O objetivo deste artigo é mostrar que o modelo de corpo oferecido pelas diferentes versões do construtivismo social possui uma surpreendente afinidade com o corpo construído pelas biotecnologias. Para ambos os discursos, o do construtivismo social e o da tecnobiomedicina, o corpo é uma construção e ambos insistem na sua total maleabilidade e acessibilidade, negando a sua materialidade. Portanto, o discurso construtivista não pode servir como instância crítica do discurso das biotecnologias, como pretendem seus defensores. Defende-se, por outro lado, que o corpo fenomenológico possui um potencial ético-emancipatório que pode servir de instância crítica do discurso biotecnológico.
Palavras-chave: Construtivismo, Corporeidade, Biotecnologias, Fenomenologia
Corporeality and biotechnology: a constructivist and techno-biomedical phenomenological review of the construction of the body
ABSTRACT
This article argues that the body model advocated by different versions of social constructivism has an astonishing affinity with the body in biotechnologies. Both discourses, that of the social constructivism and that of techno-biomedicine, claim that the body is a construction and both insist in recognizing its total malleability and accessibility, contradicting its materiality. Therefore, the discourse of constructivist thought cannot serve as a biotechnological discourse critical instance, as their advocates intend. It will be argued that a phenomenological body has an ethical-emancipating potential that can function as a biotechnological discourse critical instance.
Key words: Constructivism, Corporeality, Biotechnologies, Phenomenology
Neste artigo, pretendo defender a hipótese de que o discurso que afirma a construção social do corpo não é mais um discurso subversivo ou emancipador, como afirmam freqüentemente seus defensores. Para estes, o discurso que defende a construção sócio-discursiva do corpo possui um potencial ético-emancipatório.
Segundo Hacking1, os discursos que defendem a construção social de 'X' tendem a partir da seguinte premissa: "X' não precisaria existir, ou ser como de fato é. 'X' não é determinada pela natureza das coisas, não é inevitável". Porém, com freqüência, dá-se um passo à frente afirmando que "'X' é bastante ruim do jeito que atualmente é", e que "estaríamos muito melhor se 'X' não existisse ou fosse transformada radicalmente".1 Apesar de não ter que passar necessariamente pelas duas últimas premissas, a maioria dos construtivismos se inclinam a criticar, transformar, ou destruir os 'X' cuja construção é afirmada. Daí que posições mais 'materialistas' sejam classificadas de essencialistas ou fundacionalistas e, como conseqüência, conservadoras. Mesmo que a historização de diversas categorias como a da homossexualidade tenha servido, sem dúvida, para desnaturalizá-la e despatologizá-la, o que constitui um avanço ético para a cultura homossexual, acredito que, na atualidade, em relação à categoria 'corpo', o discurso da construção social não seja subversivo e não possua as vantagens éticas que seus defensores afirmam. Isso por dois motivos: existe, por um lado, uma surpreendente afinidade entre o discurso das biotecnologias (em um sentido amplo que inclui visualização médica, inteligência artificial, realidade virtual, ciborglogias e todo tipo de pós-humanismos, entre outros) e do construtivismo. Para ambos, o corpo é uma construção e ambos insistem na sua total maleabilidade e acessibilidade, negando a materialidade. O corpo fenomenológico pode, por outro lado, servir de instância crítica do discurso das biotecnologias.
É importante ressaltar que, apesar das interpretações pós-modernas dos recentes avanços da biomedicina, a medicina é ainda um projeto moderno, no qual verdade, ordem e progresso continuam sendo as virtudes cardinais. Ainda mais importante me parece o fato de que, embora família, religião, trabalho ou política não funcionem mais como metarelatos transcendentais com força normativa universal, a ciência (e mais especificamente a medicina) ocupa hoje o lugar do universal, falando em nome da 'Verdade' e fornecendo regras de comportamento moral válidas para todos. O discurso das biotecnologias e da tecnobiomedicina contemporânea, com sua ênfase na maleabilidade e docilidade do corpo, mostra, como dizíamos, muita semelhança com o discurso construtivista. Ambos insistem na 'construção' do corpo, que se dá em uma série de planos diferentes na tecnomedicina contemporânea. Vejamos quais são os principais níveis de construção da corporeidade.
Em primeiro lugar, os corpos tornam-se gradualmente plásticos e maleáveis. Especialmente o crescimento da indústria da cirurgia plástica expande constantemente os limites de como o corpo pode ser reformado, modificado e reconstruído. A medicina está tentando também entrelaçar plástico nos tecidos para a produção de diferentes partes corporais, tais como braços e mãos. O procedimento consiste em utilizar plástico biodegradável semeado de células que será usado para a formação de novos tecidos: a medida que as células se dividem, a estrutura de plástico se degrada deixando apenas os tecidos que podem ser implantados nos pacientes2,3. Segundo, os corpos tornam-se progressivamente biônicos por meio da incorporação de marca-passos, válvulas, quadris de titânio, olhos eletrônicos, implantes clocleares e todo tipo de próteses orgânicas e inorgânicas que marcam cada vez mais a interface entre o corpo e máquina. Relacionado com este último processo está o fato dos corpos tornarem-se paulatinamente intercambiáveis, devido principalmente aos avanços das tecnologias de transplantes de órgãos e partes do corpo humano, bem como da produção de órgãos para transplantes a partir de órgãos geneticamente modificados de animais, a xenotransplantação.
A mercantilização de partes do corpo decorrente do transplante fetal e de órgãos, as tecnologias reprodutivas e a manipulação genética constituem um negócio bilionário4. A comercialização de partes corporais pressupõe a abstração da experiência subjetiva do corpo e sua objetificação, exigida para extrair, usar e patentear tecido corporal sem referência ao indivíduo envolvido5,6. Nesse contexto de fragmentação corporal, o corpo como um todo ou unidade orgânica não conta mais. A "presença inerradicável do corpo como-um-todo"7 experienciada fenomenologicamente representa um empecilho no processo de mercantilização e venda de suas partes. Discursos construtivistas que afirmem a construção e fragmentação do corpo parecem adequar-se mais ao processo de expropriação de partes corporais. Alguns autores ressaltam que o transplante de órgãos coloca também questões referentes à identidade pessoal e a relação entre mente e corpo, ao distinguir entre o cérebro e outras partes do corpo que podem ser substituídas, reforçando assim os argumentos dualistas8, 9, 2, 3. Acredito que a idéia do transplante de cérebro, como é colocada na ficção científica10, nas ficções filosóficas11 ou nas promessas de congelamento e posterior transplante de cérebro em outro corpo das empresas de criogenia (procedimento denominado de 'neuropreservação') reforça o dualismo (ou cria um novo dualismo cérebro-corpo) e despreza o corpo, o qual é reduzido ao cérebro. Este último é, no fundo, a parte do corpo não só necessária, como suficiente para sermos nós mesmos. Isto é, o sujeito cerebral11, 12, uma figura antropológica que se adapta melhor à visão de corpo construído, objetivado e fragmentado do que à noção do corpo como totalidade corporal e coerência sensorial.
Os transplantes de órgãos acentuam o contraste entre o discurso do corpo objetivado da biomedicina e a experiência subjetiva e fenomenológica dos pacientes que devem integrar a sua corporeidade partes do corpo estranhas, a alteridade no corpo vivido: um 'intruso' que nos habita, usando a expressão de Jean-Luc Nancy em relação ao coração transplantado.
Os textos de Nancy13 sobre a experiência de transplante de coração e de Varela14 em relação ao transplante de fígado constituem dois belos exemplos de uma fenomenologia do transplante de órgãos. No fundo, esse tipo de trabalho coloca em xeque ou problematiza a crença da racionalidade biomédica de que o sucesso do transplante (e pelo menos a não rejeição psicológica) depende de ter uma relação mecanicista e reducionista com o corpo, obliterando as dimensões subjetivas, o que levanta múltiplas questões éticas envolvidas no transplante de órgãos15, 16. Analogamente ao caso dos transplantes, para muitos portadores de graves deficiências físicas, a não-identificação do eu com o corpo, a descorporificação do self, mediante uma relação mecanicista e distanciada com o próprio corpo constitui amiúde uma alternativa para suportar as limitações: "O paralítico se acostuma a ser levantado, conduzido, empurrado, arrastado e curvado, e ele sobrevive a esse tratamento criando uma distância emocional entre si mesmo e seu corpo"17.
Finalmente, cabe mencionar a progressiva virtualização dos corpos na tecnobiomedicina contemporânea. O desenvolvimento nos últimos anos de 'clínicas virtuais' com unidades cirúrgicas virtuais incluindo simuladores radiológicos e anestesiológicos, a anatomia virtual do Visual Human Project - que produz simulações realistas que se enquadram perfeitamente em uma prática médica cada vez mais digitalizada -, as telecirurgias realizadas à distância com ajuda de robôs cirúrgicos e transmitidas pela Internet, entre outras inovações tecnológicas, conduzem a ultrapassar o umbral entre o corpo real e o virtual. O virtual aparece como a ampliação do real e a materialidade do corpo-imagem nos é apresentada como a materialidade do corpo físico. É um corpo construído, despojado de sua dimensão subjetiva e descarnado. Esse modelo de corpo descorporificado fornecido pelas modernas tecnologias de imageamento e de medicina virtual assemelha-se bastante ao modelo do corpo construído do construtivismo social. A "mulher descorporificada mediante a corporificação da teoria", usando a expressão de Barbara Duden para se referir a Judith Butler, lembra as visualizações descarnantes das biotecnologias18,19,20. Comum a ambos, construtivismo e tecnobiomedicina, é a rejeição da materialidade e da experiência subjetiva do corpo.
Página seguinte |
|
|