O discurso do gestor federal no processo de descentralização política



  1. Resumo
  2. Introdução
  3. As orientações contidas nas leis do SUS
  4. Síntese do contexto em que foi publicada a NOB 96
  5. "Artifícios retóricos de sedução"
  6. Os discursos na NOB 96
  7. Passo-a-passo da criação do papel de mediação
  8. A função de mediação instituída pela NOB 96
  9. Obstáculos à descentralização
  10. NOAS 01/01 e NOB 96: sintonia retórica
  11. Conclusão
  12. Referências

Obstáculos à municipalização do SUS

RESUMO

Trata-se de uma análise do discurso realizada sobre a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde - NOB-SUS 01/96, com o objetivo de localizar no seu enunciado sinais que permitissem a identificação das correntes de pensamento que influenciaram a política de saúde priorizada pelo gestor federal nos primeiros anos do Sistema Único de Saúde (SUS). A autora distingue uma peculiaridade do gênero de discurso adotado na portaria ministerial: sua estruturação sobre aspectos isolados da legislação e em bandeiras defendidas por outras comunidades discursivas e a articulação com preceitos legais redefinidos - esforço para autorizar a argumentação oficial de pertinência da manutenção do controle do processo de descentralização pelo gestor federal. A análise conclui que uma norma infralegal não pode atribuir uma superioridade hierárquica (função de mediação) aos gestores estaduais e federal sobre os gestores municipais nem dar às Comissões Intergestores a atribuição legal dos Conselhos de Saúde, transformados em meros ratificadores de decisões. O estudo realizado para obtenção do grau de mestre em Comunicação e Cultura (UFRJ) verificou que a outorga de privilégios não previstos na Lei para os gestores estaduais e federal volta a se manifestar com mais ênfase na Norma Operacional da Assistência à Saúde - NOAS 01/01.

Palavras-chave: Análise de discurso, Descentralização, NOB, SUS

The federal government discourse during the political decentralization process and the obstacles to implement the Brazilian Public Health Care System

ABSTRACT

A discourse analysis carried out on basic operating standard Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde (NOB-SUS 01/96) of the Brazilian public health care system aiming at locating signs that could allow to identify lines of thought which have influenced health care policies prioritized by the federal administration. The author points out a peculiarity in the kind of discourse employed by the ministry directive: its structure is based on isolated aspects of legislation and on ideas advocated by other discourse communities, articulated with redefined legal principles - an effort towards authorizing the official reasoning in favor of the relevance in keeping the decentralization process under the control of the federal administration. The analysis concludes that an infra-legal standard can neither grant state and federal administrations a hierarchical superiority (mediation function) over municipal administrations, nor can it transfer the legal responsibilities pertaining to Health Councils over to inter-administration commissions (Comissões Intergestores) , thus making the former mere decision ratifiers. This study found that granting privileges not contemplated in the legislation to state and federal administrations surfaced again and more strongly so in 2001 in yet another operating standard.

Key words: Discourse analysis, Brazilian health system, Decentralization

Introdução

Este artigo foi elaborado para apresentar aos estudiosos do sistema público de saúde brasileiro o resultado da análise de discurso realizada sobre o texto da Portaria "Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde - NOB-SUS 01/96"1, desenvolvida para obtenção de grau de mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ2.

Uma característica da argumentação será logo percebida pelo leitor do setor saúde. Ela é conseqüência do trabalho original, dirigido para outro universo de leitores - especificamente da área de comunicação. Mas a pertinência do tema e os resultados verificados justificam a publicação no âmbito da saúde.

A título de esclarecimento, "análise de discurso" (na concepção da escola francesa) é uma técnica transdisciplinar de pesquisa que tem como objeto de estudo os enunciados resultantes do ato da comunicação, combinados aos contextos sociais e históricos em que foram produzidos e que pode articular "em torno de uma reflexão sobre a "escritura", a lingüística, o marxismo e a psicanálise"3.

A análise de discursos pressupõe que os textos contêm marcas - o enunciador pode recorrer a mais de um gênero de discurso e pode combinar argumentos de um e de outro para alcançar seu objetivo - que, estudadas à luz das condições em que foram produzidas e dos textos (preexistentes) aos quais o enunciado é associado, ajudam a identificar o posicionamento ideológico dos enunciadores, aquele que atribuiu ao intérprete o interesse imediato a ser alcançado e os grupos aos quais estão vinculados.

A prática do analista de discurso, em resumo "[...] é primordialmente a de procurar e interpretar vestígios que permitem a contextualização em três níveis: o contexto situacional imediato, o contexto institucional e o contexto sociocultural mais amplo, no interior dos quais se deu o evento comunicacional"4.

No caso do exame do enunciado da Portaria do MS, NOB-SUS 01/96, a totalidade do seu enunciado foi analisada em busca de indícios de uma possível resistência federal à implantação do sistema de saúde constitucional, com o pressuposto de que um posicionamento desta natureza do gestor nacional do SUS se traduziria em grande obstáculo à implantação do modelo de atenção integral, universal, equânime, descentralizado e democrático.

Apoiada na teoria fowleriana que reconhece a estreita vinculação ideológica e política com o funcionamento da linguagem e no pressuposto de que o consumo e a interpretação social do texto são influenciados pelas formações discursivas5 utilizadas - e pela forma de abordagem -, o enunciado da NOB-96 foi avaliado criticamente6 à luz do contexto social, institucional e político no momento da produção do enunciado, no contexto histórico setorial, à luz dos interesses em disputa e da posição social dos intérpretes.


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