Não sei que noção prematura de sordidez dos nossos atos, ou exatamente, da vida, me veio nessa experiência da minha primeira infância. O que não pude esquecer, e é minha recordação mais antiga, foi, dentre as brincadeiras que faziam comigo para me desemburrar da tristeza em que ficara por me terem cortado os cabelos, alguém, não sei mais quem, uma voz masculina falando: "Você ficou um homem, assim". Ora, eu tinha três anos, fui tomado de pavor. Veio um medo lancinante de já ter ficado homem daquele tamanhinho, um medo medonho, e recomecei a chorar.
Mário de Andrade
Monteiro Lobato (1882-1948) pode ser incluído entre aqueles que Gilberto Freyre chamou de "sobreviventes de uma específica época psicossociocultural brasileira: a de transição da Monarquia para a República e do trabalho escravo para o livre" . Transição que traria para o país, que até então tinha sua estrutura social baseada no meio rural e sua estrutura econômica dependente da mão-de-obra escrava , inúmeras transformações, principalmente a industrialização, o grande fluxo de imigrantes não-ibéricos e a urbanização. Mas essas transformações foram percebidas e vividas de modos distintos pelos diversos grupos sociais brasileiros, como comentou Gilberto Freyre:
O tempo de Antônio Conselheiro e o do Conselheiro Rodrigues Alves, por exemplo, foram contraditórios e diversos, embora ambos vivessem na mesma época e cada um fosse ao seu modo conselheiro e importante, tendo o de Canudos alcançado um renome internacional – retrato no Almanaque Hachette, por exemplo – de modo algum atingido pelo de Guaratinguetá.
Esses ritmos e tempos diferentes estão ligados aos diferentes modos de vida e de formação cultural dos brasileiros que compunham a novíssima República Federativa do Brasil. Para entender melhor essas diversidades, é preciso recuar um pouco, para abranger quem eram esses brasileiros, que o primeiro censo, de 1872, fixava em 9.930.478 habitantes – mais do que o dobro da população calculada em 1819, de cerca de 4, 6 milhões de pessoas. De acordo com este primeiro censo, "do ponto de vista racial, os mulatos constituíam cerca de 42% da população, os brancos 38% e os negros 20%" . A chegada de imigrantes europeus (em torno de 300 mil, entre 1846 e 1875) aumentou a porcentagem de brancos, que constituíam menos de 30% do total de habitantes em 1819.
A população brasileira era, em sua maioria, analfabeta:
Os primeiros dados sobre instrução mostram enormes carências nessa área. Em 1872, entre os escravos, o índice de analfabetos atingia 99,9% e entre a população livre aproximadamente 80%, subindo para mais de 86% quando considerarmos só as mulheres. Mesmo descontando-se o fato de que os percentuais se referem à população total, sem excluir crianças nos primeiros anos de vida, eles são bastante elevados. Apurou-se ainda que somente 16,85% da população entre seis e quinze anos freqüentavam escolas. Havia apenas 12 mil alunos matriculados em colégios secundários. Entretanto, calcula-se que chegava a 8 mil o número de pessoas com educação superior no país. Um abismo separava, pois, a elite letrada da grande massa de analfabetos e gente com educação rudimentar.
Em 1871 havia sido decretada a Lei do Ventre Livre, que não produzira grandes efeitos. Apesar de escravos terem lutado ao lado de homens livres, na Guerra do Paraguai (1864-1870), e conquistado o respeito de muitos desses homens, somente a partir da década de 80 o movimento abolicionista ganharia força, culminando com a lei de libertação dos escravos de 1888. Mas a população negra não encontraria muitas oportunidades de trabalho, já que havia a opção de se contratar imigrantes europeus. O profundo preconceito da sociedade escravocrata perduraria por muito tempo ainda, de forma que a maioria da população infantil não branca, por causa de sua cor e pobreza, ficaria fora das escolas.
Em 1882, Monteiro Lobato nascia no casarão da fazenda de seu avô, José Francisco Monteiro, o Visconde de Tremembé, dono de escravos e plantações de café na região de Taubaté, em São Paulo. No mesmo ano, em uma outra fazenda paulista, na região de Santa Bárbara D’Oeste, a educadora alemã Ina von Binzer, que viveu no Brasil entre 1881 e 1885 e deu aulas a filhos de fazendeiros, refletia, em uma carta, sobre a futura convivência dos filhos dos senhores com os filhos de seus escravos :
A lei de emancipação de 28 de setembro de 1871 determina entre outras coisas aos senhores de escravos que mandem ensinar a ler e a escrever a todas essas crianças. Em todo o Império, porém, não existem talvez nem dez casas onde essa imposição seja atendida. (...) ...o fato é que ninguém aqui faz coisa alguma, de maneira que as crianças nascem livres, mas crescem sem instrução e no futuro estarão no mesmo nível dos selvagens sem gozar nem mesmo das vantagens dos escravos, que aprendem este ou aquele trabalho material. Se já estão livres, por que fazer despesa com eles, desperdiçar dinheiro com o que não dá lucro?
Parece estranho que o Sr. de Souza e D. Maria Luísa, sempre tão humanos e inteligentes, pensem dessa mesma forma. Não estarão percebendo que, agindo assim, estão preparando a pior geração que se possa imaginar para conviver mais tarde com seus próprios filhos?
A elite dirigente parece ter compartilhado o modo de pensar dos patrões da jovem Ina; de modo geral, não foram tomadas providências para que os escravos nascidos livres recebessem a educação necessária para que pudessem sobreviver dignamente. Essa postura não mudou com a abolição da escravatura, em 1888, nem com a proclamação da República, em 1889:
Costuma-se alegar que aos libertos nada foi concedido além da liberdade. Nem terras, nem instrução, nem qualquer reparação ou compensação pelos anos de cativeiro. Eles foram entregues à própria sorte, o que podia ser especialmente dramático para idosos e órfãos (...). No contexto da época, (...) a legislação que se esperava tinha por base a idéia de tutela do Estado sobre o liberto, forçando-o a continuar na propriedade em condições cujos termos deviam ser definidos pelo ex-senhor.
O ex-senhor, no entanto, poderia definir condições de vida tão difíceis quanto as adotadas pela personagem D. Inácia, sobre quem o narrador de Negrinha afirma: "o 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana". Costumes seculares não são abolidos por leis, de maneira que a instrução, entre outras reparações e preparações que poderiam realmente conferir às crianças filhas dos escravos libertos o status de cidadãs no novo Brasil que a República proclamara, não foi concedida pela classe dirigente que mudou o regime do país. E as gerações que se seguiram sentiram - e sentem ainda - o peso da omissão daquela elite.
A herança do trabalho escravo e as disparidades sociais que gerou, aliada às enormes diversidades regionais, intensificadas por distâncias geográficas imensas e pela falta de uma rede de comunicações que só a industrialização poderia trazer, contribuiu para que a população que formava a República fosse desigual, indefinida, um "amálgama de passado e futuro" em que coexistiam diferentes tempos e diferentes costumes:
Não era uma sociedade, a massa plástica em que o governo tinha de trabalhar, mas um "agregado" de sociedades múltiplas, umas, do litoral e do planalto, sob as influências mais diretas da civilização ocidental, e outras, vivendo durante quase três séculos, por assim dizer de sua própria substância, perdidas nos sertões e amuradas num isolamento quase completo.
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