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A identidade social que o enunciador atribuiu a si e ao seu co enunciador, a relação de lugares7 que visou estabelecer e os grupos com os quais buscou se associar em diferentes etapas da argumentação foram investigados pela localização de práticas discursivas8 específicas e nos processos gramaticais e recursos lingüísticos utilizados (inferências, relações de sentido, interdiscursos, reformulações, estruturas sintáticas e outros traços verbais). O pressuposto: os argumentos mobilizados e o método utilizado na organização do material verbal evidenciam o sentido desejado pelo enunciador, a autoridade almejada e o lugar atribuído a si próprio e ao seu destinatário.
A primeira providência foi recuperar eventos históricos que pudessem ambientar o cenário antecedente e ajudar a identificar as correntes de pensamento protagonistas e as respectivas formações discursivas. As condições de produção9 em que a NOB 96 foi elaborada expuseram à análise a conjuntura imediata em que se deu a enunciação, enquanto a avaliação crítica do corpus da portaria contribuiu para localizar marcas formais tradicionalmente relacionadas a gêneros de discurso próprios de comunidades de posicionamentos concorrentes e para identificar o tipo de relação que a informação transmitida no enunciado poderia ter instituído entre os interactantes.
Por esta fórmula, a análise confrontou o discurso oficial do gestor federal na portaria de 1996 com a orientação dada à política de saúde pela Constituição Federal de 198810 (CF88) e pelas leis 8.080/9011 e 8.142/9012, em busca de indícios de uma postura oblíqua à descentralização política e administrativa da gestão do SUS - considerando a possibilidade de haver alguma resistência federal à implantação do sistema idealizado.
A publicação da Norma Operacional de Assistência à Saúde NOAS-SUS 01/200113 antes da conclusão da pesquisa foi deveras útil para efeito da verificação de tendência ideológica do discurso do gestor federal e, para este fim, foi incluída na análise. O estudo do conjunto da legislação setorial também foi prestadio para verificar que, independente de casuísmos corporativos que as leis ainda comportam, elas são suficientes para a efetivação do Sistema Único de Saúde idealizado.
Essa suficiência foi uma das bases da argumentação do estudo.
A legislação sobre a organização do SUS é abrangente. Já estão definidos na Lei 8.080/90: os princípios e diretrizes do SUS; as formas de organização, direção e gestão; as competências e atribuições comuns às três esferas; as competências e atribuições específicas de cada gestor; a possibilidade de participação complementar da iniciativa privada no SUS e fora dele e as regras que vigem para os servidores que trabalham no SUS.
O financiamento do sistema, os critérios para repartição dos recursos, as normas para a gestão financeira e o planejamento do orçamento foram definidos na Lei 8.080/90 e complementados na Lei 8.142/90, introduzida para solucionar o impasse criado com o veto presidencial aos capítulos sobre participação social e sobre financiamento.
Estados e municípios são submissos à exigência legal de cumprir determinados requisitos para fazerem jus aos recursos (Lei 8.142/90 Art. 4º) e, conquanto o artigo 5º da mesma Lei autorize Ministro da Saúde a estabelecer condições para a sua aplicação, não lhe foi outorgado o direito de interferir na autonomia municipal.
A inclusão de tal artigo, de redação ambígua, parece ter contribuído para contornar a resistência ao modelo proposto na Lei 8.080/90, considerando sua aprovação menos de três meses depois do veto. O seu uso, entretanto, vem expondo uma movimentação para a centralização da gestão e dos recursos, para a instituição de superioridade hierárquica do MS e contra a participação social na definição das políticas e no controle da gestão.
A legislação setorial dá relevo à "cooperação" entre as três esferas de governo: "participação", "articulação", "conjugação de esforços", "evitar duplicidade" são expressões insistentemente referidas para definir a relação intergestores e a relação dos gestores com os demais setores governamentais e com a sociedade.
Desde a aprovação das Leis Orgânicas da saúde, aguardava-se a criação dos mecanismos operacionais para o cumprimento das determinações legais. As ações de competência municipal ainda se concentravam nas esferas federal e estadual de gestão.
Portarias publicadas em 1991 e em 1993 (NOBs 9114 e 9315) iniciaram timidamente o processo de descentralização do SUS, mas até o final de 1997 apenas 144 municípios haviam sido habilitados (nas condições da NOB 93) para recebimento de recursos diretamente em seus fundos de saúde.
O gestor federal reformulou as regras e as condições para a descentralização em 1996. Na ocasião, o Ministério da Saúde era comandado pelo cirurgião Adib Jatene (pela segunda vez à frente da pasta), defensor da Contribuição Provisória por Movimentações Financeiras (CPMF) aprovada no ano de 1996, com cobrança iniciada em 1997.
A nova portaria foi publicada exatamente no dia da abertura da X Conferência Nacional de Saúde (2/9/96), sem validação naquela instância colegiada de representação social. A iniciativa custou ao MS uma enérgica repreensão da plenária da Conferência16, registrada em carta com incisiva determinação para a sua revisão. Uma segunda versão da NOB SUS 01/96 foi publicada na véspera da exoneração do Ministro Jatene (7/11/96) - o texto da apresentação informava ser a portaria resultado de "amplo e participativo processo de discussão".
Estabelecer uma relação de interação com os receptores, convencê-los de seu ponto de vista é o objetivo natural da enunciação. O receptor tem papel fundamental na enunciação e dela participa porque a apreensão depende do seu "conhecimento de mundo". Dessa forma, para estabelecer a relação com o interlocutor, o enunciador recorre a formações discursivas (explícitas: marcas na superfície do texto - "heterogeneidade mostrada", ou implícitas: sinais que podem ser considerados característicos de determinadas comunidades discursivas - "heterogeneidade constitutiva")18.
No caso da NOB 96, o discurso é constituído pela citação de ou pela alusão a diferentes textos, articulados ora de forma complementar, ora contraditória, até alcançar o sentido almejado. A criteriosa seleção de temas também é evidência, na dinâmica da enunciação, dos obstáculos que os enunciadores previram ter que ultrapassar: os temas mobilizados contribuíram para associar a portaria ao prestígio conferido pelos co-enunciadores às normas legais.
Uma variedade de sinais encontrados no texto indica que os enunciadores avaliaram faltar familiaridade do receptor com o tema e se posicionaram no lugar de detentores do saber (a apresentação dos princípios e diretrizes do SUS; a classificação dos gestores municipais como exclusivos prestadores de serviço; a freqüente referência à falta de capacitação técnica e administrativa...). Outra evidência do lugar atribuído ao interlocutor é a utilização do recurso de "advertência", adotado de forma sistemática. O expediente é útil para colocar o enunciador na posição daquele que tem autoridade para "dar ordens".
O interlocutor da NOB 96 é submetido à autoridade do enunciador, que anuncia o risco de imobilizar o processo e adiar a municipalização, por exemplo. Os textos eventualmente complexos, os enunciados autoritários; a recordação das dificuldades estruturais do sistema; a insistência da importância da mediação do estado; a exigência de aprovação do pleito de habilitação nas comissões intergestores, entre outros, podem ter a expectativa de gerar reações como a incompreensão, o receio às exigências impostas, a verificação das dificuldades políticas regionais e, por fim, a submissão.
Com um enunciado diferente daquele burocrático tradicional, o discurso da NOB foi estruturado em valores específicos de duas comunidades discursivas: as dos movimentos municipalista e sanitário - evidência de uma pressuposição dos enunciadores a respeito das prioridades e valores dos seus co-enunciadores e a constatação de que o recurso poderia servir para estabelecer a interação. Tais valores, no entanto, foram combinados com outros do próprio ideário centralizador (ou desconcentrador).
A escolha levou à construção de uma representação capaz de validar a política federal (não exatamente favorável aos interesses municipais) pela transferência, para o próprio discurso, da autoridade conferida pelos co enunciadores aos movimentos sociais (que se destacavam no setor saúde) e às causas que defendiam.
A enunciação da NOB 96 deu preferência à apresentação dos princípios e diretrizes legais do SUS em abordagem primária, alternada com um discurso especializado19, combinação que caracteriza uma interação complementar20 entre enunciador e co-enunciador, com superioridade do primeiro.
Em diferentes oportunidades, o texto da Norma de 1996 deixou de fazer referências ou de detalhar aspectos de relevância em temas abordados, para arregimentar, exclusivamente, os conteúdos necessários para legitimar a situação da enunciação ou da totalidade do enunciado. O gênero de discurso, heterogêneo, apresenta vozes simultâneas: um discurso excessivamente pedagógico que aborda de forma primária assuntos elementares (inaugurou um novo modelo de enunciação nas portarias do MS) alternado com um discurso especializado em enunciação excessivamente técnica e hermética. Tal constatação conduz a suposições iniciais como a de que os enunciadores (a) poderiam ter se equivocado na escolha da formação discursiva utilizada para o lugar21 que atribuíram aos seus co enunciadores - um interlocutor que ignoraria os princípios básicos do SUS e teria dificuldade para interpretá-los; (b) não teriam acertado na abordagem de assuntos elementares em texto dirigido para especialistas ou (c) teriam optado por esta via. Todas alternativas, entretanto, prejudicam a interação, caracterizam uma falha na competência comunicativa dos enunciadores ou expõem uma exacerbação da autoridade que lhes é atribuída.
A criteriosa seleção de temas na dinâmica da enunciação evidencia, desde a introdução, os obstáculos que os enunciadores previram ter que ultrapassar. Os temas mobilizados indicam uma tentativa de se investirem da qualidade de especialista de forma a conferir à norma a autoridade ambicionada: o discurso foi tecido de discursos tirados da tradição de outras comunidades cuja autoridade é sabidamente reconhecida pelos interlocutores.
Os argumentos apropriados de diferentes grupos sociais foram combinados com as redefinições introduzidas pela Norma de forma a que a autoridade conferida aos movimentos sociais e às suas bandeiras ajudasse a validar a política federal. Aspectos selecionados da legislação foram combinados a argumentos de diferentes tendências, regulando o deslocamento das fronteiras desejadas pelo enunciador até criar a própria tradição.
Os enunciadores da portaria de 96 "ensinaram" que o novo sistema municipal implicava muita capacidade técnica, administrativa e financeira e enquadraram os municípios como meros prestadores de serviço (o papel legal de gestão da saúde no município é "reformulado" e passa a se resumir à "função da atenção", ou seja, de prestação de serviços). A previsão de grande dificuldade a ser enfrentada pelos municípios serviu para sustentar o argumento da necessidade dos níveis de gestão e justificou a "mediação" - valorizada como fundamental - e a atribuição às Comissões Intergestores Bipartite (CIB) e Tripartite (CIT) do direito de decidir sobre a habilitação municipal. Igualmente, viabilizou o condicionamento da obrigação legal (dos gestores estaduais e federal) de prestar cooperação técnica e financeira a uma redefinição dos papéis dos três gestores, consolidando a superioridade hierárquica e ampliando o sentido de "mediação" para "arbitragem".
Por fim, o fortalecimento da participação das instâncias intergestoras e a retirada do "obstáculo" dos consórcios municipais, substituído pela Programação Pactuada e Integrada (PPI), debilitaram os Conselhos de Saúde.
O enunciado não cita, por exemplo, a participação social entre os princípios ideológicos e doutrinários do SUS (uma pequena menção é feita sobre a responsabilidade individual e coletiva sobre a saúde, não no sentido da participação formal nos Conselhos e Conferências de Saúde) e tampouco foram citados a descentralização, a direção única em cada esfera de governo ou o planejamento ascendente do Sistema entre os princípios reunidos sob o rótulo de princípios organizacionais. Também o papel que exercem os Conselhos de Saúde não foi citado na abordagem a respeito do sistema de saúde municipal e as palavras "descentralização" ou "municipalização", foram substituídas e reduzidas à promoção e consolidação do "...pleno exercício, ..., da função de gestor da atenção à saúde dos seus munícipes".
A NOB 96 insistiu na necessidade de redefinir determinações legais. A análise das redefinições propostas e do gênero do discurso da norma (educativo) evidencia algumas incoerências que o co-enunciador com experiência no setor pode distinguir ou, se menos experiente, assimilar. (1) Não é possível um instrumento infralegal (portaria ministerial), redefinir os papéis das esferas de governo (expressos em lei); (2) também a redefinição dos mecanismos e fluxos de financiamento desconhece a legislação e poderia causar atraso à descentralização; (3) a superação da "condição de prestadores de serviço" referida na NOB depende da descentralização de recursos, de unidades de serviço e da gestão do SUS. Quanto à afirmativa de a NOB 96 "apontar para uma reordenação do modelo de atenção", a iniciativa é extemporânea, posto que o novo modelo de atenção foi determinado (não "apontado") na CF88.
A organização do enunciado é significativa da relação que se pretendeu instituir com os interlocutores. Exemplificando: apenas três de quatorze parágrafos de capítulo destinado a apresentar o sistema de saúde municipal trataram do assunto que dava nome ao título. O restante, em formação discursiva de característica autoritária, fundamenta a necessidade de criação dos níveis de gestão que irão classificar os municípios de acordo com a sua condição; registra o papel do estado e do MS, alerta sobre a grande responsabilidade a ser assumida pelo município e adverte sobre os riscos que a nova organização implica, até alcançar justificar a "mediação" das outras "instâncias de poder".
A classificação da redefinição dos papéis dos gestores estadual e federal como "fundamental" demonstra coerência entre as regras criadas e os objetivos identificados neste estudo. Sempre recorrendo à combinação de regras estabelecidas por meio de portaria ministerial com trechos contidos nas leis orgânicas, a norma vai fundamentando, de forma indireta, o poder dos outros gestores sobre o gestor municipal (em especial o poder de "mediação" dos estados) e fortalecendo o argumento oficial da possibilidade inexistente - de uma subordinação hierárquica.
A finalidade - expressa no texto - de introduzir a função de "mediação" nas atribuições das Secretarias Estaduais de Saúde (e para o MS) se constitui no foco do problema: a mediação pode impedir o livre arbítrio, embaraçar negociações entre as partes diretamente envolvidas, representa um poder não legalmente instituído e confirma a pretensão de "aperfeiçoar as normas legais" (por meio de portarias), conforme expressão retirada do texto da NOB.
Sem desmerecer a importância de integração e negociação entre gestores, a diferença entre a diligência do discurso a respeito do papel das CIBs e CIT e a intensidade dada ao papel dos Conselhos permite inferir que há um vício na informação transmitida e uma proposição implícita de enfraquecimento dos últimos. Sendo a composição do sistema municipal uma atribuição do município, não haveria necessidade de apreciação da sua composição pela CIB ou pela CIT, mas pelos Conselhos. A concepção do lugar do Conselho de Saúde, de instância secundária do SUS, é evidenciada no desenvolvimento do argumento sobre as Comissões, porque a função de "ratificar" atribuída aos Conselhos se realiza a posteriori e não é a única participação desse colegiado.
Igualmente, os pactos realizados nas Comissões Intergestores podem viabilizar os princípios da unicidade e da eqüidade, mas a enunciação omitiu que os fóruns adequados para realizar pactos são os Conselhos - nas três esferas. A NOB 96 omitiu, também, a sugestão legal para que municípios recorram a consórcios intermunicipais para estabelecer acordos com outros municípios.
Os argumentos sobre a importância das negociações intergestores e da mediação da secretarias estaduais de saúde (SES), inclusive na apreciação dos sistemas municipais, foram encadeados no discurso com a criação das redes regionais, apresentadas como uma das razões da necessidade daqueles fóruns, para evitar a concentração de recursos em determinados municípios (sendo que também influenciam tal acumulação a manutenção do cálculo dos tetos financeiros com base no faturamento histórico, do instrumento convênio para a prestação de serviços tipicamente municipais e o tempo transcorrido desde a regulamentação do SUS).
A consolidação da função de "mediação" como arbitragem e a subjugação dos Conselhos de Saúde foram alcançadas pelas redefinições feitas pela NOB da relação entre gestores municipais. São exemplos as determinações de que (a) os acordos passassem a ser registrados numa programação pactuada e integrada (PPI) explícita desvalorização da indicação da Lei 8.080/90 para a constituição de consórcios intermunicipais; (b) as divergências fossem decididas pelo gestor estadual; (c) o valor do teto financeiro global fosse definido conforme a PPI ("mediada" pelo Estado); (d) se exigisse para a habilitação municipal a participação na elaboração e na implementação da PPI do estado e (e) a redução do papel dos Conselhos à ratificação das programações e decisões.
De outro aspecto, a apresentação dos novos tipos de habilitação - a Gestão Plena da Atenção Básica (GPAB) e a Gestão Plena do Sistema Municipal (GPSM) acompanhada da informação de que os municípios seriam "avaliados" e "classificados" de acordo com o estágio já alcançado (podendo a habilitação ser negada quando não há consenso entre Estado e municípios na Bipartite a respeito da "capacidade" de assumir a gestão do SUS) sedimenta o argumento da incapacidade dos municípios para assumir a gestão do SUS em seus territórios, incapacidade referida amiúde na redação da NOB 96.
Desde a sua criação pela NOB 96 até janeiro de 1998, a habilitação dos municípios à condição de gestão plena do sistema municipal não apresentou movimentação significativa, quando foram regulamentadas as regras de habilitação. Naquele ano, o número de municípios que passou a receber recursos diretamente em seus Fundos de Saúde elevou-se mais de 35 vezes. Mas a habilitação caminhou muito pouco e praticamente estacionou para a condição "Plena do Sistema", que permaneceu quase inalterada nos anos de 1999 e 2000.
O fenômeno é indicativo da determinação política encontrada no Ministério da Saúde em dois períodos - no ano de 1998, quando o número de municípios habilitados a essa condição de gestão elevou-se em 212% (de 144 para 449) - mais de 8% dos 5.507 municípios brasileiros em 1998 - e desde então: de dezembro de 98 até o ano 2000 apenas outros 74 municípios haviam obtido a habilitação à condição de autonomia plena na GPSM (aumento de 16%).
Atualizando os dados do estudo para fins de comparação, em 2005 são 661 municípios habilitados à GPSM, menos de 12% do total - uma elevação inferior a 1% sobre o número de municípios com plena autonomia (no conceito definido para a GPSM) em 2000.
O pouco empenho supra-referido foi expressamente consubstanciado nas alterações efetuadas pelo MS na política nacional de saúde em 2001 em nova Norma Operacional, mas a preocupação federal com a repartição do poder também foi registrada no documento intitulado "Sistema Único de Saúde - SUS Descentralização" 22, no qual o federalismo brasileiro, apresentado como "sui generis", propiciaria um choque de interesses no caso de descentralização, em vista da necessidade de "repartir o seu poder". O argumento entremostra a resistência à renúncia da superioridade na gestão do SUS e autoriza a inferência de que a transferência de poder era considerada pelo gestor federal uma concessão (um poder federal a ser repartido), não um direito legítimo.
A publicação da Norma Operacional de Assistência à Saúde 01 em 2001 deu novo vigor ao poder de interferência das esferas federal e estadual na política de saúde local.
As semelhanças encontradas no discurso da NOAS 01 e da NOB 96 indicam uma sincronia ideológica e, mesmo, retórica entre as enunciações: ambas apresentaram a mesma estrutura e buscaram a interação com o receptor por discursos pedagógicos; recorreram à legislação orgânica do setor argumentos para validar as alterações introduzidas e referiram, na apresentação, à importância da "experiência" acumulada para o aprofundamento (a idéia de transferência gradual da autonomia) da descentralização. As duas normas utilizaram, com freqüência, a palavra "assistência" em substituição a "atenção"; uma e outra limitaram (embora afirmem ampliar, "à medida que o processo de gestão amadurece") a autonomia dos municípios prevista em lei e, tal e qual ampliaram a capacidade dos estados de interferir na política municipal de saúde. Da mesma forma, as duas normas valorizaram o papel de mediação (arbitragem) do Estado e da União sobre os municípios e ambas as portarias foram publicadas sem regulamentações complementares imprescindíveis à sua implementação.
Notadamente, as duas normas infralegais receberam críticas de diversas áreas de representação social por terem sido elaboradas no âmbito do Ministério da Saúde com pouca ou desprezível participação social.
A NOAS 01/01 enfatiza a regionalização da "assistência" à saúde desde o próprio título. A iniciativa do gestor nacional do SUS para montar o sistema regionalizado e hierarquizado baseou-se na estratégia das SES dividirem o território estadual em microrregiões/regiões de saúde e estas em módulos assistenciais, geograficamente e demograficamente definidos em processo liderado pelas secretarias estaduais, devendo as microrregiões/regiões serem, posteriormente, aprovadas pelo Ministério da Saúde.
Tal aspecto preocupa, pela possibilidade de centralização não apenas nos dois pólos, Estadual e Federal - que já restringem e dificultam a gestão local - mas, também, em determinados municípios que vierem a assumir atribuições-chave nos módulos assistenciais e nas microrregiões de saúde, visto que serão investidos de um poder (ilegal) sobre os seus pares e serão substancialmente mais guarnecidos de recursos.
O discurso da NOB 96 ofereceu amplo material para a identificação dos posicionamentos dos agentes que a conceberam: os modos de argumentação mobilizados contêm evidências da representação que o enunciador faz de si e de seu co-enunciador. Há evidências no enunciado da NOB 96 do uso da linguagem relacionada à postura ideológica dos movimentos favoráveis à descentralização e à introdução do modelo de atenção integral à saúde e, ao mesmo tempo, daquela dos segmentos defensores da política centralizada e do modelo assistencial - dois discursos contraditórios.
A formação discursiva da NOB indica a apropriação dos discursos de segmentos sociais cuja autoridade era reconhecida pelos interlocutores. O enunciado se valeu da reformulação18 de enunciados próprios dos movimentos municipalista e sanitário e da legislação setorial e combinou partes da legislação com redefinições introduzidas nas regras da descentralização, recurso que contribuiu para a associação da imagem do enunciador com as das comunidades progressistas e evidenciou a disposição de conduzir a interpretação para o sentido desejado. As remissões a tais discursos lograram colocar as redefinições feitas na NOB 96 na filiação da ideologia alheia.
Com tal qualificação, ao longo do enunciado da portaria, o gestor federal pode ter garantido o assentimento dos municípios à interferência federal não apenas no processo de descentralização mas na organização do sistema de saúde local, como se não houvesse restrições de ordem legal a tal interferência e, em adição, ampliou a submissão dos municípios à tutela e à mercê de imposições (inclusive de caráter político) dos governos estaduais e de municípios mais poderosos (nas Bipartites).
De outro aspecto, a relação de distanciamento que os enunciadores mantiveram com o co-enunciador (visto como principiante) - se auto-conferindo uma superioridade na relação - se ajusta sem ressalvas à redefinição primeira que a portaria veio a efetuar nas normas legais: a introdução da função de mediador (árbitro) do gestor estadual nas relações entre gestores municipais e do gestor federal na relação tripartite.
A análise do processo de descentralização que a NOB 96 planejou introduzir admite a hipótese de que a municipalização - no seu estrito senso - não era prioridade no Ministério da Saúde em 1996: o enunciado da norma operacional expressa preocupação em descentralizar, exclusivamente, as ações básicas e dentre elas, exclusivamente aquelas de "assistência" - apresentada no enunciado como uma "concessão" do gestor federal que serviria para mitigar a pressão dos movimentos municipalista e sanitário. Mas, principalmente, seu discurso sugere uma preocupação em garantir o direito à interferência da União e dos estados na gestão política, administrativa e financeira do sistema de saúde municipal, sendo as maiores evidências de tal afirmativa - em 1996 - a criação do direito à mediação tanto do gestor estadual quanto do federal e o fortalecimento das comissões intergestores em detrimento dos Conselhos de Saúde.
A insistente repetição da importância das instâncias de negociação Bipartite e Tripartite em diferentes pontos do enunciado contribuiu para desenvolver uma memória intratextual capaz de transformar tais colegiados nas instâncias de deliberação que passaram a ser desde então, tendo o efetivo empoderamento de tais fóruns ignorado a função legal atribuída aos Conselhos de Saúde - enfraquecidos e afastados do processo de construção do SUS. O poder outorgado pela NOB 96 às SES sobre os municípios, em adição, é mais um aspecto imprevisto na legislação.
Os argumentos utilizados pelos enunciadores lograram (a) justificar a redefinição das responsabilidades dos estados e municípios; (b) legitimar a necessidade da mediação dos governos estaduais e federal nas relações intergestores; (c) transformar o papel de mediador no de árbitro; (d) autenticar a exigência de avaliação da "capacidade" do gestor municipal de assumir o direito de gerir o SUS; (e) acrescentar exigências à relação de requisitos legais para a descentralização; (f) alijar os Conselhos do direito (e dever) de deliberar sobre os rumos da política de saúde; (g) ampliar as funções das Comissões Intergestores de fóruns de negociação para fóruns de deliberação; (h) retirar a ênfase dada na legislação setorial à constituição de consórcios municipais - substituídos pelas Programações Pactuadas e Integradas (PPI) mediadas pelos gestores estaduais; e (i) alongar o processo de descentralização política do SUS, além de (j) dificultar o município de obter o direito à autonomia plena.
É admissível, portanto, dizer das regras introduzidas pela norma operacional de 1996 que colaboraram para refrear o movimento de descentralização na dimensão especificada em Lei, assim como há coerência na premissa de que possa haver uma resistência à sua consecução.
Transformada pelas normas operacionais em um "processo", a municipalização tem sofrido revezes que limitam a autonomia plena municipal e atrasam a sua consumação. Conquanto seja a descentralização um princípio expresso na Constituição de 1988, não obstante a federação brasileira seja composta - primariamente - de municípios, ainda que os prefeitos sejam diretamente escolhidos pela população em eleições democráticas; apesar de ser uma atribuição legal das prefeituras organizarem o território municipal em todos os aspectos - pelo que são cobrados - e embora a legislação determine que o planejamento e o orçamento do sistema de saúde devam ser feitos de forma ascendente, depois de onze anos da criação do SUS, sua gestão permanece fortemente centralizada no Ministério da Saúde (MS).
Ao impor normas infralegais que alteram as condições para a descentralização, o gestor federal exorbita da prerrogativa concedida no artigo 5º da Lei 8.142/90, porquanto não poderia o Ministério da Saúde por meio de portaria modificar o que está expresso na lei e na CF88 (como a dimensão da autonomia municipal e os critérios para habilitação ao recebimento dos recursos; como é o caso das condições de gestão que conferem ao MS o direito de avaliar, com critérios inexistentes nas normas legais, se um município ou estado está "apto" a receber diretamente em seu fundo de saúde os recursos que por lei faz jus).
Igualmente, não poderia constituir outro fórum para discussão e definição de políticas, prerrogativa legal dos Conselhos e das Conferências de Saúde, como é o caso das comissões intergestores bipartite e tripartite, introduzidas pela NOB 93 e com funções ampliadas na NOB 96 e, mais recentemente, na NOAS, quando foi exponencialmente ampliado o direito do estado à interferência e criadas novas instâncias de poder regionais - os municípios-pólo e os municípios sede.
Por fim, a municipalização como o caminho adequado ao estabelecimento do Sistema Único de Saúde desenhado na Constituição Federal e, principalmente, à criação de meios para o aprimoramento da técnica de planejamento, acompanhamento, controle e avaliação das políticas de saúde na esfera municipal já teve sua pertinência verificada inclusive em pesquisa patrocinada pelo próprio Ministério da Saúde23: a investigação constatou que grande parte das secretarias municipais foi criada a partir de 1998 em conseqüência da massificação das transferências de recursos de forma regular e automática para as prefeituras e que o desenvolvimento e a introdução de diversas ações pelos gestores municipais foram espontâneos e independentes de qualquer exigência normativa.
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Bárbara Pellegrini
Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rua José Vergueiro da Cruz 57, Vital Brazil. 24.220-200 Niterói RJ.
Ciência & Saúde Coletiva v.12 n.2 Rio de Janeiro mar./abr. 2007
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