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Esse mundo completamente diferente do mundo físico é para Durkheim o mundo social, que é, principalmente "idealidade". Essa idealidade é constituída por duas ordens que, em linguagem atual, poderíamos chamar de "realidade de signos" e "realidade de símbolos", pois, segundo o autor, há aqueles tipos de idéias ou ideais de realidade "cujo papel é unicamente expressar as realidades às quais se aplicam, de expressá-las como são: trata-se dos conceitos propriamente ditos. Há outros, pelo contrário, cuja função é transfigurar as realidades a que se relacionam: estes são os ideais de valor" (1994:143).
No primeiro tipo é o ideal, ou seja, o conceito que serve de símbolo à coisa, ao ser ou relação, pretendendo esgotá-la, contê-la de maneira a "torná-la assimilável ao pensamento. No segundo, é a coisa a que serve de símbolo ao ideal e o torna representável aos diferentes espíritos" (1994:143).
Ora, no ato mesmo de falar aos diferentes espíritos, o símbolo é necessariamente polifônico, polimagético, por isso, a realidade conceitual, a realidade de signos institui, fixa, fecha em torno de um sentido; e a realidade de símbolos "... expressa o aspecto novo da realidade mediante o qual ela se enriquece sob a ação do ideal" (1994:143).
Para Durkheim o ideal é também real mas de uma outra realidade, porque o ideal está sempre em vias de institucionalizar-se, sempre suscetível de estabilização e, ao mesmo tempo, aberto à criação que resulta da contraposição entre o real e o ideal, isto é, entre o instituído e o imaginário.
Sabemos do respeito de Durkheim pelo instituído e não nos interessa discutir aqui essa sua inclinação, apenas assinalar a existência de um amplo arco de recalcamento no campo do imaginário que se configura em um jogo de coordenadas binárias onde a escolha é a imagem ou o conceito. O que está dito em Durkheim pode ser reencontrado em Bachelard (1986; 1990) como fundamento de sua epistemologia bipartida entre o regime diurno – os conceitos, a ciência; e o regime noturno – o sonho, a poética, o imaginário.
Freud também percebeu, tanto quanto Bachelard, que a racionalidade social e também científica, se faz pelo recalcamento das pulsões, e que estas configuram representações de desejos (Também para Durkheim o desejo é a força capaz de mover as vontades). Sabemos que para a psicanálise, o que constitui o desejo é a falta, ou melhor, o conjunto de significantes fantasmáticos que substituem aquilo que falta. Sendo assim, o desejo é energia afetiva que investe representações simbólicas e, inobservável em si mesmo, nem por isso carece de materialidade, visto que o desejo produz relações humanas entre seres e objetos, resultando na criação de seres, objetos, espaços e situações concretas.
Ocorre que para indagarmos com um mínimo de pertinência acerca do desejo e, portanto, do imaginário, é necessário que nos situemos no campo de visibilidade constituído por nossos conhecimentos sobre o homem. Na verdade, não mais sobre o homem, Foucault (1992), inclusive, anunciou o seu fim. De fato, é sobre o processo de hominização que se configura o debate que hoje assoma no campo das ciências, interrelacionando-as. A nosso ver, seguindo diferentes pensadores como Lévi-Strauss (1985), Atlan (1992), Morin (1996) e Maturana (1997), já não parece tão esclarecedora quanto há um século atrás, a divisão clássica entre ciências sociais e ciências da vida. Em sentido amplo, nos parece pertinente, conforme o programa de Foucault (1992), nos situarmos na "região epistemológica" que conecta as diferentes ciências: da vida, da produção e da linguagem. Sem pretender esgotar o assunto, evocamos um contexto multidisciplinar que articula diferentes pensadores, cujo foco de reflexão é antropológico.
Segundo a antropologia paleontológica (Leroi-Gourhan, 1984; 1987; 1990), a evolução humana caracteriza-se por dois aspectos principais: tecnicidade manual e tecnicidade verbal desdobradas em dois outros planos, o da evolução filética, dizendo respeito as propriedades físicas que diferem pouco das de trinta mil anos atrás; e o da evolução étnica, que se refere ao corpo exteriorizado, corpo social, em transformação acelerada. Para além desses dois planos e de seus desdobramentos, há o "tecido de relações" entre o indivíduo e o grupo, feito de comportamento estético, no sentido que lhe atribui o autor, de interrelacionamento entre a natureza e a arte como demarcando os dois polos do zoológico e do social. Nesse sentido, Leroi-Gourhan não circunscreve a noção de belo à emotividade, que no homem é preponderantemente auditiva e visual, amplia-a em busca de um "código das emoções estéticas" naquilo que elas têm de biológico e, portanto, de comum aos seres vivos, tais como, os sentidos, pois eles permitem a percepção dos valores e dos ritmos.
Estudando as técnicas de um ponto de vista etnológico, o autor analisou os meios elementares de ação sobre a matéria, começando pelos gestos de preensão, que dizem respeito a relação direta entre a mão e a matéria, e os de percussão que demarcam o ponto de encontro do utensílio com a matéria; estudou também os elementos que prolongam e completam os efeitos técnicos da mão humana: o fogo, a água e o ar. Considerando que os utensílios são inseparáveis da força que os animam, e que são os gestos que constituem a força motriz, ele analisa os tipos de forças e seus modos de transmissão. Assim, localiza sete tipos de forças: muscular humana, muscular animal, o peso, a mola, os movimentos de fluidos, a expansão de gás e o eletromagnetismo.
A essas sete forças, achamos que deveria ser acrescentada uma oitava: a "força psíquica", ou seja, a compreensão multifacetada do caráter dinâmico e fundador da imagem. Para nós, o ponto de partida para a análise dessa força é a "imaginação simbólica" e sua condição de possibilidade: o "ritual" - intenção, gesto e palavra.
Os biólogos, como Atlan, consideram que o ser humano se inscreve em uma circularidade ambígua que diz respeito aos processos de cerebralização onde a "sociogênese dos homínidas de cerébro cada vez maior, foi o suporte do desenvolvimento da cultura que criou o nível favorável para o crescimento do cerébro volumoso e da linguagem articulada e combinatória; esta, por sua vez, permitiu a divergência e, mais tarde, a explosão da cultura"(1992:165). A cerebralização e a cultura são simultaneamente meio e resultado das complexificações sociais e culturais em permanente troca adaptativa entre biologia e cultura.
Comentando a obra antropológica de Morin, "O paradigma perdido", Atlan indica que para aquele autor a circularidade cerébro-cultura resulta apenas aparente, uma vez que é subsumida na complexificação e na auto-organização caracterísitcas do ser vivo e de seu meio (1992:165). Embora Atlan concorde com a proposição da complexidade e da auto-organização, acrescenta que o ganho do processo de hominização não é tanto relativo a órgãos ou funções, mas sim de organização estrutural, traduzida em aptidão para adquirir. Segundo ele, Morin não considera o papel do aumento da capacidade de memória que acompanhou o desenvolvimento do cérebro. Para Atlan, isso é decorrente de Morin "favorecer os mecanismos da ordem a partir do ruído na lógica da complexificação, excluindo os mecanismos de estabilização por replicação – recarga da redundância" (1992:167).
Atlan argumenta que a linguagem tem dupla relação com a memória. De um lado, a linguagem para desenvolver-se precisou de cérebros com maior capacidade de memória, ao mesmo tempo em que a linguagem é o principal suporte para o aumento das capacidades de memória da espécie. Além do quê, prossegue o autor, a linguagem é o campo das derivações, das metáforas que são mecanismos que se constituem pela lógica de reorganização/desorganização e de integração da ambigüidade. Sendo que, todos esses aspectos são estruturadores da cognição. O que o autor quer salientar é a importância da memória na organização, operando como estabilizadora de configurações de ordem que pode ser criada a partir de ruídos.
Sem memória, os padrões surgidos se desvaneceriam no turbilhão de ruídos do ambiente.
Relacionando bipedismo, linguagem articulada combinatória e comportamento social, Atlan lembra que hoje já se sabe que estas não são características exclusivas do Homo sapiens, pois que já existiam antes do cerébro volumoso, por isso indaga: para que serve o cerébro volumoso? E responde: serve para o imaginário, a desrazão, o delírio. Todos uma espécie de conseqüência inelutável de uma lógica da hipercomplexidade já atuante na evolução biológica e, depois, na evolução bio-sócio-cultural que conduziu ao Homo sapiens. Entretanto, acrecenta: "as manifestações externas de sonho e de um possível imaginário nos animais forçam-nos a reconhecer que não é tanto a simples existência dos sonhos e das associações imaginárias que caracterizam as aptidões ainda não realizadas do homem, mas a irrupção do imaginário em sua cultura e a maneira como ele é vivido nos contextos bio-sócio-culturais onde o homem se define" (1996:173).
Nesse sentido, Atlan concorda com Morin de que a demência do sapiens, o delírio e o exagero das não realidades que são a morte e a imagem, longe de serem defeitos de racionalidade são a condição mesmo de emergência de racionalidade (1996:173). Contudo, discorda de Morin, por este conceber que a natureza imaginária e imaginante do Homo sapiens sejam decorrentes de relação ambígua e conturbada que se constitui entre o cerébro humano e o ambiente como resultado das emergências mágicas, míticas, rituais e estéticas. Na verdade, diz o autor, é a consciência, também entendida enquanto ampliação das capacidades de memória, que permite ao imaginário irromper na visão do mundo. Conclui que não é possível, como faz Morin, identificar o estado de alta complexidade que caracteriza o sapiens, com a irrupção do erro" (1996:173).
Para Atlan, seria no confronto entre a consciência-mémória e o seu conteúdo que o imaginário e a ilusão podem aparecer como erros e ambiguidades. Mas o imaginário não é menos real, nem tampouco mais erro, do que é a consciência do real. A consciência-memória permite a superposição de eventos separados no tempo e, portanto, uma combinação mais rica dessas superposições. Sendo que é a experiência da adequação ou inadequação dessas superposições que se exprimem no diagnóstico de real ou de imaginário dos acontecimentos (1996:174), provocando discrepância entre o homem adaptado e o homem imaginador. Da união entre ambos, surge e prossegue o movimento de adaptação.
O êxtase, diz Atlan, ilustra bem o exposto, pois seja ele de caráter místico, estético, erótico ou psicodélico, a discrepância entre real (leia-se adaptação) e o imaginário se resolvem. Pois, dada a forte predominância do imaginário no contexto do êxtase, seu caráter de ilusão e de erro se esvanecem. Ao contrário, fora desses estados extraordinários, o homem, ao mesmo tempo, atribui ao imaginário uma consistência de erro e de ilusão e os projeta no ambiente, aumentando sua realidade ilusória ou atribuindo-lhe o caráter de forças sobrenaturais. Por isso, prossegue o autor, a irrupção da morte surge ao mesmo tempo como verdade e ilusão, fruto de uma consciência dupla, pois a novidade é sempre confrontada com a consciência, ou seja, a memória possibilitada pelo aumento do cérebro (1996:175).
Duplos imaginários seriam também, além dos estados ordinário
e extraordinário de consciência, as imagens e os símbolos.
Ao mesmo tempo, seres representados e expressos na linguagem e no desenho, recursos
pelos quais adquirem existência mental fora de sua presença material.
Portanto, Atlan conclui: "o surgimento do homem imaginário não
está ligado ao do erro. O erro e seu papel organizador sempre existiram,
desde o começo da evolução. O homem imaginário surgiu
ao mesmo tempo que o homem de memória volumosa"(1996:175). Portanto,
não se trata fundamentalmente de confronto entre verdade e ilusão,
pois ambas são projeções imaginárias que, em função
de adequações e regularidades são chamados de realidade
ou ilusão. Os produtos da mente, tanto quanto a consciência temporal,
são a expressão do aumento de complexidade, sem o acicate da necessidade,
pois os novos padrões se formam "por formarem-se", no mesmo sentido,
lembra Atlan, que para Piaget o bebê "suga por sugar" (1996:176).
Volta a concordar com Morin sobre o fato de que a linguagem permitiu a magia,
onde a palavra nomeia e invoca a imagem mental, sendo que esse processo, diz
Atlan, não é circunscrito a magia, mas a "todas as projeções
do imaginário no real. Isto é, em todas as apreensões do
real pelo pensamento" (1996:176). Para ele, o processo de pensamento em qualquer
modalidade – mágica ou científica – é delirante e se constitui
pelo movimento entre memória (estoque de imagens), processamento ( transformação
das imagens) e projeção de imagens. Argumenta que, se de um lado,
as derivações mitológicas são fontes de avanço
para o sapiens, não sendo apenas desordem, mas ordem, não
só liberdade mas também restrições, é porque
o imaginário é principalmente memória e associações
que, mesmo livres, são, "no sentido probabilístico e informacional,
restringidas na medida mesmo em que associam" (1996:176).
Para Gilbert Durand (1997), o imaginário é o conjunto das imagens e das relações entre imagens que constituem o capital pensado do Homo sapiens. Para nós, imaginário é dinâmica: imaginar é processo cognitivo de selecionar, agrupar e pôr imagens em movimento (não necessariamente nessa ordem). É cinemática, dinamismo de potência, condição de possibilidade, pois cria, inspira, realiza. Entretanto, fios muito tênues de definição sustentam a noção de imaginário que dança no mar do espírito feito água-viva que flutua. De tão escorregadia e inapreensível, a partir dela, a moderna ciência ocidental construiu o primeiro fosso, que Durand (1988) chamou de "vitória dos iconoclastas". Foi a psicanálise, o estruturalismo, a arte e, atualmente, a física quântica, a bio-química, a paleo-antropologia e a cibernética, que romperam trilhas e avançam no resgate da "louca da casa" de seu exílio esotérico. Como previa Lévi-Strauss (1985), o "divórcio" entre a ciência e os problemas que ela pôs de lado, a exemplo das imagens e dos símbolos, está prestes a superação pela incorporação das problemáticas que suscitam.
Contudo, respostas totais ou definitivas quem haveria de tê-las? Mas,
parece que não são elas apenas que impulsionam o desejo. Entre
o "cristal e a fumaça" o brilho do vidro e a imagem da chama fascinam
e aquecem. Transformam, adornam, elucidam e transtornam. Iluminando e obscurecendo
o "trajeto antropológico" que se faz pela incessante troca - entre as
subjetivações e as objetivações - que instituem
o homem e o seu meio (Durand, 1997). No entanto, quais são as possibilidades
metodológicas de apreensão do imaginário? Elas são
tão diversas quanto as perspectivas teóricas que pretendem elucidá-lo,
vão da mitocrítica às análises psicanalítica,
linguística, histórica, antropológica, entre outras, que
possamos imaginar e objetificar no ato prometéico de "roubar o fogo dos
Deuses". Concordamos que esta é uma saída retórica que,
entretanto, cumpre aqui a função de evidenciar pelo ocultamento,
a necessidade de outros textos que explicitem de múltiplas formas a amplitude
de domínios que a temática abarca e extravasa. Aliás, é
sobre os limites e os transbordamentos de sentido que o imaginário investe
e multiplica as astúcias.
BIBLIOGRAFIA:
ATLAN, Henri.
Entre o cristal e a fumaça: ensaio sobre a organização
do ser vivo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992.
BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico. Lisboa,
Edições 70.
_________________ . O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação
do movimento. São Paulo, Martins Fontes, 1990.
DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica.
São Paulo, Cultrix, 1988.
_____________ . As estruturas antropológicas do imaginário,
São Paulo, Martins Fontes, 1997.
DURKHEIM,
Émile. Sociologia e filosofia. São Paulo, Ícone,
1994.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo, Martins
Fontes, 1995.
LEROI_GOURHAN, André. Evolução e técnicas:
I – o homem e a matéria, Lisboa, Edições 70, 1984.
_________________ . O gesto e a palavra: I – técnica e linguagem,
Lisboa, Edições 70, 1984.
________________ . O gesto e a palavra: II - memória e ritmos.
Lisboa, Edições 70, 1987.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa, Edições
70, 1985.
MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Belo Horizonte,
Editora da UFMG, 1997.
MORIN, Edgar. O método (III): o conhecimento do conhecimento,
Lisboa, Publicações Europa-América, 1996.
__________ . O paradigma perdido: a natureza humana. Lisboa, Publicações
Europa-América, 1993.
NOTAS
Arneide Bandeira Cemin – UNIR
Doutora em Antropologia Social (USP), Professora do Departamento de de Sociologia e Filosofia da Fundação Universidade Federal de Rondônia.
cemin@unir.br
Artigo publicado na Presença, revista
de Educação, Cultura e Meio Ambiente. Porto Velho, Fundação
Universidade Federal de Rondônia. Ano VI, nº 14, dez, 1998.
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