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Os autores Hepler & Strand11 realizaram uma análise sobre os três períodos que consideram mais importantes da atividade farmacêutica no século XX, definindo-os como: o tradicional, o de transição e o de desenvolvimento da atenção ao paciente. O papel tradicional foi desenvolvido pelo boticário que preparava e vendia os medicamentos, fornecendo orientações aos seus clientes sobre o uso dos mesmos. Era comum prescrevê-los.
Conforme a indústria farmacêutica começou a se desenvolver, este papel do farmacêutico paulatinamente foi diminuindo. Começa assim o período de transição. As atividades farmacêuticas voltaram-se principalmente para a produção de medicamentos numa abordagem técnico-industrial. Os países do Primeiro Mundo concentraram-se no desenvolvimento de novos fármacos e o Brasil, que possui um parque industrial farmacêutico predominantemente multinacional, trabalhou a tecnologia farmacêutica adaptando as fórmulas às condições climáticas do país.
A publicação da Lei 5.991/7312, que ainda está em vigor, conferiu às atividades farmacêuticas um enfoque mercantilista. Qualquer empreendedor pode ser proprietário de uma farmácia ou drogaria, desde que conte com um profissional farmacêutico que se responsabilize tecnicamente pelo estabelecimento13. Este é o marco da perda do papel social desenvolvido pela farmácia. O estabelecimento comercial farmacêutico voltou-se para o lucro e o farmacêutico começou a perder autonomia para o desempenho de suas atividades. O profissional passou a atuar como mero empregado da farmácia ou drogaria, perdeu o respeito da sociedade e refugiou-se em outras atividades, distanciando-se de seu papel de agente de saúde. Com isto, ampliaram-se os espaços para a obtenção de lucros desenfreados através da "empurroterapia"14 e da propaganda desmedidas15 .
O medicamento passou a ser visto com uma solução "mágica" para todos os problemas humanos, assumindo o conceito de bem de consumo em detrimento ao de bem social.
Mas, enfim, o farmacêutico em meio a uma grave crise de identidade profissional iniciou sua reação fazendo nascer nos anos 60 a prática da farmácia clínica16. Passou a se conscientizar do seu papel para a saúde pública. A prática farmacêutica orienta-se para a atenção ao paciente e o medicamento passa a ser visto como um meio ou instrumento para se alcançar um resultado, seja este paliativo, curativo ou preventivo. Ou seja, a finalidade do trabalho deixa de focalizar o medicamento enquanto produto farmacêutico e passa a ser direcionada ao paciente, com a preocupação de que os riscos inerentes à utilização deste produto sejam minimizados.
O lamentável desastre ocorrido em 1962, em virtude do uso da talidomida por gestantes, ocasionando uma epidemia de focomelia, desencadeou um novo olhar sobre o uso dos medicamentos e foi o marco para o surgimento das ações de farmacovigilância17. Passou-se então ao período de desenvolvimento da atenção ao paciente.
Os países começaram a se preocupar com a promoção do uso racional dos medicamentos18, motivados pela publicação de documentos pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O primeiro passo neste sentido foi a introdução do conceito de medicamentos essenciais em 197719.
No Brasil, a partir de meados dos anos 1990, a presença marcante das ações dos conselhos de farmácia e vigilância sanitária em estabelecimentos comerciais farmacêuticos está mudando o panorama nacional. A exigência da presença do farmacêutico no setor privado está trazendo-o para o desempenho de suas funções em farmácias e drogarias.
O mesmo está ocorrendo no serviço público, embora de forma muito mais lenta. Hoje, mais do que nunca, é possível encontrar farmacêuticos desempenhando funções dentro das secretarias municipais da saúde, mas o número de profissionais está muito aquém das reais necessidades. Ainda não está garantida a sua presença em todas as unidades básicas de saúde, mesmo existindo dispositivo legal que determine isto12. No entanto, temos que refletir que mudanças estão ocorrendo e que acenam para a melhora dos serviços oferecidos à população.
No sentido da necessidade de fomento à qualidade da assistência farmacêutica, em 1990, Hepler & Strand11 expuseram sua preocupação com os problemas que os medicamentos podem causar em relação à diminuição da qualidade de vida do paciente. Identificaram oito categorias de problemas relacionados aos medicamentos. Este foi o impulso inicial para o surgimento de uma nova prática, a atenção farmacêutica.
O conceito proposto de atenção farmacêutica pelos autores citados difundiu-se mundialmente: "é a provisão responsável do tratamento farmacológico com o propósito de alcançar resultados concretos que melhorem a qualidade de vida do paciente".
Em 1993, a Organização Mundial da Saúde20 publicou o documento conhecido como "Declaração de Tóquio", resultado do trabalho do grupo que se reuniu nesta cidade para discutir o papel do farmacêutico no sistema de atenção à saúde. Abre-se espaço sem precedentes para a ampliação da prática farmacêutica.
Este novo modo de pensar a atenção ao paciente pelo farmacêutico tem se difundido com rapidez e tem sido debatido com relação às potencialidades para a saúde pública.
O farmacêutico está voltando a cumprir o seu papel perante a sociedade, corresponsabilizando-se pelo bem estar do paciente e trabalhando para que este não tenha sua qualidade de vida comprometida por um problema evitável, decorrente de uma terapia farmacológica. Este é um compromisso de extrema relevância, já que os eventos adversos a medicamentos são considerados hoje uma patologia emergente21 e são responsáveis por grandes perdas, sejam estas de ordem financeira ou de vida.
No Brasil, a Organização Pan-Americana da Saúde22 (OPAS) comandou uma oficina de trabalho para discutir a atenção farmacêutica. O grupo constituído para este fim produziu o documento "Proposta de Consenso Brasileiro de Atenção Farmacêutica", que tem por objetivo uniformizar os conceitos e a prática profissional no país.
A proposta de consenso defende que a prática da atenção farmacêutica deve estar orientada para a educação em saúde, orientação farmacêutica, dispensação, atendimento e acompanhamento farmacêutico, registro sistemático das atividades, mensuração e avaliação dos resultados. O propósito da atenção farmacêutica é reduzir a morbimortalidade relacionada aos medicamentos.
Dentro deste novo contexto da prática farmacêutica, no qual a preocupação com o bem estar do paciente passa a ser a viga mestra das ações, o farmacêutico assume papel fundamental, somando seus esforços aos dos outros profissionais de saúde e aos da comunidade para a promoção da saúde.
Os autores James & Rovers23 identificaram quatro categorias de iniciativas que podem ser implantadas pelos farmacêuticos para a melhoria do estado de saúde da comunidade:
• Acompanhamento e educação do e para o paciente;
• Avaliação dos seus fatores de risco;
• Prevenção da saúde;
• Promoção da saúde e vigilância das doenças.
Ainda segundo os autores acima, a promoção da saúde pode ser feita através de três domínios que dão suporte aos serviços oferecidos à população:
• Disposição de serviços de prevenção clínica;
• Vigilância e publicações em saúde pública e
• Promoção do uso racional de medicamentos pela sociedade.
A abordagem de James & Rovers 23 está alinhada aos tópicos relacionados pela OMS24 em relação a medidas que podem ser adotadas para a promoção da saúde.
Transpondo para a nossa realidade as estratégias defendidas mundialmente, é possível dizer que o farmacêutico (da drogaria, farmácia comercial ou farmácia privativa dos hospitais e unidades ambulatoriais de saúde) pode trabalhar sob três pontos básicos: reorientando o serviço de farmácia, desenvolvendo as habilidades da comunidade e incentivando os indivíduos à ação comunitária.
Estudo realizado em farmácias e drogarias sobre o manejo da diarréia utilizando a terapia de re-hidratação oral concluiu que estes estabelecimentos podem se tornar postos avançados de saúde quando bem utilizados25. Este potencial acena para o desempenho de um importante papel para a saúde pública, diferente da prática rotineira até então observada.
Nos últimos 30 anos, a farmácia privativa e as drogarias decifraram receitas (aqui está feita referência às letras de difícil leitura) e entregaram aos usuários do serviço os produtos correspondentes, quase sempre sem qualquer tipo de orientação sobre o uso dos mesmos. A manipulação de fórmulas também não fugiu a esta regra.
Em relação aos serviços públicos, os governos e dirigentes discutem a questão do abastecimento de medicamentos e as estratégias de financiamento, mas poucos reconhecem que os medicamentos são apenas um instrumento da prestação de um serviço e geralmente não se preocupam com a estruturação e a organização deste serviço26. A maioria das farmácias de unidades básicas de saúde funciona porque um leigo ou profissional com parcos conhecimentos sobre medicamentos atua na dispensação (auxiliares de enfermagem, auxiliares administrativos, de cozinha, entre outros).
Em meio a inúmeras necessidades e demandas, os serviços de farmácia não são considerados prioritários na disputa por recursos nos orçamentos da saúde. Talvez a sua importância ainda não esteja explicitada para a maioria dos gestores. Isto é possível constatar pelas condições físicas e de recursos humanos em que se encontram, embora estudos sobre o tema sejam necessários. Dentro da estrutura das unidades de saúde, a farmácia geralmente ocupa pequenos espaços, muitas vezes sem as condições mínimas necessárias para o armazenamento adequado de medicamentos. Ainda é possível encontrar farmácias em que há grades separando o usuário do serviço e o profissional que faz o atendimento. Além disso, falta pessoal qualificado. Assim, não há condições apropriadas para que este serviço desempenhe a sua função e para que de fato as relações sejam mais humanizadas.
Vale lembrar que a ausência de serviço de farmácia adequado, que zele pelo uso racional de medicamentos em parceria com os demais serviços e profissionais do sistema de saúde, constitui um problema importante de saúde pública e, para chegarmos a esta conclusão, lembremos apenas das informações que tratam da morbimortalidade relacionada a medicamentos nos EUA, país em que todas as farmácias possuem farmacêuticos, e façamos um paralelo com a situação descrita anteriormente.
Faz-se necessário atentar para o uso racional dos medicamentos, de forma que os pacientes recebam os medicamentos para a indicação apropriada, nas doses, via de administração e duração apropriadas; que não existam contra-indicações; que a probabilidade de ocorrência de reações adversas seja mínima; que a dispensação seja correta e que haja aderência ao tratamento2.
Os serviços farmacêuticos de atenção primária contribuem para a diminuição da internação ou do tempo de permanência no hospital, à assistência aos portadores de doenças crônicas, à prática de educação em saúde e, para uma intervenção terapêutica mais custo-efetiva27 .
Dentro desta lógica, o serviço de farmácia deve assumir papel complementar ao serviço médico na atenção à saúde. O paciente que sai do consultório com uma receita terá maior resolução de seus problemas se tiver acesso ao tratamento prescrito e se a prescrição atender à racionalidade terapêutica. Mas não é só isto. Também é necessário avaliar os fatores que potencialmente podem interferir em seu tratamento, como: hábitos alimentares, tabagismo, histórico de reações alérgicas, uso de outros medicamentos ou drogas, outras doenças, etc. ou até mesmo a falta de adesão. Esta avaliação, com a possibilidade de intervenção visando à efetividade terapêutica, pode ser alcançada com a implantação da atenção farmacêutica.
O farmacêutico, via de regra, é o último profissional de saúde que tem contato direto com o paciente depois da decisão médica pela terapia farmacológica28. Desta forma, torna-se co-responsável pela sua qualidade de vida. Tanto o usuário quanto o profissional devem ser vistos na totalidade do seu ser e por isso os conceitos de pessoa, responsabilidade, respeito, verdade, consciência, autonomia, justiça, etc. devem ser interiorizados para modelar a conduta profissional 29.
A humanização do serviço de farmácia passa por todos estes aspectos e também abrange questões relativas ao ambiente de atendimento. É necessário que haja instalações adequadas o suficiente para causar bem-estar e confiança. Que o farmacêutico possa atendê-lo em sala reservada para este fim, garantindo privacidade.
Assim, a estruturação das ações de atenção farmacêutica dentro do serviço de farmácia constitui uma abordagem imprescindível para a promoção da saúde. O quadro 1 relaciona algumas destas ações que podem ser adotadas para que este serviço seja reestruturado.
O farmacêutico pode trabalhar para que a comunidade esteja informada sobre condições que sejam determinantes sobre o seu estado de saúde. A conscientização da comunidade é um pré-requisito para que sejam alcançados níveis elevados de saúde. É necessário que a mesma esteja orientada sobre como proceder em relação ao uso de medicamentos e conheça as doenças mais prevalentes em seu meio, bem como as maneiras para preveni-las ou minimizar suas complicações.
Com o desenvolvimento das habilidades individuais e da comunidade, será possível contar com seu apoio para a realização de movimentos maiores, que tenham em vista a promoção da saúde. O quadro 2 descreve algumas ações que podem ser adotadas para alcançar este objetivo.
Incentivar a ação comunitária reforça todas as medidas adotadas para a promoção da saúde. A comunidade passa a ser um forte aliado com vista à utilização racional de medicamentos, identificando os problemas mais freqüentes e compartilhando com o farmacêutico a responsabilidade pela divulgação da informação para todos os indivíduos.
A profissão farmacêutica, do século XX até os dias de hoje, passou por vários momentos difíceis, inclusive experimentando a perda da identidade. Com a prática da atenção farmacêutica e a carência da população de um farmacêutico mais atuante em defesa do uso racional dos medicamentos, surge uma oportunidade ímpar para o desempenho de seu papel perante a sociedade.
Faz parte de suas atribuições a promoção da saúde, principalmente através da disposição de um serviço de farmácia com qualidade (e neste aspecto incluem-se a orientação e o acompanhamento farmacêutico) e, da educação em saúde, de fácil acesso à população.
O uso irracional de medicamentos é um importante problema de saúde pública; portanto, é preciso considerar o potencial de contribuição do farmacêutico e efetivamente incorporá-lo às equipes de saúde a fim de que se garanta a melhoria da utilização dos medicamentos, com redução dos riscos de morbimortalidade e que seu trabalho proporcione meios para que os custos relacionados à farmacoterapia sejam os menores possíveis para a sociedade.
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Fabiola Sulpino Vieira
Ministério da Saúde, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Departamento de Assistência Farmacêutica. Esplanada dos Ministérios Bloco G Ed Sede 8º andar sala 829. 70058-900 Brasília DF
Ciência & Saúde Coletiva v.12 n.1 Rio de Janeiro jan./mar. 2007
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