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Essas diferentes sociedades tinham diferentes noções de infância, muitas vezes contrastantes. Para os grupos sociais intermediários entre a aristocracia rural e a alta burguesia que começava a firmar-se nos crescentes cenários urbanos, a infância passava a ser concebida de acordo com padrões europeus surgidos na esteira das mudanças de costumes e de organização social trazidas pelas revoluções burguesa e industrial:
A preservação da infância impõe-se como valor e meta de vida (...). A criança passa a deter um novo papel na sociedade, motivando o aparecimento de objetos industrializados (o brinquedo) e culturais (o livro) ou novos ramos da ciência (a psicologia infantil, a pedagogia ou a pediatria) de que ela é destinatária. Todavia, a função que lhe cabe desempenhar é apenas de natureza simbólica, pois se trata antes de assumir uma imagem perante a sociedade, a de alvo de atenção e interesse dos adultos, que de exercer uma atividade econômica ou comunitariamente produtiva, da qual adviesse alguma importância política e reivindicatória.
A natureza simbólica da infância que os adultos desses grupos sociais pretendiam preservar parece ter assumido contornos de inocência e felicidade inerente quase míticas, talvez provocados por qualidades atribuídas à criança como a fragilidade, a inocência e a dependência. A infância parece ter se assemelhado, no imaginário dessas classes, a uma "risonha manhã", a uma época caracterizada pela alegria e pela ternura, que os versos românticos de Casimiro de Abreu (1839-1860) podem ter auxiliado a popularizar :
Como são belos os dias
Do despontar da existência!
Respira a alma inocência,
Como perfumes a flor;
O mar é lago sereno,
O céu um manto azulado,
O mundo um sonho dourado,
A vida um hino d’amor!
(...)
Oh! dias de minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Entretanto, a mesma elite que aclamava os versos de Casimiro de Abreu e a doçura do mundo infantil que retratam proporcionava a seus filhos práticas culturais e escolares cujo resultado era a criação de uma infância macambúzia. É com esses termos que outro poeta, Olavo Bilac (1865-1918), intitula uma crônica de 1908, em que recorda seus tempos de criança:
(...) nunca fui verdadeiramente menino e nunca fui verdadeiramente moço.
A cousa não teria importância, se fosse uma desgraça acontecida a mim somente: mas foi uma desgraça que aconteceu a toda uma geração. Toda a gente do Rio, que tem hoje a minha idade, deve estar sentindo, ao ler estas linhas, a mesma tristeza.
Fomos todos criados para gente macambúzia, e não para gente alegre.
Nunca nos deixaram gozar essas duas quadras deliciosas da vida que em que o existir é um favor divino. Os nossos avós e os nossos pais davam-nos a mesma educação que haviam recebido: cara amarrada, palmatória dura, estudo forçado, e escravização prematura à estupidez das fórmulas, das regras e das hipocrisias. (...)
"É preciso estar quieto! É preciso ser sério, é preciso ser homem!".
Tanto nos recomendaram isso, que ficamos homens. E que homens! Céticos, tristes, de um romantismo doentio... (...)
Olavo Bilac aos nove anos.
Os "avós e pais" dos homens que formavam a elite brasileira, na época em que Bilac publicou seu desabafo, provavelmente haviam recebido uma educação que, segundo Nelson Werneck Sodré, associava a "idéia de instrução à idéia de castigo" e tendia a ser, nas poucas escolas existentes, "universalista e enciclopédica" . Durante o Império, as crianças das classes altas recebiam, em casa ou nos poucos colégios existentes, uma educação de tipo "aristocrático, destinada antes à preparação de uma elite do que à educação do povo" ; uma educação que, de acordo com a descrição de Fernando de Azevedo, fornece tintas sombrias à idealizada imagem de "sonho dourado" que caracterizava, para os adultos, o mundo infantil:
Nesse regime de educação doméstica e escolar, próprio para fabricar uma cultura antidemocrática, de privilegiados, a distância social entre os adultos e as crianças, o rigor da autoridade, a ausência de colaboração da mulher, a grande diferença na educação dos dois sexos e o predomínio quase absoluto das atividades puramente intelectuais sobre as de base manual e mecânica, mostram em que medida influiu na evolução de nosso tipo educacional a civilização baseada na escravidão. O menino tratado de resto ou "como um demônio, passada a fase de ser considerado como um anjo, que era até cinco ou seis anos", nas expressões de Gilberto Freyre, quando não usa batina, nos colégios, veste-se de sobrecasaca preta ou "com todo o rigor de gente grande, com a diferença apenas das dimensões", para se desforrar, já rapazes, na indisciplina das escolas superiores, do regime de autoridade em que pais e mestres haviam asfixiado a sua natureza de meninos... É esse aspecto triste e sombrio, com que se apresentam meninos e meninas, todos com ares de adultos, é essa precoce maturidade exterior, nos trajes e nas maneiras, que levou um viajante estrangeiro do Brasil desse tempo "um país sem crianças".
A reclusão das meninas e a aparência grave dos meninos das classes altas brasileiras impressionou os missionários norte-americanos Daryl P. Kidder e James C. Fletcher, que visitaram o país nas décadas de 1830 e 1840. No livro O Brasil e os Brasileiros , editado em 1845, Kidder relata a idéia que o Dr. Manuel Pacheco da Silva, diretor do tradicional colégio carioca Dom Pedro II, fazia sobre a educação feminina nas escolas:
O Dr. P. da S. – cavalheiro que toma um profundo interesse por todos os assuntos de educação e cujas idéias aplica com sucesso a seus próprios filhos (...) disse-me uma vez: "Desejo de todo meu coração ver o dia em que as nossas escolas para meninas sejam de tal natureza que uma jovem brasileira nelas se possa preparar, por sua educação intelectual e moral, a tornar-se uma digna mãe, capaz de ensinar a seus próprios filhos os elementos da educação e os seus deveres para com Deus e os homens: para esse objetivo, Sr., é que estou me esforçando".
Escolas como essa estão aparecendo, e algumas excelentes; mas, em oito em dez casos, os pais brasileiros pensam ter cumprido o seu dever mandando sua filha cursar, durante alguns anos, uma escola de moda, dirigida por estrangeiro: - quando completam treze ou quatorze anos, são daí retiradas, acreditando o pai que sua educação está completa. Se é rica, está desde logo preparada para a vida, e pouco depois disso o pai apresenta-lhe alguns dos seus amigos, com a consoladora observação: "Minha filha, este é o teu futuro esposo".
Já a educação do menino brasileiro, segundo Kidder, "é melhor do que a de sua irmã". Para o missionário, no entanto, há nessa educação "uma grande dose de superficialidade", pois o jovem
é transformado num "pequenino velho" antes de ter doze anos de idade, com seu chapéu duro de seda preta, colarinho em pé e bengala; e na cidade, anda como se todos estivessem olhando para ele, e como se o houvessem enfiado num colete. (...) É mandado na mais tenra idade para um colégio onde cedo adquire o conhecimento da língua francesa, e os rudimentos comuns da educação em português. Embora os pais residam na cidade, fica interno no colégio e somente em certas ocasiões é visitado.
O modo de educar as crianças não mudou muito nos primeiros anos logo após a proclamação da República; o modelo social republicano, caracterizado pela valorização do saber e por campanhas pela alfabetização e pela escola, só começaria a se impor a partir da década de 1920. Até o final do século XIX, e durante as primeiras décadas do século XX, a criança brasileira parece ter continuado a ser vista e tratada como um "projeto de adulto".
Essa visão aparece em crônica de João Vieira de Almeida publicada pelo jornal feminista A Mensageira, de 15 de dezembro de 1897. Almeida, então professor de português da Escola Normal de São Paulo, "convoca" as crianças leitoras para uma entrada precoce na vida adulta, em nome da "Pátria":
Este é o mez das creanças!
Ainda bem não deixaram ellas os livros e se voltam já
para as gulodices!
Férias e arvores do Natal!...
* * *
Felizes vós, ó pequeninos seres, que vos não tendes de preocupar com a baixa do cambio, nem com as difficuldades da venda do café.
Bem sabeis que o papá, mourejando noite e dia, sempre vos dará o vosso livro novo de classe; ou vos sorprehenderá, na madrugada de Natal, com o presente do... velho da montanha!...
Não podeis comprehender, e bem hajais por isso, as amarguras que traga o vosso progenitor, ao ter de vos dar o necessario, para a vossa educação! (...)
Entretanto, taes não devem ser as aspirações da mocidade...
A eterna distracção, a sêde insaciável de divertimentos, é a partilha dos espiritos futeis e da incapacidade doirada...
Outras devem ser as ideias, pelas quaes deveis luctar!... (...)
Em vós, ó moços, unicamente em vós, é que confia esta patria, pobre mãe amargurada!...
Dae tregoas ás futilidades que vos preocupam e attendei aos seus rogos sentidos!
Quando a nossa mãe padece, não é justo, não é decente que nos entreguemos ao prazer.
E a patria sofre e a patria reclama o concurso de todos os seus filhos!...
Accostumai-vos, desde já, a encarar o lado serio da existencia.
Atacae firmes e resolutos o problema da vida!...
Começae a ser homens!...
E os meninos começavam bem cedo, se não a ser, a aparentar ser homens:
A partir dos doze anos, o menino já não podia mais vestir roupa de criança - blusa à marinheiro, branca ou vermelha, e calças azuis, por exemplo. Passava a usar trajes de homem, comprados no Bon Diable ou na Ville de Paris. Quanto à menina, basta dizer que o maior elogio que recebia era o de ser "uma verdadeira mocinha". Suas saias, que até os dez anos andavam pelo meio das canelas, passavam progressivamente a se encompridar. Mantendo mais contato íntimo com as amas e governantas do que com os pais, as crianças dirigiam-se a estes como "Vossa Mercê", "Senhor Pai" e "Senhora Mãe", pedindo-lhes a bênção com a cabeça reclinada e as mãos entrelaçadas. Eram adultos em miniatura .
As representações de crianças reproduzidas a seguir, que aparecem em anúncios do período – assim como os retratos infantis – parecem confirmar a idéia de que eram miniaturas de adultos:
Anúncio da "Revista da Semana", de 19/03/1918, que mostra uma criança
vestida como se fosse um adulto em miniatura, inclusive fumando.
Fotografia de sala de aula feminina que ilustra o livro Histórias da nossa terra, de Julia Lopes de Almeida, publicado em 1907.
Meninos de terno enfeitam a capa do livro Poesias Infantis, de Olavo Bilac (1904)
A roupa que Monteiro Lobato (com as irmãs Judite e Ester) veste, em foto da década de 1880 ,
é muito parecida com o "costume" da criança do anúncio abaixo...
... extraído de "jornais brasileiros do fim do século XIX e do começo do XX" . Por sua vez,
esse costume é muito semelhante ao da personagem exibida na página seguinte...
...que ilustra o conto "Um homem", de Olavo Bilac. (Contos Pátrios, 1904).
O menino da ilustração é considerado "um homem" no conto porque assume a liderança da família após a morte do pai.
São, pois, dados de diferentes linguagens, que confirmam o que diz Gilberto Freyre, para quem
Menino ou menina (...) trajava-se à européia. Havia vestidos e roupas para crianças, importados da Europa ou copiados de figurinos europeus, que eram verdadeiras torturas para os párvulos, obrigados a ostentar golas de pelúcia e casacas de veludo, sob o sol forte do trópico brasileiro. Para o menino, proclamada a República, tornou-se trajo comum, entre a burguesia, o uniforme de Marinheiro Nacional: branco e gola azul, gorro, também azul, apito no bolso. Alguns colégios da época começaram a exigir dos alunos uniforme e boné de algum modo militares: homenagem indireta ao exército que estabelecera o novo regime, depois de ter vencido a guerra com o Paraguai. Não poucos pais faziam o cabeleireiro cortar o cabelo dos filhos à escovinha.
Essa por assim dizer precoce maturidade para a qual as crianças são empurradas manifesta-se também no registro de Edgard Cavalheiro, quando ele conta que Monteiro Lobato, ao procurar lembrar-se dos fatos que mais o impressionaram entre os seus 12 e 15 anos, destacou dois, "dos quais guardara nítida imagem" .
O primeiro referia-se à "enorme vergonha que sentiu", aos 12 anos, quando foi obrigado a usar a primeira calça comprida. O segundo foi a revelação, feita por um amigo mais velho, "de como nascem as crianças" – revelação que, por sinal, não o convenceu de todo, tamanha a "surpresa". As crianças era vestidas como adultas, mas procurava-se mantê-las "inocentes" com relação a assuntos considerados "de adultos", como o sexo.
Aos 12 anos, Lobato já era fotografado de terno :
Monteiro Lobato "começou a sentir-se gente grande quando ficou decidido que iria prestar os exames em São Paulo. Estava com treze anos". Na capital, vive como estudante interno no Instituto de Estudos e Letras, onde "se afirma como um dos bons alunos" e funda com colegas o jornalzinho "O Guarani". Em uma das edições, registra as principais ocorrências da vida colegial, entre as quais avulta a narração das brincadeiras da época:
No pátio, leitores, andamos regularmente, e os jogos preferidos têm sido a bolinha e o bilboquê. Além desses têm andado em voga alguns outros: a malha, o pião, e o "que-pau-é-este"?
Neste resgate do mundo dos jogos infantis encontramos outra via de acesso às convergências e divergências das várias "construções" de infância vigentes na época, a propósito da qual Gilberto Freyre relata a convergência ao registrar, por exemplo, que os brinquedos das crianças deste período foram "quase os mesmos, do Norte ao Sul do País":
Para as meninas, as bonecas, que para as meninas de famílias ricas ou remediadas, eram importadas da Europa e em geral louras. Criavam às vezes nestas meninas, tantas delas morenas ou de famílias morenas, desgosto ou insatisfação com sua condição de trigueiras; o desejo de terem filhos ou filhas louras como as suas bonecas e como a maioria dos santos e anjos das capelas (...) Sobre os meninos do mil e novecentos brasileiro exerceria influência semelhante (...) o Chiquinho d’O Tico-Tico, menino louro e subeuropeu, que era idealizado um tanto em contraste com o muleque [sic] que o acompanhava: muleque [sic] muitas vezes posto pelo caricaturista em situações cômicas.
Menos europeizantes foram, entre nós (...), os brinquedos e os jogos predominantes entre os meninos: pião, papagaio, peteca, barra, manja, queda-de-braço, imitação de circos, de batalhas (...). Isto antes de se ter verificado a invasão do Brasil civilizado, do Norte a Sul do País, pelo velocípede e pela bicicleta – brinquedos de meninos ricos; e também pelo futebol (...).
Chiquinho e Benjamin, personagens da revista infantil O Tico-Tico . Inaugurada em 1905, a publicação contou com a colaboração de grandes artistas, como Angelo Agostini e J. Carlos, e influenciou, durante sua longa permanência no mercado editorial, a construção do imaginário infantil nacional .
Ao registrar o "contraste" entre a imagem loira do Chiquinho de O Tico-Tico, e o moleque Benjamim, que era seu coadjuvante, Gilberto Freyre abre espaço para a indagação: Mas como era a vida do "muleque" brasileiro, retratado n’O Tico-Tico como o contraste do menino louro e "subeuropeu"? Parece que longe de ser cômica, a vida das crianças brasileiras das classes baixas era muito dura. A sobrevivência de brancos pobres, de mestiços e de negros libertos foi caracterizada, nesta época de transição, pelas constantes migrações – pelo interior do país e rumo às grandes cidades:
(...) eram as transumâncias que lhes davam maleabilidade necessária para escapar da penúria e da fome, da violência que se entrelaçava ao mandonismo local e aos recrutamentos forçados, que permitiam que fosse contornada a posse desigual das terras, dos latifúndios, fugir das intempéries que invibializavam o sobreviver. Eixo sobre o qual se estruturava o modo de vida de largos contingentes, a mobilidade transparecia na posse exígua de bens, na concepção das roças, na própria maneira de construir as casas (...)
Casas construídas nos limites das grandes propriedades, "cuja qualidade maior era a possibilidade de ser abandonadas" . Seus moradores viviam de serviços esporádicos e da produção de pequenas roças; como a personagem tio Barnabé, de Monteiro Lobato, ex-escravo que mora em um rancho de sapé localizado em um dos limites do Sítio do Picapau Amarelo. Parece que tio Barnabé, contador de histórias que inicia os netos de Dona Benta na "cultura popular", condensa e concentra em sua figura secundária as características de uma extensa camada social da população brasileira:
Os estudos realizados sobre essa camada social que se espraiava por vastas extensões geográficas, composta de tipos regionais distintos e de graduações sociais que iam de pequenos proprietários e arrendatários a simples ocupantes das terras, agregados, meeiros e parceiros, trabalhadores ocasionais e diaristas, tem indicado uma certa regularidade nos padrões de sua organização. Costuma-se dizer que viviam em torno de mínimos vitais: uma economia voltada para a produção dos gêneros necessários para o consumo e para a formação de pequenos excedentes, obtida basicamente por meio do trabalho familiar; uma sociabilidade que se estendia das células familiares às relações de vizinhança e aos grupos condensados em torno de unidades sociais um pouco mais amplas, pequenas vilas, arraiais, bairros rurais, no geral de população rala; relações de dominação marcadas por padrões personalistas que se substanciavam em direitos e obrigações, freqüentemente o uso da terra outorgada pelo proprietário em troca de serviços, do pertencimento a clientelas que formavam a base dos apoios políticos e eleitorais dos poderes locais; e, finalmente, uma vida religiosa e uma cultura popular cadenciada por ritos do catolicismo rústico, por festas e comemorações dos santos de sua devoção, por uma forte tradição oral expressa nas modas de viola, nos sambas e batuques rurais, nos cateretês, cururus, cocos, etc.
Essa população, de forte "tradição oral", vivia, portanto, sob conceitos muito distintos daqueles pretendidos para o país pela elite brasileira. A foto abaixo , tirada por Monteiro Lobato em 1913, no interior de São Paulo, é bastante sugestiva do estilo de vida da gente pobre na zona rural. A casa de pau-a-pique, a pequena roça e a exigüidade de pertences parecem representar, com poucas variações regionais, as condições de sobrevivência do brasileiro pobre das primeiras décadas do século XX.
Mas, se até o final do século XIX a maioria da população brasileira vivia no campo, a partir das primeiras décadas do século XX a equação passou a se inverter. Levas de migrantes e imigrantes chegavam às grandes cidades, que não tinham infra-estrutura para acomodar e empregar os novos moradores:
Estreitadas ainda nos seus cenários coloniais, vivendo fases de uma industrialização incipiente, numa economia aferrada mais aos setores de serviços e aos negócios da exportação do que às atividades produtivas propriamente ditas, passando por crises cíclicas de carestia e aumento dos preços de gêneros, de moradias e de aluguéis, as cidades cresceram na multiplicação da pobreza, das precárias condições de vida e principalmente na diversidade de tipos étnicos e sociais que compunham as camadas populares. Mais do que isso, as transformações se deram no contexto de uma urbanização abrupta que se cimentava em formas improvisadas, levando o viver nas cidades a ser marcado pelas contingências de um provisório que muitas vezes se convertia em estrutura perene .
Parece que é exatamente a essa urbanização degradada e degradante que Lobato estava se referindo no conto "O Fisco" (Negrinha, 1920), quando alude às casinhas que surgiam como "cogumelagem" , tamanha a rapidez com que eram erguidas na periferia de São Paulo:
Quando lá no Oeste a terra roxa se revelou mina de ouro das que pagam duzentos por um, a Itália vazou para cá a espuma da sua transbordante taça de vida. E São Paulo, não bastando ao abrigo da nova gente, assistiu, atônito, ao surto do Brás.
Drenos sangraram em todos os rumos o brejal turfoso; a água escorreu; os espavoridos sapos sumiram-se aos poucos para as baixadas do Tietê; rã comestível não ficou uma para memória da raça; e, em breve, em substituição aos guembês, ressurtiu a cogumelagem de centenas e centenas de casinhas típicas – porta, duas janelas e platibanda. (...) Casotas provisórias, desbravadoras da lama e vencedoras do pó, à força do preço módico.
Nessas "casotas provisórias", a vida da criança pobre não era muito diferente da vida da população infantil da zona rural. As crianças da periferia trabalhavam para ajudar a família, como engraxates, entregadores de leite ou de jornal; eram "tarefeiros" sem vínculo empregatício, como os pais. Muitas delas trabalhavam em fábricas, principalmente na época da Primeira Guerra Mundial.
A foto seguinte mostra meninos que viviam da "indústria de trapos", reaproveitamento de "resíduos deixados pela urbanização" .
Essa foto é um bom exemplo do contraste entre os "dois Brasis", que Euclides da Cunha havia focalizado em seu livro Os Sertões, de 1902. O Brasil do litoral, segundo Euclides, era moderno e urbanizado, enquanto o do interior seria arcaico, estagnado. Parece, no entanto, que esses dois Brasis não se opunham sempre pela sua localização geográfica: ambos existiam nas grandes cidades, onde uma parte da população sobrevivia de modo arcaico, utilizando como meio de vida até mesmo o lixo da modernidade. E coexistiam na zona rural, onde uma população queimava de modo arcaico a mata vizinha de fazendas e cidades modernizadas para sobreviver.
Apesar de por vezes conviverem tão próximos geograficamente, esses grupos sociais pareciam estar irremediavelmente segregados por razões culturais, como constatou Monteiro Lobato:
Este nosso país é um assombro. Nascemos aqui, vivemos e morremos aqui e não o conhecemos. Conhecemo-lo tão pouco que quando apareceu o primeiro retrato d’après nature do jéca foi um espanto geral, e uma celeuma que durou anos e ainda é debatida. É que ninguém sabia como era o jéca - e sabem quantos jécas há neste país? Milhões. Talvez 15 milhões, isto é, a terceira parte da nação! Mas esses milhões de nacionais vivem de tal modo segregados da civilização das cidades grandes e pequenas, tão alheios à cultura geral, que somos etnograficamente um balde com dois terços de água e um de azeite – coisas imisturáveis.
Como resolver os problemas do Brasil arcaico, que impediam a entrada completa do país na modernidade? Sobre essa pergunta se debruçavam intelectuais desde os primeiros anos do século, procurando conhecer o Brasil e compreender seus contrastes. A resposta – educação – , que já aparecia estampada em livros infantis e artigos de jornais na década de 1910, começaria a circular de forma mais ampla e promover transformações no decorrer da década de 1920.
Entre 1920 e 1929, o país viveu "um clima de efervescência ideológica e de inquietação social ", marcado por revoluções e incursões armadas, perturbações nas campanhas presidenciais, reivindicações operárias, manifestos feministas, anarquistas e socialistas, pressões da burguesia empresarial, a Semana de Arte Moderna, o tenentismo, o desencadeamento do movimento revolucionário que em 1930 levaria Getúlio Vargas ao poder. Foi também um período de "fértil desenvolvimento e estruturação de idéias nacionalistas no Brasil ", que se multiplicariam nas direções mais variadas – a começar pela educação:
As primeiras manifestações nacionalistas apareceram, de maneira mais sistemática e mais influenciadora, no campo da educação escolar, com a ampla divulgação de livros didáticos de conteúdo moral e cívico, ou melhor, de acentuada nota patriótica. São obras que pretendem fornecer à criança e ao adolescente uma imagem do País adquirida por via sentimental; de modo algum isso significa desprezar muitas afirmações nacionalistas de vários intelectuais brasileiros. Ocorre que a doutrinação iniciada no campo da educação escolar repercutiu, na época, muito mais do que quaisquer outras, além do que teve maior continuidade; e com a situação criada com as colônias de imigrantes, principalmente no sul do País, e cuja consequência mais significativa foi o desencadeamento do processo de nacionalização da escola primária, aparece outro foco desses sentimentos nacionalistas.
O projeto educativo e ideológico que "via no texto infantil e na escola (...) aliados imprescindíveis para a formação de cidadãos " surgira na Europa, onde apareceram várias obras que inspirariam autores brasileiros. Entre elas, o livro italiano Cuore, de Edmond de Amicis (1886) e Le tour de la France par deux garçons, de G. Bruno (1877). A obra de Amicis foi traduzida para o português e teve grande aceitação no Brasil . Já o livro francês "foi objeto de uma adaptação mais requintada: inspirou, em 1910, o famosíssimo Através do Brasil que, escrito por Olavo Bilac e Manuel Bonfim, constituiu-se na leitura apaixonada e obrigatória de muitas gerações de brasileiros" .
Desde 1886, porém, com os Contos Infantis de Júlia Lopes de Almeida e Adelina Lopes Vieira, já se tentava fazer da leitura infantil instrumento de difusão do civismo e do patriotismo. Em 1889 surgia Pátria, de João Vieira de Almeida; em 1901, Por que me ufano de meu país, de Afonso Celso; em 1904, Contos Pátrios, de Olavo Bilac e Coelho Neto; em 1907, Histórias da Nossa Terra, de Júlia Lopes de Almeida. Estes livros, porém, eram destinados a escolares, crianças alfabetizadas – uma parcela ínfima da população:
A década de vinte herdou, do decênio anterior, a bandeira de luta contra o analfabetismo. Os dados levantados pelo recenseamento de 1920, as discussões e os estudos resultantes da conferência sobre o ensino primário de 1921 e o constrangimento que dominou o ambiente espiritual em 1922, quando ao mesmo tempo que se procurava comemorar o primeiro centenário da independência, pesava sobre a Nação uma cota de 80% de analfabetos – conforme os cálculos da época – transformaram o analfabetismo na grande vergonha do século, no máximo ultraje de um povo que vive a querer entrar na rota da "moderna civilização" .
Os entusiastas da educação – presentes nas organizações partidárias, nos grupos intelectuais, nas esferas do governo, sem falar nos colégios – acreditavam que a escolarização era o "problema vital" do país. Solucionado o problema da educação, estariam resolvidos os problemas políticos, econômicos e sociais. O brasileiro alfabetizado poderia votar e, segundo a expectativa de várias organizações políticas, faria com que o país deixasse de ser governado por oligarquias. O brasileiro educado poderia contribuir, como trabalhador qualificado, para a modernização industrial. Por fim, os contrastes sociais desapareceriam, porque a escolarização acabaria com a "ignorância popular", considerada responsável pela pobreza de grande parte dos brasileiros. Os ideais republicanos e democráticos poderiam ser cumpridos; todos os homens, por terem passado pela escola, viveriam como iguais.
Acreditava-se que a escola primária seria capaz de regenerar o homem brasileiro, e por conseqüência, a própria sociedade:
Aqui, o modelo pedagógico se transforma no instrumento da felicidade social; o pedagógico importa mais que o educacional, no sentido de que o aspecto doutrinário sobreleva o aspecto meramente informativo, a começar pelo sentido que aquele fornece a este. De um modo geral, o modelo inclui, basicamente, novos modos de formulação do programa escolar e nova instrumentação para tornar mais eficaz o trabalho docente; e, também, diversificam-se as atividades escolares e introduzem-se novos órgãos e novas práticas.
Mas a realidade social exigia ainda mais do modelo pedagógico, segundo os entusiastas da educação. Da necessidade da escola alfabetizante passa-se à exigência da escola primária integral, considerada a principal instituição formadora do caráter nacional. Tão importante quanto a escola primária seria a escola técnico-profissionalizante, porque transformaria o homem em elemento de produção, necessário à vida econômica do país. "Estabelece-se a relação entre a capacidade produtiva e a cultura técnica – começa a ser criticado o ensino livresco e abstrato, na forma de ensino acadêmico, secundário e superior" .
O ensino "livresco e abstrato", fornecido a Olavo Bilac, seus "pais e avós", também formou Monteiro Lobato. No início da década de 1910, o estudante de Direito Lobato criticaria, em um de seus primeiros artigos, a distância que esse ensino criava entre os moços das classes média e alta e as atividades econômicas:
Somos um anacronismo vestido pelo derradeiro figurino. Na mentalidade: pouco mais de 1888; nos costumes: quase 1909. Continuamos a abarrotar academias; o ideal da classe média continua a ser o funcionalismo; a tal dignidade das classes baixas, tão cômica, continua a subsistir.
Enquanto isso o estrangeiro toma todas as posições e assedia-nos economicamente. (...)
E nós os nacionais? Nós ficamos com a carrapatosa vaca do Estado e a legião dos doutores de 20 anos. E o país orgulha-se disso: desse platonismo científico! Temos doutores em leis, doutores em comércio, doutores em farmácias, doutores em dentaduras, doutores em engenharias, doutores em medicina. E academias sobre academias se fundam cá e lá, de Comércio, de Letras, de Poucas Letras, de Nenhumas Letras, de Costura.
Em 1919, Lobato, então famoso como criador do Jeca Tatu e escritor de Urupês, entusiasma-se com as possibilidades do ensino técnico, ao ler Em redor da Escola Profissional Masculina, de Aprínio Gonzaga, professor desse estabelecimento de ensino. Visita a escola e escreve sobre ela elogiosa resenha:
A sensação que aquilo dá é de entusiasmo e fé no futuro. Aqueles meninos que batem o ferro, aplainam a madeira, modelam o barro, traçam desenhos ornamentais – meninos arrancados à vadiagem das ruas – são obreiros em germem da grande pátria futura. Vão eles breve constituir a melhor força propulsora da nossa civilização. (...) Nosso mal, concordam-no todos, é o absoluto desaparelhamento técnico. Existe a massa imensa dos Jecas em baixo e o bacharelismo por cima. No meio, essa classe operosa de mecânicos, marceneiros, decoradores, eletricistas, gravadores, etc., as formigas do progresso industrial faltam-nos por completo. Daí a necessidade de importá-las. Se em São Paulo a indústria pôde alçar-se ao nível em que está, deve-o ao técnico estrangeiro importado. Mas importá-los não é a solução completa, e não é solução nacional. É mister fazê-los aqui, educando para isso as nossas crianças.
Mas a instituição que mantinha separados os "bacharéis" e os "jecas", a escola secundária, conservava os padrões tradicionais de ensino e cultura, limitando os efeitos do otimismo pedagógico:
Quaisquer traços que as outras instituições escolares, de nível primário ou médio, pudessem apresentar de novo, o julgamento dos resultados estava sempre limitado às possibilidades de articulação e acesso ao secundário. Ora, o ensino secundário manteve-se inalterado durante a década dos vinte; com isso, frustraram-se muitas conseqüências das novas orientações.
A frustração do projeto de que a educação patrocinasse a capacitação profissional e, com esta, a ascensão social dos "educados" deve-se ao fato de que o Estado ocupou-se, principalmente, em traçar normas, mas não em implantar reformas, concretizar alterações no que se denomina atualmente aparelho educacional. Isso quer dizer que
Se houve algumas alterações na qualidade do ensino, a União não colaborou para que se ampliasse a rede escolar e aumentasse o contingente da população com a possibilidade de participar dela. Para que se tenha melhor idéia da situação, bastam os seguintes dados sobre o número de escolas da administração federal, no ano de 1929: ensino superior geral (jurídico, médico-cirúrgico e farmacêutico, politécnico, etc.): 10; ensino especializado superior (agronomia e veterinário, artístico, etc): 20; ensino especializado elementar e médio: (agrícola, industrial etc): 58; instrução secundária: 6; ensino pedagógico: - ; instrução primária: 318. Esses dados definem melhor a política abstencionista da União, que se limita a presenciar o que se passa, em vez de estimular o desenvolvimento do ensino no seu aspecto mais importante, que é o da expansão da rede e da clientela escolar.
Se a política da União com relação à escolarização foi praticamente ausente, segundo Nagle, os Estados e o Distrito Federal tomaram medidas, reformando e remodelando seus sistemas escolares. Sem, porém, forçar o Governo Federal "no sentido de alterar os padrões de ensino e cultura da escola secundária e superior, quando os Estados mais "progressistas", do ponto de vista educacional, eram os mesmos que sustentavam a política dos governadores" . As reformas estaduais, entretanto, influenciadas pela doutrina da Escola Nova, foram de grande importância, porque reorganizaram o ensino primário de acordo com uma nova concepção de infância.
Sala de aula da Escola Caetano de Campos, colégio freqüentado pelas crianças da elite paulistana.
O primeiro estado brasileiro a promover uma reforma do ensino primário foi São Paulo, por meio de Antonio de Sampaio Dória, diretor da Instrução Pública, em 1920. Em 1924, Lourenço filho remodela a escola elementar no Ceará; Carneiro Leão, no Rio de Janeiro, e Lisímaco da Costa, no Paraná, também estabelecem reformulações pedagógicas. Em 1925, Anísio Teixeira, Inspetor Geral da Instrução Pública da Bahia, elabora os estatutos básicos de ensino, que vigorariam por 32 anos. Fernando de Azevedo, no Distrito Federal, e Francisco Campos, em Minas Gerais, também empreendem atividades reformadoras nos anos de 1927 a 1930.
Em 1924, é fundada, por iniciativa de Heitor Lira, a Associação Brasileira de Educação – A.B.E., que desempenharia a função de institucionalizar a discussão dos problemas da escolarização, em âmbito nacional:
(...) em torno dela se reuniram as figuras mais expressivas, entre os educadores, políticos, intelectuais e jornalistas, e sua ação se desdobrou na programação de cursos, palestras, reuniões, inquéritos, semanas de educação e conferências, especialmente as conferências nacionais de educação. Será por meio de tais iniciativas que a preocupação com os problemas educacionais se alastra e se sistematizam as discussões. Com isso, procurava realizar a sua divisa, proposta nos seguintes termos: ‘Ao cabo de um século de independência, sente-se que há apenas habitantes no Brasil. – Transformar estes habitantes em povo é o programa da Associação Brasileira de Educação’" .
Os líderes das reformas estaduais, assim como os técnicos em educação, que começavam a surgir então, e que foram estimulados pela A .B.E., eram influenciados pelas teorias da Escola Nova, que já circulavam na Europa e na América do Norte desde o final do século XIX. Estas teorias propunham uma revisão crítica da problemática educacional, baseada em uma nova forma de entender a infância:
Em confronto com a "escola tradicional", em relação à qual se colocou em termos antitéticos, a Escola Nova se fundamenta em nova concepção sobre a infância. Esta é considerada – contrariamente à tradição – como estado de finalidade intrínseca, de valor positivo, e não mais como condição transitória e inferior, negativa, de preparo para a vida do adulto. Com esse novo fundamento se erigirá o edifício escolanovista: a institucionalização do respeito à criança, à sua atividade pessoal, aos seus interesses e necessidades, tais como se manifestam nos estágios de seu ‘desenvolvimento natural’. Parte-se da afirmação de que o fim da infância se encontra na própria infância; com isso, a educação centraliza-se na criança e será esta nova polarização que será chamada de "revolução copernicana" no domínio educacional.
Uma outra "revolução copernicana" estava acontecendo nesse período: a partir de 1920, com A menina do narizinho arrebitado, Monteiro Lobato começa a publicar a série de histórias da turma do Sítio do Picapau Amarelo – histórias que traziam tantas inovações à literatura infantil brasileira que terminariam por conquistar para o autor o status de fundador do gênero no país. Entre as inovações, uma maneira de tratar e retratar a criança que se aproxima muito do que pretendia o Escolanovismo.
No livro Mundo da Lua, publicado em 1923, que reúne fragmentos de um diário que Lobato havia escrito nos primeiros anos do século, pode-se observar um ideal de educação bastante semelhante àquele que os entusiastas da Escola Nova tentavam pôr em prática:
Recordando minha vida colegial vejo quão pouco os mestres contribuíram para a formação do meu espírito. No entanto, a Julio Verne todo um mundo de coisas eu devo! E a Robinson? [Robinson Crusoé, C. B.] Falaram-me à imaginação, despertaram-me a curiosidade – e o resto se fez por si.
(...)
A inteligência só entra a funcionar com prazer, eficientemente, quando a imaginação lhe serve de guia. A bagagem de Julio Verne, amontoada na memória, faz nascer o desejo do estudo. Suportamos e compreendemos o abstrato só quando já existe material concreto na memória. Mas pegar de uma pobre criança e pô-la a decorar nomes de rios, cidades, golfos, mares, como se faz hoje, sem intermédio da imaginação, chega a ser criminoso. É no entanto o que se faz!... A arte abrindo caminho à ciência: quando compreenderão os professores que o segredo de tudo está aqui?
Os professores, segundo doutrinas da Escola Nova, na visão que desta nova pedagogia fornece Jorge Nagle, deveriam exatamente estimular a imaginação da criança, numa irresistível aproximação do depoimento anterior de Lobato:
O novo papel do educador será o de simples agente fornecedor de meios para que a criança se desenvolva por si. Nada de constrangê-la ou de tentar enquadrá-la a partir de situações antecipadamente programadas do ponto de vista do adulto. O que importa é que a criança se desenvolva por meio da própria experiência. É preciso, portanto, que ela experimente. (...) A inclusão do trabalho livre, da atividade lúdica, dos trabalhos manuais, enfim, a adoção do princípio da educação pela ação e não mais pelo imobilismo são algumas das consequências da nova concepção. (...) Reage-se contra o "didatismo deformador", pois o que importa não é aprender coisas, mas aprender a observar, a pesquisar, a pensar, enfim, aprender a aprender.
Assim, anos antes das novas teorias aparecerem com maior vigor no cenário nacional, Monteiro Lobato exprimia uma idéia de ensino que parece assemelhar-se ao que propunha o escolanovismo. Em 1927, ele teria a oportunidade de conhecer melhor estas teorias através da amizade de Anísio Teixeira. Ambos estavam nos Estados Unidos: Lobato como adido comercial e Teixeira como estudante do departamento de educação da Universidade de Colúmbia. Tornaram-se amigos; quando o estudante voltou para o Brasil, Lobato escreveu uma carta apresentando-o para Fernando de Azevedo, outro líder do movimento da renovação educacional no Brasil, que na época dirigia o ensino no Distrito Federal:
Fernando: ao receberes esta, pára. (...) Solta o pessoal da sala e dá toda a atenção ao apresentado, pois ele é o nosso grande Anísio Teixeira, a inteligência mais brilhante e o maior coração que encontrei nestes últimos anos de minha vida.
Monteiro Lobato e Anísio Teixeira trocariam cartas ao longo dos anos seguintes, em que comentam, entre outros assuntos, idéias sobre educação, infância e literatura. Em 1931, quando Lobato remodela e reúne em um único volume – As Reinações de Narizinho – várias histórias da turma do sítio do Picapau Amarelo publicadas anteriormente, Teixeira elogia a nova versão:
Leio Reinações de Narizinho com um prazer sem nome. Você é um Kipling feito á medida do Brasil. Um pouquinho frouxo. O Brasil é um pouco grande!... Mas como você já cresceu de alguns dos seus outros livros de criança. Começa você a sentir-se à vontade, entre as crianças... E isso, você sabe bem como é grande.
No ano seguinte, é a vez de Lobato manifestar sua admiração pelo trabalho do amigo:
Você me deu um grande prazer hoje – neste estúpido e arrepiado domingo de chuvisco insistente. Imagine que ontem o Fernando deu-me aquele volume do manifesto ao povo e ao governo sobre a educação para que o lesse e sobre ele falasse num artigo. E essa intimação do Fernando arrancou-me à faina petrolífera em que vivo mergulhado até as orelhas. Resolvi dedicar este domingo à educação.
Comecei a ler o manifesto. Comecei a não entender, a não ver ali o que desejava ver. Larguei-o . Pus-me a pensar – quem sabe está nalgum livro do Anísio o que não acho aqui – e lembrei-me de um livro sobre a educação progressista que me mandaste e que se extraviou no caos que é a minha mesa. Pus-me a procurá-lo, achei-o. E cá estou, Anísio, depois de lidas algumas páginas apenas, a procurar dar berros de entusiasmo por essa coisa maravilhosa que é a tua inteligência lapidada pelos Deweys e Kilpatricks.
Eureca! Eureca! Você é o líder, Anísio! Você é que há de moldar o plano educacional brasileiro! (...)
O entusiasmo que Lobato demonstra pelas teorias de Anísio esbarra, algumas linhas depois, naquele que vinha sendo obstáculo para tantos outros entusiastas da educação: o Estado. Mas Lobato estava tão confiante nos resultados de sua campanha petrolífera que imagina um centro educacional financiado por ele e com Anísio à frente; uma escola modelo que não precisaria submeter-se à programas de ensino ditados pelo governo ou por qualquer outra instituição:
Vou ler o teu livro como nunca li nenhum. Degustando, penetrando, deslumbrando-me em ver expressas nele idéias que me vieram por gestação, intuitivamente. E depois te escreverei.
Meu petróleo está uma pura maravilha. A vitória está assegurada e, a não ser que me veja espoliado por leis do Juarez, nacionalizadoras do petróleo e que tais, que venham matar o surto da futura indústria e privar-me do que com ela eu possa vir a ganhar, terei meios de realizar várias grandes coisas que me fervem na cabeça. Uma delas diz com você. E criar luxuosamente um aparelho educativo com você à testa, como nunca existiu no mundo. Um gânglio novo, libérrimo, autonomíssimo, fora de governo, de religião, de tudo quanto restringe e peia. Um gânglio que vá se irradiando até fazer-se um formidável organismo moldador de homens – educador no mais elevado sentido. Com escolas especializadas, com jornais e revistas, com casa editora, com livrarias, com cinema, com estação de rádio própria, com estação tele-emissora de imagens...
Qualquer coisa como a Radio City do Rockefeller, mas educativa. O governo que ensine ao povo o que quiser; a religião, idem. Nós, do alto da nossa Education-City, servida por todas as máquinas existentes e as que hão de vir, pairaremos sobre o país qual uma nuvem de luz. Um corpo de cérebros, dirigido por você. Prepara: a máquina multiplicadora, dissemina. Iremos fazer com um pugilo de auxiliares o que o Estado – essa besta do Apocalipse – não faz com milhares e milhares de infecções chamadas escolas e de cágados chamados professores. A nossa educação cairá como chuva de neve sobre o país, sem saber e sem querer saber aonde os frocos irão pousar. (...)
Nessa transcrição, pode-se observar a adesão de Lobato ao projeto da Escola Nova – que Anísio Teixeira chamava de Escola Progressista . Projeto que expressava a teorização de idéias que já tinham ocorrido ao escritor, "por gestação, intuitivamente" e que, talvez por isso mesmo, teriam conquistado seu apoio. Essa adesão à nova concepção de ensino não era incondicional, entretanto; Lobato demonstra claramente seu repúdio pelo modo como o Estado – e os pedagogos avalizados por ele – vinha conduzindo a reforma educacional pretendida pelo escolanovismo.
Enquanto o petróleo não "rebentava", porém, a escola modelo sonhada por Lobato permanecia no papel. Papel que se transformaria, no final das contas, na "máquina multiplicadora" , disseminadora da libérrima pedagogia de um aparelho educacional chamado Sítio do Picapau Amarelo. O modo como Monteiro Lobato utilizou modernas idéias pedagógicas em sua obra infantil é analisado no último capítulo.
A nova concepção de infância, importada de países industrialmente mais desenvolvidos, como os Estados Unidos ou a Inglaterra, penetrou lenta e irregularmente pelo Brasil da República Velha, que ainda se debatia em contradições provocadas pelas heranças do passado colonial, ainda recente, e pelas incertezas do futuro republicano, democrático e liberal. A nova idéia de criança apareceu primeiro em teorias de educação, como as da Escola Nova, em leis de proteção ao menor, em histórias como as de Monteiro Lobato – ou seja, num Brasil de papel – para depois, aos poucos, tomar lugar na cultura nacional. Ou, melhor dizendo, em alguns segmentos culturais brasileiros, nas classes sociais dirigentes.
Mas, talvez, os diversos grupos sociais de um país, por mais contrastantes que sejam suas práticas culturais, não vivam "segregados", como imaginou Lobato; pelo contrário, parecem misturar-se e compartilhar idéias das mais diferentes maneiras, sendo a literatura um poderoso pólo de irradiação de novos conceitos:
Enquanto formadora de imagens, a literatura mergulha no imaginário coletivo e simultaneamente o fecunda, construindo e desconstruindo perfis de crianças que parecem combinar bem com as imagens de infância formuladas e postas em circulação a partir de outras esferas, sejam estas científicas, políticas, econômicas ou artísticas. Em conjunto, artes e ciências vão favorecendo que a infância seja o que dizem que ela é... e simultaneamente, vão se tornando o campo a partir do qual se negociam novos conceitos e novos modos de ser da infância.
Monteiro Lobato fez "mergulhos" no imaginário coletivo e simultaneamente o fecundou; "taquigrafou" novas idéias sobre infância, que circulavam nas várias esferas culturais de seu tempo – como, por exemplo, as teorias da Escola Nova – e as transpôs para sua obra literária. Da mesma forma, percebeu e registrou de modo bastante peculiar as idéias sobre infância que existiam naqueles segmentos sociais que constituíam o "Brasil arcaico" : as comunidades caboclas, os grupos de camponeses caipiras do interior de São Paulo, a gente pobre da periferia que começava a se formar na capital do estado.
Sondar o universo lobatiano é tentar recuperar um pouco desses "mergulhos" do escritor no caldeirão de idéias e mudanças que era o Brasil, e especialmente São Paulo, no começo do século vinte. Para iniciar a análise das noções e concepções sobre infância que ele trouxe "à tona" em suas obras, o melhor caminho parece ser aquele que leva até a redação d’ O Estado de S. Paulo, onde o escritor passa a trabalhar como colaborador com mais freqüência, a partir de 1917, quando se muda com a família para a capital do estado. É entre os jornalistas do "Estadão" e, posteriormente, entre os articulistas e escritores da Revista do Brasil, periódico da mesma empresa, que Monteiro Lobato lapida seu estilo, antes de publicar seu primeiro livro.
Monteiro Lobato na redação da Revista do Brasil, início dos anos 20.
Autora :
Cilza Carla Bignotto
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