.1. A Narradora

Antes da obra Peter Pan, a série de obras infantis de Lobato já tinha registrado o costume de se contarem histórias no Sítio do Picapau Amarelo. E Dona Benta, a principal narradora, usava a estratégia, já posta em circulação pela tradição do folhetim, de criar certo suspense, adiando a história, ou trechos dela que fossem mais interessantes, para o capítulo e o dia seguinte. No caso da obra Peter Pan, ela interrompe a narração para continuar no dia seguinte, às sete horas, de forma que o momento passa a ser esperado com ansiedade pelos ouvintes.

Sua narrativa apresenta várias características de oralidade, que serão apresentadas a seguir.

Em primeiro lugar ela conta a história de forma resumida, dando mais ênfase às cenas de ação e diálogo, como o encontro entre Wendy e Peter Pan. Ela assim faz porque o que mais interessa a seu público são as aventuras ocorridas com as personagens.

Com relação ao vocabulário, podemos observar que Dona Benta utiliza gírias da época, que hoje já caíram em desuso. Porém tais gírias serviram a seu propósito – reproduzir uma linguagem usada na oralidade. Alguns exemplos dessas gírias são:

"Tamanha gabolice espantou Wendy. Ela havia consertado a sombra e o prosa chamava para si as honras"7.

"É verdade isso Peter? Há mesmo fadas ou você está a mangar comigo?8

A oralidade da narrativa de Dona Benta também se explicita em frases como "O pai chamava-se não sei que Darling.9, ou então "Bola de fogo mágica não pega fogo nas coisas"10. Além disso, a narradora, em diversos momentos usa de onomatopéias, como por exemplo ao comentar sobre a fala de Sininho:

Uma fada que fazia tudo que as outras fazem, menos falar. Sua fala não passava daquele tlin, tlin, tlin de campainha de prata.11

Uma das características da narrativa de Dona Benta – que apresenta semelhanças com o narrador oral comentado por Walter Ong – é a de aproximar os fatos narrados do cotidiano no qual se conta a história:

"(...) oral cultures must conceptualize and verbalize all their knowledge with more or less close reference to the human lifeworld, assimilating the alien, objetive world to the more immediate, familiar interation of human beings."12

Essa aproximação entre os fatos narrados e o cotidiano no qual se conta a história pode ser observada na narrativa de Dona Benta, cuja preocupação é fazer com que seus ouvintes assimilem a obra inglesa, tornando o mundo de Peter Pan mais próximo do mundo de seus leitores.

Para que a interação se dê, a narradora interrompe sua história a quase todo momento para explicar nomes, situações e locais que fazem parte da outra cultura. Exemplo é a explicação do que vem a ser uma nursery.

Nursery ( pronuncia-se nârseri) quer dizer em inglês quarto de crianças. Aqui no Brasil quarto de criança é um quarto como outro qualquer e por isso não tem nome especial. Mas na Inglaterra é diferente. São uma beleza os quartos das crianças lá, com pinturas engraçadas rodeando as paredes, todos cheios de móveis especiais, e de quanto brinquedo existe13.

Ao explicar sobre a nursery e seus brinquedos, Dona Benta desperta a curiosidade das personagens como Emília, que pergunta se lá na Inglaterra existe "boi de chuchu". A isso ela responde:

Talvez não tenha, porque boi de xuxu (sic) é brinquedo de meninos da roça e Londres é uma grande cidade, a maior do mundo. As crianças inglesas são muito mimadas e têm os brinquedos que querem. Os brinquedos ingleses são dos melhores14.

Através dessas observações de Dona Benta sobre os brinquedos, fica implícita a idéia de que a família de Wendy seja rica, por ter condições de dar um quarto com bons brinquedos para os filhos15.

Porém, na obra original, constatamos que a família de Wendy era considerada pobre em relação a outras famílias inglesas. Um dos indícios do texto nesse sentido é o fato de a vinda de Wendy trazer despesas para a família, representando "mais uma boca para comer":

For a week or two after Wendy came it was doubtful whether they woud be able to keep her, as she was another mouth to feed16.

Em outro momento, o texto original mostra que a babá das crianças inglesas era uma cachorra pelo fato de eles não poderem pagar uma pessoa para tomar conta dos filhos e levá-los à escola.

Mrs. Darling loved to have everyting just so, and Mr. Darling had a passion for being exacty like his neigbours; so, of course, they had a nurse. As they were poor, owing to the amount of milk the children drank, this nurse was prim Newfoundland dog, called Nana, who had belonged to no one in particular until the Darlings engaged her17.

Observamos que Dona Benta não comenta sobre a situação dos pais de Wendy em relação à sociedade inglesa. Seu objetivo é apenas explicar a seus netos o que vem a ser o quarto das crianças inglesas e seus brinquedos, de forma que estas compreendam certas diferenças existentes entre estas e as brasileiras.

Em vários outros momentos a narradora aproxima os fatos da história do cotidiano de seus ouvintes. Mas às vezes esta aproximação se dá por conta deles mesmos, de modo que ela sugere e seus ouvintes praticam uma recepção ativa:

(...) Gêmeo era o nome dado a dois meninos realmente gêmeos e tão iguaizinhos que as mesmas roupas e o mesmo nome serviam para ambos.

(...)

Eu sei, berrou Emília. Com os livros é assim. Há montes de livros tão iguais que tanto faz a gente pegar num como pegar noutro. A obra é a mesma.

Pois é, disse Dona Benta rindo-se da comparação da boneca. Os seis meninos perdidos eram esses tais, e naquela noite estiveram brincando até tarde, à espera de Peter Pan, que fora à cidade ouvir o resto da história da senhora Darling.

Estiveram brincando de quê? perguntou Pedrinho.

De tudo, respondeu Dona Benta. Os meninos ingleses são como vocês aqui; brincam de tudo18.

Dona Benta, como mediadora entre o texto e seus ouvintes, apresenta certas atitudes face ao texto. Uma delas é certo distanciamento irônico em relação à história, como por exemplo ao comentar sobre a mãe de Wendy:

Assustou-se, está claro, porque as boas mães se assustam por qualquer coisinha, e correu a fechar a vidraça19.

Dona Benta nem sempre é fiel ao livro. Ela adiciona ou modifica situações e às vezes adiciona palavras às falas das personagens, de acordo com aquilo que deseja transmitir a seus ouvintes. Vejamos como isto se dá no confronto de alguns trechos da versão original com a lobatiana, observando os acréscimos feitos por ela:

They are children who fall out of their perambulators when the nurse is looking the other way. If they are not claimed in seren days they are sent far away to the Neverland to defray expenses. I’m captain.

"What fun it must be!"20

Tomemos agora o mesmo no texto de Lobato:

"Meninos perdidos são os meninos que caem dos carrinhos nos jardins públicos quando as amas se distraem a namorar os soldados. Se as mães não conseguem encontrá-los no prazo de quinze dias, eles são remetidos para a Terra do Nunca, onde quem manda sou eu.

Que engraçado! Exclamou Wendy. Terra do Nunca! Está aí uma terra que eu não sabia que existisse. As geografias não falam dela21.

Observamos que no texto lobatiano é suprimido o comentário de que os Garotos perdidos, quando não procurados, eram remetidos à Terra do Nunca, para "que ninguém arcasse com suas despesas" (to defray expenses). No texto lobatiano, eles iriam para a Terra do Nunca se "as mães deles não conseguissem encontrá-los", o que dá nova conotação ao fato. Enquanto Dona Benta suprime essa informação, adiciona a informação de que a Terra do Nunca não se encontra nas geografias.

Na narrativa de Dona Benta há mudanças nas falas das personagens que, além de falarem português, dizem exatamente o que a narradora quer. Desse modo, nos dois exemplos, as personagens – fazem referência a livros – como Wendy falando em "geografias". A história, portanto, também é usada como pretexto para a narradora – e por trás dela Lobato – citar os livros.

Outro aspecto do texto que lembra ao leitor a ocorrência de uma história dentro de outra são as várias interrupções e retomadas que permeiam a narrativa. Há certos momentos em que a ação se volta para a cena do serão no qual Emília discute com Tia Nastácia. Logo em seguida há o retorno para a história de Peter Pan, de forma que a narrativa é sempre entremeada pela cena das personagens do Sítio ouvindo Dona Benta. Importantes também são as perguntas e comentários dos ouvintes a respeito da história, que obrigam a narradora interrompê-la para dar explicações.

Entretanto em alguns momentos certos ouvintes não estão interessados nas explicações, mas sim na história. Por isso há sempre um ouvinte impaciente que lhe pede para continuar a narrativa:

Chega de gramática, vovó! protestou a menina. Vamos à história. Os meninos estavam à espera de Peter Pan. E depois? 22

Dessa forma, percebemos que, apesar de toda a abertura dos comentários, há um certo momento em que é preciso retomar o fio da narrativa. Tal papel, de chamar de volta ao texto, pode ser desempenhado pela narradora ou, na maioria das vezes, por Pedrinho ou Narizinho.

2.2. Os ouvintes

Os ouvintes de Dona Benta são muito participativos e exigentes. Eles pedem coerência, fazem a narradora continuar quando se distrai e, além disso, comentam apaixonadamente a história, aproximando, neste comentário, ainda mais o mundo de Peter Pan de seu cotidiano. Um exemplo disso é quando Dona Benta narra as tentativas de Peter Pan de "colar" sua sombra, e Emília dá sua opinião:

Se fosse eu (...) experimentava uma bisnaga de cola-tudo...

(...) Eu, se fosse a senhora Darling...23

Emília faz outros comentários que objetivam modificar a história, como por exemplo o seguinte, em que, não contente com o fato narrado por Dona Benta, de que Peter Pan não chorava, resolve interferir na história, dando uma sugestão.

Peter Pan estava profundamente triste. Súbito, lançou-se à cama, com a cara escondida nas mãos. Dizem que chorou, mas não há certeza disso.

Ele então não chorava? perguntou Narizinho.

Não, nunca chorou, salvo, talvez, nesse dia — mas não há certeza. Peter Pan considerava o choro como coisa própria de mulher.

Eu queria esfregar cebola nos olhos dele para ver se chorava ou não, disse Emília. Já notei que cebola "comove" mais as gentes do que a história mais triste que possa haver. E depois?24

Os ouvintes, porém, fazem muito mais que emitir opiniões. Eles se envolvem com a história narrada e dão maior concretude a ela. A participação dos ouvintes, com ênfase maior no envolvimento emocional que no distanciamento objetivo, é outro índice de oralidade do livro, de acordo com as palavras de Ong:

"For an oral culture learning or knowing means achieving close, enpathetic, communal identification with the known, (...) writing separates the knower from the known and thus sets up conditions for objetivity, on the sense of personal disegangement or distancing.25

Comparando-se a forma como se dá a narrativa dentro da história do Sítio do Picapau Amarelo, com as palavras de Ong a respeito do ato de contar histórias da tradição oral, percebe-se que o modo de narrar de Dona Benta com a participação ativa dos ouvintes, retoma as características da antiga tradição.

As personagens do Sítio ajudam a tecer a narrativa e, com isso, fazem Peter Pan ganhar contornos de personagem lobatiana, pois quando a história agrada a eles é como se a personagem passasse a existir dentro de sua própria realidade. Sendo assim, Peter Pan, na história de Dona Benta já seria uma personagem diversa da criada por J. Barrie.

Algumas atitudes e comentários das outras personagens mostram seu envolvimento e identificação 26 com a história. Um exemplo ocorre quando Peter Pan se vangloria após Wendy remendar sua sombra. As crianças se identificam com Peter Pan e Wendy e trazem o conflito dos garotos ingleses para dentro da sala onde estão ouvindo a história:

"Oh, não se ofenda, Wendy! Eu tenho este defeito. (...) Quando qualquer coisa de bom me acontece, ponho-me sem querer a contar prosa. Seja boa. Perdoe-me. Reconheço que uma menina vale mais do que vinte meninos.

Isso também não! Protestou Pedrinho. Só se é lá na Inglaterra. Aqui no Brasil um menino vale pelo menos duas meninas.

Olhem outro gabola! Exclamou Narizinho.27

Dona Benta dá liberdade aos ouvintes para criarem novas aventuras a partir da história ouvida. Isso ocorre quando sugere a eles que continuem a história de Peter Pan em seus sonhos, como se vê no trecho a seguir:

Tudo dormiu. Dormiu a floresta o seu sono agitado de morcegos (...) Dormiram os piratas, e os índios, vendo o inimigo dormir, deixaram a perseguição para o dia seguinte e dormiram também. (...)

Dona Benta parou nesse ponto, achando que o melhor era também irem dormir.

Chega por hoje. O resto fica para amanhã. Agora é cada um ir para sua cama sonhar com o Capitão Gancho e o crocodilo.28

Dona Benta, mais uma vez, estabelece um paralelo entre a história narrada e o mundo do Sítio. Assim como as personagens da história de Peter Pan estariam a dormir, ela sugere a seus leitores que também o façam, aproveitando a oportunidade para encerrar a narração daquele dia.

Enquanto os netos de Dona Benta se envolvem com a história, tia Nastácia demonstra certo estranhamento em relação a ela, ao contrapô-la a seu horizonte de expectativas. Vejamos como isso se dá em momentos nos quais a personagem faz críticas à narrativa:

Aqui tia Nastácia interrompeu a narrativa para dizer:

Para mim esse menino estava embrulhando dona Wendy. Estou velha e só vi fada nas histórias29.

(...) Não entendo como é que a senhora Darling foi deixar a janela aberta. Quarto de criança a gente não deixa de janela aberta nunca. Entra morcego, entra coruja – e entram até esses diabinhos, como o tal Peter Pan30.

Tia Nastácia se recusa a aderir à fantasia e a acreditar na existência de fadas. Além disso, ao caracterizar Peter Pan como um diabinho, parece querer aproximá-lo do Saci, personagem das histórias populares.

Terminado o primeiro dia do serão, Narizinho elogia a história narrada e a compara com os contos de fadas, que já então conhecia.

Estou notando isso, vovó, disse ela. Nas histórias antigas, de Grimm, Andersen, Perrault e outros, a coisa é sempre a mesma – um rei, uma rainha, um filho de rei, uma princesa (...) As histórias modernas variam mais. Esta promete ser muito boa. Peter Pan está com jeito de ser um diabinho levado da breca31.

Pelo comentário de Narizinho, vemos uma diferença entre a narrativa de Dona Benta e as histórias dos "Contos de fadas". A avó se vale de uma história escrita e além disso contemporânea, enquanto que as outras, provenientes do folclore europeu, apresentavam enredos semelhantes. A fala de Narizinho também pode ser vista como uma crítica às "histórias da Carochinha", denominadas por ela de "emboloradas" na obra Reinações de Narizinho32..

No final da história, Emília e as crianças manifestam seu desejo de visitar o mundo do livro. Dessa forma, identificam-se tanto com as personagens da história e a Terra do Nunca que expressam o desejo de mudar-se para tal mundo ou ao menos visitá-lo. Mas o que aconteceria em obras posteriores seria o contrário: as personagens e a própria Terra do Nunca é que viriam para o Sítio.

3. De Neverland para o Sítio

O Sítio do Picapau Amarelo é um lugar mágico por natureza, que pode ser visitado por personagens de outras histórias, as quais podem também levar os netos de Dona Benta para o "mundo das maravilhas". Observamos também que as histórias em que primeiro se dá o intercâmbio entre o Sítio e outros mundos, como Cara de coruja, O irmão do Pinóquio, O gato Félix e O circo de Escavalinho, são textos anteriores a Peter Pan33.

Dessa forma, devido ao fato de já terem, anteriormente, recebido a visita de outras personagens, quando ouvem a história de Peter Pan, as crianças demonstram acreditar que a personagem inglesa também possa visitá-los.

Dona Benta alimenta ainda mais essa fantasia das crianças ao comentar que suspeita ser Peter Pan quem estaria cortando a sombra de Tia Nastácia.

Dona Benta foi de opinião que aquilo só poderia ser arteirice do Peninha, ou talvez do próprio Peter Pan, que houvesse entrado na sala às escondidas, no momento em que todos estavam mais distraídos com a história34.

No mesmo ano da publicação de Peter Pan, Lobato publica também Pena de Papagaio texto em que introduz a personagem Peninha. Por isso, as personagens se referem a essa personagem no texto:35

Estou desconfiado (...), que o tal pó mágico de Peter Pan era o nosso pó de pirlimpimpim.

E quem nos garante que o tal Peninha, que deu a você o pó de Pirlimpimpim, não seja esse mesmo Peter Pan?36

Emília, não contente em comentar apenas, acaba transpondo um elemento do texto para o contexto do Sítio, "cortando" a sombra de Tia Nastácia, da mesma forma como ouvira Dona Benta falar sobre a sombra de Peter Pan, "cortada" pela mãe de Wendy em sua versão.

Emília saíra da sala pé ante pé sem que ninguém percebesse, e logo depois voltou com a tesoura de Dona Benta na mão. E deu jeito de cortar a cabeça da sombra de tia Nastácia, que enrolou e foi guardar no fundo da gaveta37.

A partir da primeira noite, na qual Emília corta a sombra de Tia Nastácia, todos os capítulos passam a abrir-se com a cozinheira surgindo e reclamando da diminuição de sua sombra.

No outro dia, antes de Dona Benta continuar a história de Peter Pan, tia Nastácia apareceu com a sua sombra diminuída de mais um pedaço no ombro38.

Na terceira noite tia Nastácia apareceu na sala ainda mais desapontada do que na véspera. O que estava acontecendo com a sua pobre sombra era simplesmente monstruoso.

(...) Realmente assim era. O resto da sombra da pobre negra estava todo picado de buracos feitos a tesoura39.

O desaparecimento gradual da sombra de Tia Nastácia deixa todas as personagens intrigadas, até que no último capítulo o Visconde descobre ser Emília a autora de tal "reinação"

Ao final da história, quando Dona Benta narra a derrota do Capitão Gancho por Peter Pan, as personagens fazem mais comentários":

Bravos! exclamou Pedrinho. Eu sabia que ia suceder isso. Menino protegido pelas fadas acaba sempre vencendo...

Tia Nastácia arregalou os olhos.

Credo! Imaginem um menino desses aqui no sítio! Era capaz até de serrar o chifre do Quindim...40

Assim, observamos que a história narrada vai aos poucos sendo apropriada pelo universo dos leitores. Os ouvintes terminam a história desejando que Peter Pan viria visitá-los um dia, o que acabaria ocorrendo nas obras Memórias da Emília (1936) e O Picapau Amarelo (1939).

Concluindo

O Peter Pan lobatiano é um texto que se utiliza de uma contadora de histórias para apresentar uma versão do Peter Pan inglês. Essa contadora tem em primeiro lugar a função de leitora e, em segundo, de transmissora da leitura.

Quando conta a história, Dona Benta procura envolver os ouvintes com o texto, aproximando-o do quotidiano destes. Assim, a história contada por ela sofre mudanças em função dos ouvintes, que ajudam em sua recomposição.

Desse modo, criando o espaço do serão dentro das histórias do Sítio, o autor parece convidar o leitor infantil a tomar também de uma poltrona e participar da história, pois, se as crianças do Sítio têm o direito de questionar aquilo que ouvem, ele também teria o direito de questionar as histórias lobatianas.

Parece paradoxal a situação de oralidade sendo representada dentro de um livro, além de a história contada ser tirada de outro. Entretanto, a presença de uma contadora de histórias dentro de uma obra escrita teria o objetivo de sugerir uma aproximação entre ambas as formas narrativas e, se a oralização de um texto escrito pode torná-lo mais interessante para a criança como receptora, a representação de uma situação de oralidade pode cativar o leitor. Dessa forma, Lobato mostra que o livro pode estar ao alcance de todos. E no caso da obra Peter Pan o autor ressalta a importância de Dona Benta como mediadora, pois, se não fosse lido, Peter Pan continuaria preso no livro e portanto desconhecido das personagens do Sítio e do leitor brasileiro.

BIBLIOGRAFIA

BARRIE, James. Peter Pan. New York. Apple Classics, 1993.
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília e Peter Pan. São Paulo. Brasiliense, 1952.
_________________. Reinações de Narizinho. São Paulo. Brasiliense, 1952.
LAJOLO, Marisa. Literatura infantil brasileira, história e histórias. São Paulo. Ática, 1985.
______________. Da leitura do mundo para o mundo da leitura. São Paulo. Ática, 1982.
ZILBERMAN, Regina. Atualidade de Monteiro Lobato. Porto Alegre. Mercado Aberto. 1983.
CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Brasília. Editora Universidade de Brasília, 1994.
ONG, Walter. Orality and Literacy. London and New York. Methuen, 1982.
LORD, Albert B. The singer of tales. Harvard University Press, s.d.

 

Adriana Silene Vieira

asvieira69@hotmail.com



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